“Eu não coloco meus pés em um escritório há dez anos”, conta a tradutora Patrícia Matos, de malas prontas para morar em Portugal e depois de voltar de períodos entre Barcelona, na Espanha, e Rio de Janeiro. Ela tem planos de passar temporadas em diferentes cidades europeias – intercalando o trabalho em uma empresa dos EUA com o turismo. Até alguns anos, Patrícia precisava explicar sempre sobre sua escolha e a proeza de unir as duas coisas. Agora, há um conceito que a define: nômade digital.
Por um lado, o nomadismo digital já era um fenômeno crescente no mundo pré-pandemia. Estimulados pela disponibilidade de conexão à internet e pelo crescimento da modalidade de trabalho remoto dentro das empresas globais, esses “trabalhadores-viajantes” eram, naquele momento, uma reação ao modelo de trabalho fixo, com horários rígidos e períodos calculados de férias. O fenômeno, surgido nos Estados Unidos, era conhecido como work from anywhere (“trabalhe de qualquer lugar”).
No entanto, a pandemia acelerou demasiadamente esse processo: em meio ao avanço do vírus pelo planeta, cadeias produtivas inteiras precisaram colocar seus funcionários às pressas em isolamento. Aquelas que já podiam – ou estavam mais bem adaptadas – migraram para o teletrabalho. No Brasil, por exemplo, essa transformação foi beneficiada pela Lei de Modernização Trabalhista, de 2017, que havia regulado o modelo já como resposta à demanda crescente do mercado. À época, em um grupo ainda restrito, o dos trabalhadores corporativos, metade (55%) já fazia ao menos um dia de home office, segundo um estudo da consultoria holandesa Spaces. Em 2020, em meio à crise sanitária, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou que 11% da massa de trabalho brasileira atuou remotamente – o que representou um universo de 8,2 milhões de pessoas.
Entre especialistas, esse estilo de vida conforma o início de uma nova fase da ordem mundial, chamada por eles de capitalismo flexível. Ou seja, um modelo social em que as relações não são mais pautadas pela rigidez – da fábrica, do escritório etc. –, mas justamente pela fluidez. Para Eduardo Pastore, assessor jurídico da FecomercioSP, isso só foi possível quando as empresas perceberam que poderiam não apenas manter suas margens de lucro, mas até aumentá-las contratando profissionais qualificados em outros países. “O capitalismo flexível é, antes de tudo, uma descoberta: a de que é possível ter muitos trabalhadores ao mesmo tempo, em diferentes lugares do mundo, e ainda melhorando os resultados”, analisa. “Como tudo está conectado, é possível fazer isso com mais liberdade e flexibilidade e, principalmente, sem amarras tributárias ou trabalhistas.”
No Brasil, são poucas as empresas dispostas a ter essa flexibilidade, ao contrário de outros países. “Muitos setores ainda têm dificuldade em admitir a ausência física dos funcionários, sem contar questões como o fuso horário, por exemplo. Apenas os negócios do setor da tecnologia já entenderam essa transformação”, conta Patrícia Matos, que, além de nômade digital, terminou uma tese de doutorado sobre o tema na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2020.
Para Pastore, este fenômeno ainda é tímido no Brasil por dois fatores: o primeiro deles é a falta de mão de obra qualificada – ao contrário dos países desenvolvidos. O segundo, central na sua análise, é a legislação. “O País tem regras trabalhistas ainda muito controladoras. Quando elas encontram um trabalhador tão flexível assim, recebendo em moeda estrangeira e sem vínculo empregatício, controle de jornada ou, ainda, remunerado pelas entregas, há um estranhamento”, explica. Então, a ausência do ordenamento jurídico joga as empresas brasileiras em um limbo. “Como não há clareza das regras do jogo, elas se sentem inseguras em contratar esses profissionais.”
De fato, outros países têm lidado melhor com o nomadismo – que, segundo o Relatório Global de Tendências Migratórias, da consultoria britânica Fragomen, englobará um bilhão de trabalhadores pelo mundo até 2035. Hoje, 24 nações já possuem regras próprias para eles – que formam um universo de 35 milhões de pessoas ao redor do planeta.
A Croácia, por exemplo, criou um visto especial em janeiro do ano passado: é possível ficar no país, trabalhando, por seis meses, além de mais três meses com permissão de turista, sem possibilidade de renovação. Entre as regras, porém, é preciso comprovar uma renda mensal alta, de US$ 2,6 mil (cerca de R$ 13,5 mil na cotação de março).
Pioneira neste tipo de medida, a Estônia também abriu suas portas para os nômades digitais em 2020 – anos depois de criar um programa para estrangeiros que quisessem abrir negócios remotamente no país. No entanto, a comprovação dos rendimentos é ainda maior: de € 3,5 mil mensais (cerca de R$ 19 mil). Em Malta, outro país europeu com este tipo de visto, a exigência é de uma renda de € 2,7 mil (R$ 15 mil). A Costa Rica, primeiro latino-americano a entrar no jogo, pede que o candidato ganhe, no mínimo, US$ 3 mil (R$ 15,2 mil).
Foi por isso que Patrícia e Carlos escolheram Portugal. Além de um período maior – o visto D7 possibilita permanência de até dois anos, com possibilidade de renovação por mais três –, as regras exigem que a renda mensal seja de € 700 (cerca de R$ 3,8 mil) e que o trabalhador ainda comprove que possui meios para se manter por um ano. “Foi a escolha mais fácil, apesar de o visto português não ser voltado para os nômades digitais, como em outros países”, explica a tradutora carioca. Em sua pesquisa, ela percebeu que, por causa da facilidade do idioma e da legislação, além dos custos de vida menores, Portugal tem se solidificado como um dos países preferidos dos nômades brasileiros.
Países do Sudeste Asiático, ao contrário, são os locais preferidos dos viajantes do Norte global, que inclusive já costumavam passar longas temporadas mesclando trabalho e lazer nas praias tailandesas e malaias. “A métrica é a mesma: como os custos são bem menores para as moedas deles, esses destinos se mantiveram interessantíssimos para quem quer ser nômade.”
Curiosamente, a cidade que mais atrai nômades digitais não está em nenhum desses países: é Vancouver, no Canadá, segundo uma análise da consultoria global Resume.io. Dubai, nos Emirados Árabes, e Londres, na Inglaterra, são outros destinos comuns.
O Brasil também criou seu visto específico para atrair este tipo de trabalhador. Foi em janeiro deste ano, quando o Conselho Nacional de Imigração, órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, publicou uma resolução permitindo que estrangeiros trabalhando remotamente permaneçam por até dois anos no País. Eles precisam comprovar uma renda mensal de US$ 1,5 mil (cerca de R$ 7,6 mil), recorte que também manifesta o que se almeja com a medida: impactar a economia. “Embora tenha sido uma iniciativa positiva, ainda não é suficiente, falta uma legislação mais clara sobre este tipo de trabalho”, analisa Eduardo Pastore.
As exigências de renda são, sem dúvida, um filtro significativo para este padrão de vida. Segundo o perfil elaborado pela Nomadlist, os nômades digitais pelo mundo hoje são majoritariamente dos Estados Unidos (52%) e ganham cerca de US$ 80 mil por ano (R$ 407 mil) trabalhando, sobretudo, em empresas de tecnologia sediadas no país, ou seja, no Vale do Silício. Esse padrão define, porém, quem pode e quem não pode circular como trabalhador-viajante. “Não se trata tanto da qualificação, mas, principalmente, das habilidades que os profissionais têm para atender às demandas desta era da informação. Hoje, por exemplo, profissões que lidam com dados são as mais buscadas pelo mercado, e são justamente estas as mais passíveis deste tipo de mobilidade”, explica Patrícia. “Ainda assim, trata-se de uma elite, uma parcela muito específica de profissionais, que possuem recursos escassos e intangíveis, como capital social, que independem da qualificação.”
Para Miriam Rodrigues, coordenadora de educação a distância do Mackenzie, o aspecto mais relevante dos nômades digitais também não é a qualificação, e sim quais atividades profissionais favorecem uma vida móvel. “A pandemia escancarou quem pode trabalhar remotamente sem prejudicar o desempenho e as entregas, principalmente. Não é o caso de um dentista, por exemplo, mas é o de acadêmicos ou de pessoas que trabalham na indústria criativa e de tecnologia.”
Não é a mesma percepção de Pastore, da FecomercioSP. Para ele, a qualificação ainda é determinante na mobilidade. “São pessoas que falam de dois a três idiomas, lidam bem com a tecnologia, têm facilidade em aprender coisas novas e, além disso, sabem entender as culturas pelas quais viajam.”
Essas restrições também aparecem nos custos para se viver em outra cidade – mesmo que temporariamente. O Nomadlist tem até um mapa desses valores. Entre as metrópoles mais baratas, estão Buenos Aires, na Argentina, cujos gastos mensais somam, em média, US$ 750 (R$ 3,7 mil), Istambul, na Turquia (R$ 4,9 mil), e o balneário de Ko Pha Ngan, na Tailândia (R$ 5 mil). Entre as mais caras, estão Londres, na Inglaterra (R$ 22,7 mil), Honolulu, no Havaí (R$ 23,2 mil), e Nova York, nos EUA (R$ 24 mil).
Mesmo assim, Miriam nota uma mudança significativa que o fenômeno pode gerar: uma redistribuição global e local do trabalho. Se acontecer, de fato, isso seria uma das maiores e mais profundas transformações nas relações trabalhistas dos últimos tempos, afetando geografias dos países. “No caso do Brasil, os profissionais qualificados não estão apenas no Sudeste, embora os melhores empregos estejam concentrados nessa região. O mesmo pode acontecer de dentro para fora do País e, claro, em uma escala global.”
De algum modo, as coisas já são assim, alerta Rodrigues: quando um trabalhador vive temporariamente em um país que não o seu de origem, sendo funcionário de uma empresa sediada em uma terceira nação – evento chamado no meio empresarial de virtual assignment –,significa que o nomadismo digital já superou as fronteiras nacionais.
Patrícia Matos vai chegar ao Porto ansiosa por viajar mais pelas cidades da Europa, mas, curiosamente, tem outro objetivo de médio prazo: “Quero encontrar um lugar para ficar de vez.”