O compartilhamento de dados dos consumidores com as companhias do setor elétrico já é comum nos EUA e no Canadá, mas a consolidação do modelo no Brasil exige capacidade tecnológica de todo o setor e adequações que garantam a segurança das informações e o seu uso em prol da eficiência energética.
Com a entrada do Open Banking, o compartilhamento de dados interoperáveis – ou seja, capazes de operar entre si por meio de padrões abertos – dos clientes com as instituições financeiras tornou-se uma inovação que veio para ficar no Brasil. Seguindo a mesma tendência, em futuro ainda incerto, mas considerado irreversível por especialistas, o modelo Open Energy deve chegar em breve ao setor elétrico, o que vai representar a interação entre os cerca de 89 milhões de unidades consumidoras (UCs) com as centenas de geradoras, distribuidoras e comercializadoras de energia espalhadas pelo País.
Experiências de sucesso nos EUA, no Canadá e na Austrália indicam que os benefícios podem atingir toda a cadeia do sistema elétrico. Além de promover a entrada de novas empresas no mercado, principalmente na geração de energia limpa, na redução de custos operacionais de distribuidoras e comercializadoras e na gestão de energia dos consumidores. Espera-se que haja mais transparência para escolher os fornecedores e, consequentemente, a possibilidade de reduzir os gastos com a conta de luz.
Dona de uma capacidade atual de 10 GW (gigawatts) de potência instalada de geração própria em painéis em telhados, fachadas e pequenos terrenos, além de mais 5 GW de grandes usinas integradas ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a matriz de energia solar terá um impulso na demanda com o Open Energy, prevê Rodrigo Pedroso, membro do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). “Haverá crescimento entre as companhias que atuam em energia distribuída e por assinatura no mercado livre, assim como os fabricantes de equipamentos, com a construção de novas plantas de placas solares. O consumidor terá opções para escolher o fornecedor e baratear sua conta.” Em paralelo, diz Pedroso, o compartilhamento de dados permitirá ao setor entender melhor o perfil do consumidor de energia solar conforme os serviços que utiliza, como internet e TV por assinatura. “No futuro, será possível comprar energia por meio de ‘superapps’, como nas principais redes varejistas”, afirma.
Para poder deslanchar, é preciso que as empresas do setor elétrico estejam equiparadas em nível tecnológico para poder operar, de forma digitalizada, os dados dos consumidores em toda a rede do sistema. Antecipando-se à tendência, de forma tímida, algumas startups já trazem soluções próprias no campo da geração compartilhada de matriz energética limpa, principalmente em energia solar, uma vez que os custos da energia eólica inviabilizam pequenos projetos. É o caso da Lemon Energia, criada em 2019, que atua nos estados de Minas Gerais, Pernambuco, no Distrito Federal, na cidade do Rio de Janeiro e nas cidades do interior paulista servidas pela Elektro.
O modelo funciona assim: a Lemon mantém parceria com pequenas usinas, com capacidade instalada de 40 megawatts (MW). A Lemon intermedia a contratação entre a empresa e a energia necessária, e paga à parte as taxas do fio (para a distribuidora) e os impostos. “Na prática, é como se a empresa alugasse os painéis. Em média, a conta fica até 20% mais barata, já que a energia solar não sofre cobrança das bandeiras tarifárias”, explica a engenheira Nayanne Brito, sócia da Lemon Energia.
Dentro do mesmo modelo de geração compartilhada de energia solar, a Sun Mobi agrega aos seus serviços a instalação de um medidor de consumo no quadro de luz, que monitora em tempo real o consumo da residência e permite ao cliente gerir os gastos da casa. Fundada em 2017, a Sun Mobi atua em parceria com duas usinas no interior paulista, com capacidade instalada de 1 MW, e conta com 600 clientes em 27 cidades atendidas pela CPFL Piratininga.
“Em 5 anos, queremos atuar com 200 MW de geração e atingir 6 mil clientes”, prospecta Alexandre Bueno, sócio da Sun Mobi, que vê com otimismo a perspectiva do Open Energy. “Já fomos procurados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para ceder os dados de forma anonimizada, para ajudar em estudos de planejamento do setor”, diz. Além do medidor, a Sun Mobi oferece um aplicativo de alarme de consumo, que traz dados comparativos diários de consumo, similar aos aplicativos de performance de atividade física. “É preciso integrar as tecnologias ao cotidiano do consumidor de energia e direcionar esforços para digitalizar o sistema elétrico”, enfatiza o empresário.
Mesmo com a adoção dos processos de digitalização, a expansão do Open Energy exigirá ajustes na legislação e flexibilização das normas de mercado do sistema elétrico. O professor aposentado da faculdade de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em Direito da Tecnologia, Fábio Gonçalves Jota, é cético quanto ao ambiente regulatório no País. “Por si só, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não protege o consumidor quando ele consente em compartilhar os seus dados com uma instituição. As pessoas dão o consentimento sem ter ideia do impacto quanto ao uso do que autorizaram. A LGPD precisa ser revista, ainda mais com o avanço da Internet das Coisas (IdC), tanto pelo risco de ataques cibernéticos como pela quebra de privacidade”, afirma. Uma solução, propõe, seria adotar o compartilhamento de dados dos consumidores por região ou quarteirão, evitando a individualização das residências. “No caso de empresas, pode não ser interessante compartilhar dados de consumo em razão da concorrência.”
E há ainda questões relacionadas ao mercado, considerado “fechado e pouco transparente” pelo pesquisador. “Para se afirmar no mercado, oOpen Energy precisa oferecer transparência e acabar com o monopólio das companhias públicas e de economia mista, que dominam o setor elétrico, permitindo o acesso de novas empresas”, diz.
Para Jota, as distribuidoras prestam um serviço de qualidade duvidosa e impõem as tarifas de forma unilateral ao consumidor. “É um setor lucrativo para as distribuidoras, mas, como não há transparência, uma eventual interessada não tem informações sobre potencial de mercado e projeção de lucro. O ideal é que houvesse liberdade para entrar com serviços de fiação subterrânea e disputar o mercado com a companhia que já explora a fiação aérea.” Apesar das observações, o compartilhamento, afirma o acadêmico, é “uma tendência irreversível”.