Considerado o maior terminal marítimo do mundo em movimentação de cargas, o porto de Xangai ganhou destaque nas últimas semanas, com imagens que mostram a enorme quantidade de contêineres parados e dezenas de navios esperando para atracar. Diante dos novos surtos de covid-19 na China e dos lockdowns impostos pelo governo, ainda não há prazo para o fim do “congestionamento” de cargueiros na costa asiática.
Com o porto praticamente parado, as importações e exportações chinesas foram prejudicadas, impactando cadeias de produção ao redor do mundo abastecidas com matéria-prima local, como componentes eletrônicos. Na outra ponta, as importações feitas pelo gigante asiático, em especial de commodities, também foram prejudicadas, e isto provocou reflexos econômicos em diversos países, inclusive no Brasil, grande fornecedor de produtos como soja, carne e ferro.
A principal preocupação dos exportadores brasileiros é com o aumento do preço do frete de contêineres na rota Brasil-Ásia, por causa da dificuldade de atracamento nos portos chineses. Em um ano, a alta do transporte de produtos para a China foi de cerca de 50%, em média, segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI). A indústria da carne, por exemplo, depende muito de contêineres refrigerados para escoar sua produção para a China.
A situação no porto de Xangai ilustra um processo econômico que vem sendo chamado de “desglobalização”. Ao contrário da globalização, regida pela integração e interdependência da economia mundial, principalmente em relação ao comércio, a desglobalização segue o caminho contrário da integração, aumentando o isolacionismo e o protecionismo dos países, de acordo com os seus interesses e em consequência de dificuldades impostas por acontecimentos como a pandemia.
Segundo especialistas em economia e relações internacionais, dois grandes fatores recentes acentuaram a desglobalização, que teria começado a partir da crise mundial de 2008: a covid-19 e a guerra na Ucrânia. Com isso, houve o fortalecimento de movimentos separatistas econômicos, como a saída do Reino Unido da União Europeia, em 2020, no processo que ficou conhecido como Brexit, e o crescimento do nacionalismo político em diversas nações, cujos líderes adotaram discursos e políticas antiglobalização.
Em relação aos efeitos da covid-19, houve uma desestruturação do sistema just in time, um dos pilares da globalização. Nesse modelo, a produção, o transporte e a compra de mercadorias e matérias-primas entre os países são feitos de maneira regrada e pontual, fazendo com que as cadeias de distribuição e produção sejam organizadas e o mercado mundial funcione em sincronia. Todo este processo foi interrompido durante a pandemia, em decorrência do isolamento social, e motivou situações como a paralisação do porto de Xangai.
Para evitar problemas com a falta de matérias-primas ou mesmo de produtos finalizados, as empresas tiveram de aumentar os seus estoques e, por consequência, os custos de produção. Com os ataques da Rússia à Ucrânia, o quadro assumiu contornos ainda mais graves, por exemplo, a partir da redução do comércio mundial de fertilizantes, essenciais ao agronegócio. Tanto a Rússia como a Ucrânia são grandes exportadores do insumo para países como o Brasil, cujas entidades ligadas aos produtores rurais não descartam o desabastecimento de fertilizantes nos próximos meses. Atualmente, importamos, da Rússia e Bielorrússia, 25% das nossas necessidades de fertilizantes.
“Os países estão preocupados se vão conseguir comprar insumos fora de suas fronteiras e se preparam para desenvolver novos fornecedores internos”, explica o professor Paulo Feldmann, coordenador de projetos da FIA Business School. Para ele, a desglobalização tende a se acentuar nos próximos anos. “Os países estão implementando medidas protecionistas, criando barreiras a produtos e serviços importados e dificultando a entrada de imigrantes. Em vários países foram eleitos políticos populistas com plataformas nacionalistas, que prometiam proteger apenas as empresas locais”, completa Feldmann.
A vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, em 2016, foi um passo importante para a desglobalização, conforme explica Ronaldo Carmona, senior fellow do Núcleo de Defesa e Segurança Internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). “Trump e seu programa America First (Estados Unidos em primeiro lugar) constituíram uma política antiglobalista”, cita Carmona, que também destaca o Brexit, na Europa.
Segundo Carmona, a desglobalização ocorre no mesmo momento que Estados Unidos e China disputam o protagonismo na chamada Quarta Revolução Industrial, que engloba a ascensão de novas tecnologias, como a internet 5G, nos mais diversos ambientes de negócios espalhados pelo mundo. “Isso tudo começa a provocar uma nova ordem econômica e geopolítica, marcada pelo declínio relativo dos Estados Unidos e pela ascensão chinesa.”
No Brasil, os efeitos imediatos da desglobalização são sentidos em diversos setores da economia. Um deles é a possível escassez de insumos para o agronegócio, em virtude da guerra na Ucrânia, como os fertilizantes, prejudicando um dos carros-chefes do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. “Já no caso do petróleo, somos exportadores de petróleo cru e importadores de derivados de combustíveis, o que pode provocar um efeito inflacionário e prejudicar a estabilidade econômica nacional”, acrescenta Carmona.
Apesar dos desafios impostos pela ordem econômica, a desglobalização, por outro lado, pode trazer oportunidades ao País. Uma delas refere-se à diversificação da economia, com a valorização de setores como a indústria. Carmona avalia que “a revisão das cadeias produtivas em todo o mundo pode ser o momento para o Brasil investir na sua reindustrialização e fortalecer a economia nacional perante o mundo”.
O CEO da Trevisan Escola de Negócios, VanDyck Silveira, é mais cauteloso em relação ao futuro do intercâmbio econômico mundial e diz que ainda é cedo para falar em ruptura entre as nações e isolamento. “Eu não acredito em desglobalização. Nós temos, no mundo, alguns pontos nevrálgicos de atrito com a China e a Rússia. No entanto, há uma interdependência muito grande entre todos os países do mundo, com exceção de Irã, Coreia do Norte, Venezuela e alguns que estão por aí”, aponta Silveira.
As nações devem se especializar naquilo em que são mais eficientes, em termos de produção, e praticar o intercâmbio, pensa Silveira. Isto possibilita, em sua análise, trocar com países que são mais eficientes em produzir outros bens e, desta maneira, os preços caem, a quantidade de produtos aumenta e todos se beneficiam. “Na história global econômica, os países que se desenvolveram e cresceram foram aqueles que abraçaram isso. Todos os que tentaram viver em autarquia não tiveram sucesso”, afirma o CEO da Trevisan.