Sem apoio do Poder Público, pequenos negócios de impacto social buscam e conseguem apoio para continuar em atividade na pandemia. Recursos emergenciais vieram de fundo desenvolvido por aceleradora, com base em doações de grandes grupos.
“Nos primeiros meses da pandemia, cheguei a pensar que teríamos de encerrar o nosso negócio. Com medo, os produtores não levavam mais os produtos na cooperativa de Parelheiros, e os pedidos caíram. Não tivemos nenhum apoio do Poder Público durante a pandemia. O que nos salvou foi o empréstimo de R$ 15 mil da rede de negócios de impacto da periferia”, conta Joyce Izauri de Jesus, 35, sócia da Enjoy Orgânicos, delivery de alimentos orgânicos criado em 2018, em sociedade com o marido, Robert Pereira, 38. Instalada em um arborizado espaço de 1,5 mil metros quadrados por onde se chega por uma rua de terra na qual circulam macaquinhos e tucanos, na Riviera Paulista (a 35 quilômetros do Centro de São Paulo), a Enjoy surgiu com a proposta de compartilhar tanto alimentos orgânicos como experiências gastronômicas com os moradores da periferia, exatamente na região do Jardim São Luís, onde ambos nasceram e se conheceram. “Sou formada em Gestão de Projetos Culturais, na USP [Universidade de São Paulo], e o Robert mexe com horta desde criança e adora cozinhar”, diz Joyce, tendo no colo César, de três meses, que, ao lado de Leônidas, de três anos, completa a família.
Encarregada das funções administrativas, Joyce percebeu que o negócio se tornaria mais rentável caso as entregas se expandissem para “o lado de lá da ponte”, como se refere aos bairros centrais e aos das zonas sul e oeste da capital.
Para realizar cerca de 20 entregas semanais, o casal cumpre pesada rotina. Todas as terças-feiras, de madrugada, dirigindo sua Kangoo, Robert vai a Parelheiros (extremo sul da capital) e coleta ervas, hortaliças e verduras de 20 produtores. Os itens são trazidos à sede e, lá, são dispostos em cestas, entregues no mesmo dia aos clientes. “Os pedidos chegam entre quinta-feira e domingo, via WhatsApp. Nos bairros da periferia, o pedido mínimo é de R$ 40,00. ‘Para lá da ponte’, cobramos R$ 80”, diz Joyce.
Antes da pandemia, o negócio ia de vento em popa. Depois, os pedidos despencaram, e os agricultores deixaram de entregar os produtos. A renda mensal caiu de R$ 4 mil para menos de R$ 2 mil. Grávida de seis meses, Joyce não podia mais se dedicar ao negócio, quando soube do fundo emergencial Volta Por Cima, organizado pela Organização Não Governamental (ONG) Artemisia, em parceria com a Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia (Anip) e o Banco Pérola. “Recebemos empréstimo de R$ 15 mil, a ser quitado em 12 parcelas, com seis meses de carência. O dinheiro custeou a gasolina e contratamos um motorista para ajudar nas entregas.”
Joyce e Robert, da Enjoy Orgânicos,com os filhos Leônidas e César
Até o fim do ano, o casal pretende abrir no espaço um bistrô com receitas exclusivas de Robert, como coxinhas de carne de jaca, fritas de peixinho-da-horta (uma folha com gosto de peixe), nhoque de banana-da-terra e “jacalhau” à Gomes de Sá.
Quando morava na cidade de Carpi, na Itália, a paulistana Maíra da Costa, 38, presenciou uma cena que marcou a sua vida. “No supermercado, duas africanas conversavam animadas e não perceberam que a fila tinha andado. De forma agressiva, uma senhora italiana deu uma cotovelada em uma delas. “Como ainda não dominava o idioma, fiquei quieta. Fiquei indignada, então decidi fazer algo pelas mulheres imigrantes quando voltasse ao Brasil.”
Como tem intolerância à lactose, Maíra comunicou à mãe, Janete, o seu desejo de abrir um serviço de comida que atendesse tanto às suas necessidades alimentares como as de trabalho das mulheres imigrantes. Com o apoio da mãe, na cozinha, assim como do suporte técnico do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Maíra deu vida ao seu sonho e criou, em 2016, a Free Soul Food, no Jardim São Paulo, zona norte da cidade.
Desde o início, ela formou a sua equipe apenas com mulheres negras em situação de vulnerabilidade, principalmente imigrantes vindas de Angola, Moçambique, Haiti e Congo, entre outros países. Como domina o inglês e o italiano, Maíra não teve dificuldades em se comunicar com as funcionárias. “Elas acrescentavam pitadas da culinária de seus países. Nossos cardápios reuniam tradicionais receitas familiares, caso do pão de ervas e da cocada, pratos típicos, como um doce angolano de chocolate e amendoim além de uma sopa haitiana de abóbora.” A Free Soul Food iniciou seus serviços com delivery, ampliou para eventos corporativos, deixou o Jardim São Paulo e chegou a ter duas filiais em fábricas.
Grupo do Free Soul Food criou itens pré-prontos para enfrentar a crise
A pandemia coincidiu com o término do contrato em uma das indústrias e também com a mudança para a sede da ONG Casa da Luz, no Bom Retiro, entidade que atua na capacitação de imigrantes. “Iríamos concentrar o foco em eventos e precisaríamos ampliar a cozinha no novo espaço. Tínhamos mais de dez eventos marcados, mas veio a pandemia, fazendo com que todos fossem cancelados. Entrei em desespero”, conta Maíra.
A empresa ficou parada durante quatro meses. Por isso, Maíra foi obrigada a tirar dinheiro do bolso para manter as quatro funcionárias – Massinda (Angola), Dorah (Malauí), Katheryn (Haiti) e Ariana, a única brasileira. “Obtive o empréstimo de R$ 15 mil da Artemisia e o apoio da Fundação Tide Setubal. Assim, pude comprar geladeira e forno industrial, além de retomar o delivery por meio de aplicativos”, conta.
Hoje, o movimento está aquém das 50 entregas diárias da época da sede no Jardim São Paulo, mas, aos poucos, os pedidos estão voltando. “Desenvolvemos uma cesta de produtos pré-prontos, com feijão refogado e arroz pré-cozido. Atendemos pessoas que trabalham na região”, diz Maíra.
Sem ter saudades da Itália, ela lamenta a falta de atenção do Poder Público com os imigrantes. “Lá, as pessoas são obrigadas a participar de cursos para conhecer a história do país e os hábitos culturais. Aqui, se não fossem as ONGs, ficariam totalmente desamparadas. Não há apoio do governo.”
Integrantes do Pavilhão Social G10 das Favelas, de Paraisópolis
“Só queremos que o Estado cumpra o seu papel”, estampa a faixa colocada no corredor central do galpão que abriga o coletivo G10 das Favelas, nome inspirado no grupo G7, que reúne as maiores potências mundiais. Com aproximadamente 5 mil metros quadrados, o espaço, conhecido como “Pavilhão Social G10 das Favelas”, fica na comunidade de Paraisópolis, uma das maiores concentrações de pessoas em situação de vulnerabilidade de São Paulo, com cerca de 100 mil moradores.
No Pavilhão Social G10 das Favelas, atuam em conjunto 12 ações distintas de auxílio, que incluem grupo de apoio para pessoas com covid-19; oficina de costureiras para a produção de máscaras; posto médico com três ambulâncias; médicos e enfermeiros; salão para encontros de lideranças; curso de treinamento de brigadistas; horta comunitária; e, em uma sala de 100 metros quadrados, uma agência de recrutamento e recolocação profissional, a Emprega Comunidades.
Iniciativa da pedagoga e ativista social baiana Rejane Santos, 35, que mora em Paraisópolis desde os seis anos, a Emprega Comunidades foi criada em 2017, empregando já mais de 1,3 mil pessoas em empresas e condomínios na região vizinha, o bairro do Morumbi. “Até o início da pandemia, o atendimento era 100% presencial. Muitos moradores não têm acesso à informática ou sofrem para lidar com smartphones”, diz Rejane, cujo cadastro reúne em torno de 16 mil pessoas.
Com as medidas emergenciais de isolamento social, a agência deixou de atender uma média de 50 pessoas por dia, e, por isso, teve que reinventar os seus canais de contato com a comunidade. “Sem termos conhecimento, partimos para as redes sociais, como Facebook, Instagram, LinkedIn e lista de transmissão no WhatsApp. Criamos o programa Adote Uma Diarista, em parceria com o Magazine Luiza, que era o único com atendimento presencial.”
Ao enfrentar a queda de receita, Rejane teve dificuldade para pagar as duas funcionárias. Ao tomar conhecimento do fundo Volta Por Cima, inscreveu-se e foi contemplada com o empréstimo de R$ 15 mil. Em agosto, ganhou de presente cinco notebooks do Grupo Positivo, o que permitiu ampliar a sua estrutura, que contava apenas com um computador e uma impressora. “Tenho planos de abrir novas agências em comunidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belém”, afirma.
Segundo Gilson Rodrigues, presidente do G10 das Favelas, os moradores respeitam e admiram o trabalho desenvolvido nas ações do Pavilhão Social. “Em 12 anos de existência, o local nunca foi assaltado. A sociedade civil tomou as rédeas no combate à pandemia. Criamos nossas próprias alternativas para nos salvar.”
Faixa no corredor do galpão que abriga o coletivo G10 das Favelas
A fim de selecionar os 55 casos para receber os recursos do fundo emergencial Volta Por Cima, entre os quais os citados nesta reportagem, a aceleradora Artemisia priorizou aqueles que sofreram mais impactos na pandemia.
O fundo captou R$ 1,1 milhão da iniciativa privada, de grupos como Votorantim Cimentos, Gerdau, Instituto C&A, Fundação Telefônica Vivo, B3 Social e Fundação Tide Setubal. As empresas contempladas receberam R$ 15 mil, a serem pagos em 12 parcelas sem juros, com carência de seis meses.