Recuperação judicial da Americanas e fechamento de 90 lojas da Marisa expõem problemas do setor que emprega mais de 8 milhões de pessoas. Acesso facilitado à pesquisa de preços e transformação digital são algumas causas do que é considerado um ajuste do mercado pelos especialistas.
Os desafios enfrentados por grandes varejistas acenderam o sinal amarelo no setor. Responsável por 8 milhões de empregos, o segmento amarga os impactos do crédito restrito, da inadimplência e do desemprego, que afetam diretamente a capacidade de consumo das famílias. Isso sem falar nos efeitos da alta taxa de juros.
A Americanas foi a primeira a dar indícios de que algo não estava caminhando bem. No início do ano, divulgou inconsistências contábeis beirando os R$ 40 bilhões. Sem outra saída, a empresa entrou com pedido de recuperação judicial. Mais recentemente, a Marisa comunicou o fechamento de mais de 90 das 400 lojas. O anúncio segue na esteira do resultado do primeiro trimestre, que revelou prejuízo de R$ 149 milhões. Focada na venda de roupas, a rede ainda enfrenta problema como pedidos de falências pelos fornecedores e até despejo por falta de pagamento de aluguéis.
A situação vivida pelas gigantes do varejo é a vitrine das dificuldades do setor. De acordo com o Indicador de Recuperação Judicial e Falências da Serasa Experian, em abril, foram registrados 93 pedidos de recuperação judicial no Brasil, alta de 43,1% na comparação com o mesmo mês do ano anterior. Chama atenção o fato de que o comércio foi o único segmento a aumentar o número de pedidos na comparação com março deste ano: 28 em abril, contra 15 contabilizados no mês anterior. No total, os registros de falência saíram de 81 para 91 na comparação anual — abril de 2022 em relação ao mesmo mês de 2023 —, uma expansão de 12,3%. Referente aos segmentos, o de comércio foi o mais afetado, com 31 pedidos.
“O que estamos vendo acontecer por aqui são problemas gerais do varejo enfrentados no mundo todo, mas que, no Brasil, tem o adicional da crise da Americanas”, comenta o economista André Sacconato, consultor da Federação do Comércio Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
A companhia, por sinal, é investigada por supostas adulterações do balanço, que “maquiaram” resultados financeiros. Diante de um balanço mais atraente, explica Sacconato, o mercado de capitais considerou que o varejo vivia um bom momento e injetou dinheiro. “Quando veio à tona o que aconteceu com a Americanas, mercado e bancos secaram financiamento para o setor”, explica. Com isso, quem já tinha problemas teve que lidar com dificuldades para captar recursos.
Na visão do consultor de varejo Alberto Serrentino, o varejo vive um momento complexo. Segundo ele, a combinação entre juros elevados e empresas com algum tipo de alavancagem dificulta o crescimento. “Essa subida repentina de juros nesse patamar, mantendo-se elevado mesmo com inflação caindo — juros foram a 14% com inflação a 11%. No entanto, esta última desceu a 4%, e os juros não saíram do lugar. Isso está pressionando o custo financeiro do varejo, corroendo a margem e os resultados, dificultando o crédito para o cliente e inibindo demanda. Frente ao advento do problema da Americanas, o crédito privado ficou muito restrito para o varejo, os bancos fecharam as torneiras e o setor ficou muito estrangulado”, elenca.
Com isso, empresas que tiveram dificuldade de liquidez e de conseguir gerar margem para pagar despesas financeiras começam a ver problemas de renegociação de passivos, de atrasos de pagamentos e, eventualmente, de recuperação judicial. “O varejo brasileiro é muito resiliente e sólido, mas está sofrendo em um cenário muito complexo e que já deveria estar numa curva descendente”, diz.
Serrentino considera que é necessário separar os negócios com problemas daqueles que sofrem as consequências de um cenário desafiador pós-pandemia. O que aconteceu com Americanas e Marisa são situações isoladas, na visão do consultor. O primeiro caso, comenta, tinha práticas que não são correntes do varejo e que foram expostas repentinamente, levando a uma crise de confiança e a um movimento de credores e fornecedores que culminou com a recuperação judicial. “Até hoje não temos quadro real, porque não publicaram o balanço.” Já a Marisa enfrenta dificuldades desde 2015, em decorrência dos erros que cometeu no ciclo anterior: expansão desorganizada e uma tentativa de reposicionar a marca para cima, afastando-se do público-alvo e do core de lingerie, sua especialidade.
A despeito de a situação ser mais intensa em razão das peculiaridades locais, conforme destaca Sacconato, o varejo, globalmente, enfrenta três grandes problemas: pandemia, modelo de negócio e cenário econômico. O consultor da FecomercioSP explica que essa comércio vivia um processo de digitalização, mas de maneira mais lenta. Com a pandemia, o setor se viu na necessidade de mudar rápido num momento no qual não tinha receitas suficientes para isso. “Houve uma alta gigantesca no investimento e no endividamento. A pandemia mudou a saúde financeira dessas empresas, que tiveram que se endividar muito em um momento que não tinha receita, e isso foi para o balanço”, diz.
Quanto ao modelo de negócio, o preço praticado atualmente não é sustentável. Um exemplo: um par de tênis comprado pela internet chega a custar 40% menos do que na loja física. Aliado a isso, há ainda a questão do frete grátis. Na internet, o custo para fazer uma pesquisa é de apenas um clique — e isso tornou o consumidor mais sensível ao preço. Segundo Sacconato, a quebra de empresas vista atualmente é um ajuste do mercado. “No início dos anos 2000, aconteceu o mesmo com as áreas, que tiveram de mudar a precificação”, explica.
Ao analisar o cenário econômico, o economista da FecomercioSP adverte que, durante a crise sanitária, diante do crédito a um custo mais baixo, a classe média fez caixa. Agora, as pessoas estão endividadas, a inadimplência aumenta, os juros sobem e a economia para de crescer. “Esses são problemas globais. Vimos, por exemplo, a crise enfrentada pela Amazon e pela Sears [uma tradicional varejista do país que pediu recuperação judicial da sua franquia voltada à venda de eletrodomésticos e ferramentas]”, explica.
Para Claudio Felisoni, professor na Fundação Instituto de Administração, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FIA–FEA/USP) e no Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo (Ibevar), destaca que, além do processo pandêmico, outros aspectos, relacionados à estrutura e à velocidade das comunicações, também contribuíram para o cenário atual. “Desde 1994, com a chegada do real, o varejo vem se transformando. A expansão rigorosa das comunicações impactaram o e-commerce, que já estava se transformando ao longo dos anos e foi acelerado com a pandemia. O que mudou não foi a velocidade, mas a aceleração”, destaca.
Agora, afirma Felisoni, o que estamos assistindo é um processo de integração, um movimento já conhecido. As pessoas mais velhas vão lembrar que, no passado, precisavam se deslocar ao centro da cidade para fazer compras, as lojas nem sequer divulgavam o valor por telefone. Com este item se tornando mais acessível, a competição aumentou. A internet só agilizou as informações e facilitou a comparação dos preços dos produtos pelo consumidor.
“O principal ativo, hoje, é como o varejo lida com o petróleo dos nossos dias, os dados. O varejo, como um todo, é um setor atrasado quando se fala na utilização desses recursos tecnológicos. Na pandemia, houve um processo de mudança, mas muitas dessas ferramentas disponíveis atualmente, no âmbito dos algoritmos de Inteligência Artificial (IA) e processamento de linguagem, por exemplo, são quase desconhecidas no segmento.” O caminho, segundo ele, passa pela operação adequada dos dados.