Edição especial da revista PB analisa a dimensão histórica da Semana de Arte Moderna de 1922 e sua influência no conceito de brasilidade. O movimento modernista substituiu a transposição mecânica de ideias europeias, inspirando novas expressões ao longo das décadas seguintes. A versão digital da edição impressa da PB está disponível na banca virtual BANCAH.
Cem anos depois da Semana de Arte Moderna de 1922, o Brasil de hoje tem muito do que foi idealizado por aqueles artistas. A antropofagia, ato de digerir e não apenas reproduzir a influência estrangeira, fincou-se como instituição não só na cultura, mas na formação social do País. Entretanto, nem tudo são maravilhas nesses paralelos. Crises unem esses dois brasis separados por um século – a começar por um profundo conflito de identidade sociopolítica, visto em ambas as épocas.
Para refletir sobre a dimensão histórica do evento ocorrido no centenário da Independência do Brasil, a influência do modernismo na sociedade e no conceito de brasilidade, a revista PB lança uma edição especial (#467) dedicada ao assunto. Edison Veiga, jornalista responsável pela pesquisa e redação das reportagens, lembra que a Semana foi a primeira mostra coletiva pública na história da cultura brasileira a favor de uma nova linguagem, em oposição à arte de natureza eurocêntrica, por isso, a sua relação com “o que é ser brasileiro”. A chegada da modernidade cravou a reação artística à influência colonialista, imprimindo uma personalidade própria, um jeito brasileiro. Daí sua importância, inspirando novas expressões ao longo das décadas seguintes.
“O evento foi tratado, na época, como coisa de grã-fino. O público mais conservador ficou extremamente chocado com as ousadias literárias, musicais e das artes plásticas”, esclarece a historiadora Marcia Camargos. Para alguns, eles eram uma “horda de bárbaros”. Para outros, os “libertadores da arte”. Foi preciso a decantação do tempo para que a Semana de Arte Moderna transcendesse as notas negativas publicadas nos jornais paulistanos de 1922 e ganhasse espaço nos livros de História. E, claro, demonstrasse seu poder para inventar o próprio fazer artístico nacional. “Enquanto o público brasileiro reagia com surpresa, raiva e até horror a um evento cultural de vanguarda, o Brasil começava a construir um lugar para sua arte no mapa do mundo”, assinala o jornalista Daniel Buarque em artigo que analisa a transformação ocorrida na forma como a arte local passou a ser percebida no exterior.
Desde a segunda metade da década de 1910, as influências do cubismo e do expressionismo, a atonalidade e a ruptura com a métrica, já eram registradas por aqui. “É impreciso dizer que o modernismo ocorre a partir de 1922. Havia uma inquietação latente nos artistas naquele início do século 20. Eles começaram a se modernizar, e foi isso que chegou à Semana de 22”, avalia a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, professora na Universidade de São Paulo (USP).
A mola propulsora de uma renovação estética despontou na Exposição de Arte Moderna, em 1917, de Anita Malfatti (1889-1964). A ideia de fazer das comemorações do centenário da Independência ocasião de ruptura artística passa a se manifestar entre intelectuais, como Oswald de Andrade (1890-1954) e Menotti Del Picchia (1892-1988), em meados de 1921. No final daquele ano, no salão do influente Paulo Prado (1869-1943), o conceito de um festival com manifestações artísticas diversas concretiza-se, lembra o jornalista e escritor Herbert Carvalho em “O mecenas do modernismo”.
Entre outras curiosidades, a edição conta detalhes da mais valiosa obra brasileira, Abaporu, criada em 1928 por Tarsila do Amaral (1886-1973). A pintura integra hoje o prestigiado acervo do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). E sua eventual repatriação por algum museu brasileiro é vista como impossível.
De lá para cá, a Semana de 22 amadureceu enquanto peça indissociável para a compreensão do desenvolvimento da cultura brasileira. Afinal, arte e cultura são a alma de um país e, diga-se de passagem, tiveram papel fundamental na superação do autoritarismo e na construção da democracia. Muito além disso, dali brotaram debates travados até os dias atuais, dos quais, mais uma vez, podemos tirar lições, quando se comemora o bicentenário da Independência, para alcançar um País mais acolhedor e menos conflitante.