Em busca de formações relacionadas ao mundo profissional, o empresariado tem investido em instituições de ensino próprias, destacando-se pelas metodologias inovadoras e aproveitando o nome da empresa que as patrocina. Mas a demanda por aprimoramento e reciclagem se tornou contínua. Além disso, ficou claro que a formação inicial não basta: as organizações estão percebendo que precisam sempre ensinar.
A crescente dificuldade de encontrar jovens recém-formados nas universidades com habilidades prontas para o mundo profissional está impulsionando empresas a estabelecer os próprios programas universitários. Esse fenômeno, que já é uma tendência nos Estados Unidos, também chegou ao Brasil.
No país norte-americano, uma ampla variedade de setores está adotando essa abordagem. É o caso da United Airlines — que, na dificuldade de encontrar pilotos qualificados, adquiriu, três anos atrás, uma escola de formação de profissionais —, ou o do time de futebol americano Dallas Cowboys, que criou, em parceria com uma instituição de ensino tradicional, um MBA em Gestão Esportiva. No Brasil, as empresas estão ingressando no mercado educacional com foco na área de Tecnologia da Informação (TI). A XP Investimentos, por exemplo, lançou, no ano passado, a própria faculdade com cursos de computação. Além de graduação, a XP Educação oferece cursos de pós-graduação e livres.
Um ano antes, sócios do banco BTG também entraram para esse mercado com a criação do Instituto Inteli. Em julho, o grupo Exame anunciou a aquisição da IPD Digital, uma instituição de ensino superior pré-operacional, já autorizada pelo Ministério da Educação (MEC), mas ainda sem cursos lançados. Sob nova administração, foi rebatizada como Faculdade Exame e já oferece cursos de especialização em tecnologia, negócios e ESG.
Apesar dessas iniciativas recentes, a estratégia de estabelecer faculdades próprias não é uma novidade no País e não se limita ao campo da tecnologia. Na área da Saúde, o Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein tem sido uma referência consolidada desde que lançou o curso de Enfermagem em 1989 — desde então, tem ampliado a oferta educacional. Em breve, a Faculdade Sírio-Libanês se juntará a esse grupo, abrindo turmas de Enfermagem, Psicologia e Fisioterapia no próximo ano. Vale ressaltar que, embora esses programas sejam financiados por empresas específicas, não estão restritos a funcionários dessas corporações, sendo abertos a todos os interessados. O grande diferencial do projeto é aplicação de metodologias que visam aproximar o estudante da realidade do mercado.
No Instituto Albert Einstein, uma das características marcantes é o foco no trabalho em equipe, incentivado desde o primeiro dia de aula. As turmas são rotativas, permitindo que os estudantes aprendam a colaborar independentemente dos colegas de grupo. “Conseguimos desenvolver habilidades de comunicação, flexibilidade, tolerância e resolução de conflitos entre os alunos”, garante Elda Maria Stafuzza Gonçalves Pires, coordenadora acadêmica da graduação em Medicina da instituição. Em vez de receberem informações em aulas tradicionais, o aluno estuda a teoria por conta própria em casa, antes das aulas. Quando chegam à faculdade, participam de discussões e respondem a testes de múltipla escolha em grupo. Como essas avaliações são conduzidas online, o professor pode identificar os pontos em que o estudante tem mais dificuldade. Em seguida, o educador apresenta casos clínicos e outros desafios para que os alunos apliquem o conhecimento teórico. “Há uma ênfase em esclarecer e justificar as escolhas uns para os outros, pois aprendemos ao explicar. Nossas aulas são dinâmicas e participativas”, conta Elda.
Segundo a coordenadora, no modelo de estudar na véspera da prova, é comum os estudantes se esquecem do conteúdo posteriormente. O objetivo do novo método é fornecer “uma mala de ferramentas” que funcione bem até para os perfis mais tímidos. “O aluno introvertido podem participar do grupo sem precisar se expor para a classe”, explica. Com uma abordagem de aprendizado diferente, a avaliação também precisa seguir esse paradigma. O teste se assemelha mais com o modelo 360 utilizado por empresas do que às tradicionais provas bimestrais das instituições de ensino. “O aluno é incentivado a refletir sobre o próprio aprendizado, além de avaliar a sua contribuição para o grupo e, também, os pares. Três vezes por semestre, os alunos recebem o feedback dos professores”, explica.
O desenho do curso, com foco em muita prática, foi inspirado em programas de formação de negócios, mas acabou se mostrando eficaz também para disciplinas na área da Saúde. Essa metodologia é aplicada não apenas na Medicina, mas em todas as áreas de ensino superior oferecidas pelo Einstein. Além disso, a oferta de capacitação só tem aumentado recentemente, incluindo turmas de Nutrição, Fisioterapia, Odontologia, Administração e Engenharia Biomédica.
“Os profissionais precisam desenvolver uma visão estratégica, pois é impossível abarcar todo o volume de conhecimentos disponível no mundo atual. Mas eles também precisam desenvolver autonomia para interpretar novos estudos e reconhecer quando não tê o conhecimento suficiente”, defende Elda. Como Medicina ainda é um curso muito recente, a maioria dos egressos segue para residências médicas — e sendo muito elogiados. O maior indicativo de que os jovens saem bem preparados para atender às necessidades do hospital é que 80% dos formados na Enfermagem são contratados pelo próprio Einstein.
Um dos trunfos prometidos pela Faculdade XP é tão mencionado “fit cultural”. “Durante toda a sua jornada, o aluno tem a oportunidade de vivenciar o ecossistema da XP Inc. Isso inclui a participação em projetos e mentorias com os executivos da empresa”, ressalta o CEO da instituição de ensino, Paulo Moraes. Atualmente, são oferecidas três graduações a distância: Análise de Sistemas, Sistemas de Informação e Ciência de Dados.
Outra estratégia fundamental para preparar os profissionais do mercado laboral é a seleção cuidadosa de professores que tenham atuação prática, além de títulos acadêmicos. “O principal diferencial dos docentes da Faculdade XP é o repertório de mercado aliado à robustez acadêmica. Focamos na contratação de pessoas de referência em finanças, tecnologia e inovação. Isto é, nossos alunos aprendem com quem realmente faz”, garante Moraes.
Além de buscar profissionais talentosos para futuras contratações, o CEO enxerga a incursão no setor educacional como uma estratégia de longo prazo para atrair talentos. Por isso, as graduações oferecidas são gratuitas. No entanto, isso não impede que a instituição também busque obter lucros com as atividades pedagógicas. “As graduações com bolsa integral, além de atrair estudantes excepcionais, proporcionam uma exposição significativa à faculdade. Essa visibilidade permite que um grande número de interessados descubra a XP e sua ampla variedade de cursos, muitos dos quais são pagos”, explica o diretor.
A tão almejada “mala de ferramentas”, um conjunto fundamental de competências que capacita os profissionais a solucionar desafios inéditos, tornou-se essencial num mundo que está em constante evolução tecnológica. Por isso, ao preparar os quatro cursos de TI ofertados pelo Inteli, a escolha foi adotar uma abordagem “radical” baseada em projetos. Em vez de focar exclusivamente no aprendizado de tecnologias ou linguagens de programação específicas, os alunos são incentivados a selecionar o enfoque mais apropriado para cada nova aplicação que enfrentam. O Inteli é uma instituição sem fins lucrativos que surgiu a partir do desejo dos sócios do banco BTG de formar profissionais de TI mais capacitados, com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento do País.
Segundo Maira Habimorad, presidente do Inteli, os estudantes desenvolvem projetos voltados a problemas reais. “As competências são adquiridas não apenas na sala de aula e por meio da leitura, mas, a cada bimestre, são postas em prática em projetos diretamente relacionados à sociedade. Estamos, atualmente, no segundo ano da faculdade e já entregamos 201 protótipos aos nossos parceiros”, cita. Até a formatura, cada estudante participará ativamente de 16 projetos reais, quatro por ano. São desafios que podem ser apresentados por uma grande empresa, uma startup, uma ONG ou um órgão da gestão pública. Enquanto trabalham nas resoluções dessas questões, os estudantes integram conhecimentos de computação, negócios e liderança. Quando ingressarem no mercado, já estarão adaptados para lidar com situações como dar e receber feedback, exercitar o pensamento crítico e propor inovações. “Eles adquirem um conjunto de habilidades para solucionar problemas e colaborar com a equipe. Nosso projeto promove um ponto de vista multidisciplinar que também incorpora princípios éticos e de negócios”, elenca Maira.
A oferta de experiências práticas apesenta ainda uma vantagem estratégica adicional ao manter os alunos motivados a concluir os estudos. De acordo com o Mapa do Ensino Superior do Brasil, do Instituto Semesp, as faculdades na área de Informática enfrentam uma taxa de desistência de 66,5%, muito acima da média geral de 55,5% em todos os outros. Embora o Inteli ainda não tenha formado a sua primeira turma, a taxa de desistência é baixa, situando-se em apenas 7%, cuja maior parte ocorreu ainda no primeiro semestre.
Apesar das questões sistêmicas, como a demora na implementação de mudanças nas diretrizes curriculares estabelecidas pelo Ministério da Educação (MEC), a baixa qualidade dos cursos oferecidos é um dos principais motivos pelos quais os recém-formados frequentemente chegarem ao mercado de trabalho despreparados. “Estamos vivendo uma precarização na formação superior. Isso decorre da superoferta de vagas, o que gera um desequilíbrio significativo entre oferta e demanda, resultando em queda de preço nas mensalidades e deterioração na qualidade dos produtos”, afirma João Vianney, sócio da consultoria Hoper Educacional.
Nesse contexto, o surgimento de empresas consolidadas nos seus setores que abrem instituições de ensino indica que investir em cursos com o próprio “selo de qualidade” pode ser uma oportunidade valiosa. Esse fenômeno é acompanhado por uma percepção positiva em relação ao prestígio de ter o nome de uma grande empresa no currículo. Uma pesquisa realizada pelo Quest Research Group, nos Estados Unidos, em 2020, apontou que mais pessoas recomendariam um estágio no Google do que um diploma de Harvard no currículo, com uma margem de 60% contra 40%. “Apesar dos desafios, o ensino superior pode ser altamente lucrativo. As propostas das empresas trazem um toque de modernidade, o que bem-visto pelo mercado”, observa Vianney. Ele ressalta, porém, que tanto os estudantes quanto as empresas contratantes devem permanecer vigilantes, pois a modernização pode ser superficial.
No entanto, outra abordagem para fechar a lacuna entre as habilidades reais e as exigidas no ambiente de trabalho é por meio das universidades corporativas, que promovem programas de formação para funcionários já empregados. Nessas iniciativas, o foco vai além da qualificação inicial, abrangendo o upskilling (aperfeiçoamento na mesma área) e o reskilling (aprendizado de novas habilidades para funções diferentes). Adriano Mussa, diretor acadêmico da Saint Paul Escola de Negócios, argumenta que é natural que as faculdades não possam preparar completamente os profissionais para as suas carreiras durante sua trajetória. “Com o mundo em constante evolução, a necessidade de atualização é constante. É muita pretensão achar que as faculdades podem ensinar tudo”, afirma ele.
Nesse contexto, é essencial que pessoas e empresas reconheçam o papel específico de diferentes tipos de formação. “Não podemos confundir a universidade com o ensino técnico. Para exercer a função de padeiro, a pessoa faz o curso e sai no dia seguinte fazendo pão. A faculdade deve dar competências de base: pensamentos crítico e analítico, criatividade e liderança”, enfatiza Mussa, que defende que a graduação deve fornecer habilidades fundamentais, capacitando os indivíduos a aprender ao longo da vida, em consonância com o conceito de life long learning. A Saint Paul, inicialmente focada em cursos in company, agora oferece graduações e pós-graduações para o público em geral. “Personalizamos nossos programas, mantendo um diálogo constante com as empresas para entender suas necessidades. Essa interação também nos ajuda a manter nossos cursos atualizados, captando tendências de mercado relevantes”, relata Mussa.
Mas será que cabe às empresas continuar a fornecer educação? O diretor da Saint Paul acredita que sim, especialmente porque os governos em todo o mundo têm lutado para ofertar capacitação adequada a trabalhadores já empregados. Mussa argumenta não ser viável deixar toda a responsabilidade para os indivíduos. “Embora haja uma parcela de responsabilidade individual, no geral, acreditamos que as organizações assumirão cada vez mais esse papel”, afirma. Não é necessário que todo aprendizado adicional ocorra mediante programas formais de ensino, como pós-graduações. Mentorias com colegas mais experientes e cursos rápidos durante o expediente são modelos alternativos que podem ser úteis, pois a busca incessante por esses cursos pode ser exaustiva.
Um exemplo notável é Unibrad, universidade corporativa do Banco Bradesco, criada há dez anos, que foi eleita a “melhor universidade corporativa do mundo” no Global CCU Awards de 2017. O seu portfólio abrange desde podcasts de 2 minutos até MBAs com duração de 360 horas. Muitos desses recursos educacionais são oferecidos gratuitamente a todos os funcionários, incluindo cursos de inglês online, do nível básico ao avançado.
Para se ter uma ideia do impacto da Unibrad é a implementação da BIA, uma assistente virtual para interação com clientes. Para desenvolver a tecnologia, o Bradesco investiu em áreas relacionadas à tecnologia em nuvem, buscando capacitar equipes e melhorar processos. Outro benefício destacado pela instituição é a promoção de uma cultura de aprendizado contínuo na organização. A universidade corporativa não se limita à formação, mas também incentiva os desenvolvimentos pessoal e profissional constantes. “Isso aumenta a motivação dos colaboradores, melhora o engajamento e contribui para um ambiente de trabalho mais estimulante”, destaca o Bradesco, em comunicado oficial.
Ivo Dall’Acqua Júnior, vice-presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), acredita que o ensino corporativo, em geral, traz benefícios compartilhados. “O empregado recebe um aprimoramento profissional, enquanto as empresas ganham um funcionário com as habilidades necessárias”, afirma Dall’Acqua Júnior. Embora seja louvável que as organizações desempenhem um papel na educação, o desafio global é qualificar e reciclar pessoas que estejam fora do mercado formal de trabalho. “Com a crescente digitalização das atividades econômicas, muitos empregos tradicionais estão sendo substituídos, exigindo novo perfil profissional e excluindo muita gente. Por isso, o conceito da transição justa que começou a ser debatido formalmente, neste ano, na Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, ressalta o representante da FecomercioSP.
Essa “transição justa”, portanto, representa a aspiração de ser criarem ambientes laboral e econômico que garantam o desenvolvimento pessoal daqueles que estão fora do mercado de trabalho e enfrentam dificuldades para se reintegrarem, ao mesmo tempo que se evita a exclusão de mais gente. Transformar essa vontade em realidade requer um esforço abrangente e colaborativo. “Para resolver essa situação, precisamos de políticas de Estado, de educação básica de qualidade e de projetos e ações também no longo prazo”, explica Dall’Acqua Júnior. Ainda que essas políticas públicas sejam essenciais nesse processo, o setor empresarial também pode contribuir significativamente.
Um exemplo bem-sucedido é o curso de síndico profissional oferecido pela universidade corporativa do Sindicato da Habitação (Secovi). “Essa instituição não apenas fornece o conhecimento aos funcionários dos filiados, como também para quem quer ingressar no mercado. A profissão de síndico profissional está em alta demanda, e o impacto desse curso acaba se estendendo à melhora de vida de muitas pessoas”, relata o vice-presidente da FecomercioSP.
É fato que os programas de qualificação oferecidos pelas empresas desempenham um papel fundamental no cenário empresarial. Além da abertura de oportunidades, tais iniciativas mantêm o estímulo das equipes ao constante aprendizado, um forte aliado no acompanhamento das transformações e tendências do mercado. Mais do que isso, preveem um ambiente de negócios com profissionais mais engajados e com maior produtividade.