A raiz do problema

28 de junho de 2023

Em 1963, o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em relação à sua população, o PIB per capita, era equivalente ao da Coreia do Sul. Os dois países, entretanto, tiveram trajetórias distintas. Seis décadas depois, o PIB per capita sul-coreano é mais de três vezes superior ao brasileiro. Ressalvadas as singularidades históricas e demográficas, a educação foi o motor que acelerou a diferença socioeconômica entre ambas as nações.

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Enquanto a Coreia do Sul investiu pesadamente na formação educacional da sua população nas últimas seis décadas, o Brasil entrou na corrida muito tarde – e o ensino começou a ser prioridade dos gestores públicos, de fato, só após a Constituição de 1988, quando a educação passou a ser um direito de todos os brasileiros. Nesta reportagem, publicada na edição 475 em comemoração aos 60 anos da PB, a revista foi a fundo na raiz do problema.

Os estudantes sul-coreanos apresentam desempenho bem superior aos do Brasil e mesmo de países mais ricos em testes internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Para se ter uma ideia do avanço da nação asiática, em 1980, o PIB per capita da Coreia do Sul era 17,5% do PIB dos Estados Unidos, ao passo que o brasileiro correspondia a 39% do PIB dos norte-americanos. Quase quatro décadas depois, em 2019, o PIB per capita sul-coreano passou a representar 66% do estadunidense, enquanto o do Brasil representava apenas 25,8%. Os dados de levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

E qual seria a situação do Brasil caso tivesse acompanhado a determinação (e a vontade política) da Coreia do Sul nos últimos 60 anos quanto a investimentos e aprimoramento do sistema educacional? Um país mais rico, certamente. A conclusão é do estudo Educação e Crescimento Econômico, divulgado em fevereiro deste ano pela Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), com apoio da Fundação Lemann.

Entre as principais conclusões do estudo, que levou em consideração um conjunto de pesquisas recentes realizadas por instituições como Banco Mundial, Insper e Universidade Stanford, fica clara a evidência de que a qualidade da educação é associada a maiores taxas de crescimento econômico. Além disso, o incremento da qualidade do ensino básico nos municípios brasileiros representa ganhos expressivos na geração de empregos entre jovens, e a escolaridade está ligada à produtividade das pessoas. Este aumento de produtividade entre os mais escolarizados explica boa parte da diferença da renda entre os trabalhadores.

 “A educação é um componente fundamental do capital humano, que é o conjunto de habilidades e competências produtivas adquiridas por uma pessoa ao longo de sua vida. Além de tornar uma pessoa mais produtiva, uma sociedade com pessoas mais educadas é capaz de criar um melhor ambiente geral de negócios e mais propício às inovações tecnológicas”, afirma André Portela, professor da FGV e coordenador do estudo.

No estudo, os autores citam números que justificam a educação como fator de desenvolvimentos econômico e social. Caso o desempenho médio dos brasileiros, em testes como o Pisa, subisse até atingir o patamar dos alunos de países mais bem avaliados nas provas internacionais, o PIB per capita brasileiro poderia crescer até 2,2% ao ano.

 “Nossa maior falha foi começar tardiamente o acesso amplo da oferta educacional para toda a população infantojuvenil. Enquanto países como França, Inglaterra e Estados Unidos alcançaram taxas de matrículas de mais de 90% das crianças em idade escolar no fim do século 19, nós alcançamos estes resultados quase cem anos depois, no fim do século passado”, observa Portela.

O retorno do investimento em educação é maior em países de renda mais baixa, segundo os pesquisadores. Garantir o acesso à escola e, ao mesmo tempo, o aumento das habilidades dos alunos elevaria o PIB per capita em até 28% para as nações de renda média-baixa, 16% para as de renda média-alta e menos de 10% para as de renda alta.

MELHORIAS SISTÊMICAS

Para além da questão econômica, a qualidade no ensino acarreta melhores desempenhos sociais e de segurança pública. Municípios brasileiros com bons índices de educação apresentam maiores taxas de geração de empregos para jovens e menores índices de homicídio, conforme mostra pesquisa realizada no ano passado pelo Insper e apoiada pelo Instituto Natura. Nas localidades mais bem posicionadas em um indicador de qualidade medido pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e Enem, os autores constataram aumento de até 200% de ocupação profissional entre jovens e redução de 25% nos homicídios.

“Indivíduos com maior escolaridade tendem a ter melhores empregabilidade e renda, afastando-os de situações de vulnerabilidade econômica e, portanto, de vulnerabilidades sociais”, explica Rosier B. Custódio, advogada e mestra em Sociologia, com atuação em políticas públicas de direitos humanos, sistema de justiça e segurança pública. “Os espaços escolares, quando adequados, tendem a contribuir não apenas para a consolidação do conhecimento formal, mas também para os processos de socialização, pactuação e ética de grupo, que geram uma estrutura de proteção social e evitam o aliciamento pelo crime”, destaca ela, que chama a atenção para os dados da população carcerária brasileira medidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Infopen). “Mais de 80% das pessoas têm entre 18 e 45 anos, e cerca da metade é formada por pessoas analfabetas ou com ensino fundamental incompleto. Isto é, nossa população carcerária é jovem e de baixíssima escolaridade”, alerta.    

Elevar o acesso à escola, de acordo com os pesquisadores, é mais relevante em países onde a educação não seja universalizada, mas o maior potencial de crescimento econômico é proveniente das habilidades dos alunos. Isso significa que, mais importante do que a quantidade de horas na escola é a qualidade do ensino oferecido aos estudantes. “Tivemos avanços significativos no acesso, com aumento expressivo no número de matrículas, mas que não se refletiu na mesma proporção em ganhos na aprendizagem dos estudantes nem na permanência deles na escola”, ressalta Daniel de Bonis, diretor de Conhecimento, Dados e Pesquisa da Fundação Lemann.

O Brasil, de fato, obteve avanços importantes no acesso à educação nas últimas décadas. Em 1970, 91% das crianças de 4 a 6 anos e 60% dos adolescentes de 15 a 17 anos estavam fora da escola, segundo dados da Organização Não Governamental (ONG) Todos pela Educação. Em 2019, este número foi de apenas 6%, em ambas as faixas etárias. “Não é raro escutarmos alguém dizer que a escola pública brasileira era muito melhor no passado. No entanto, mesmo que fosse de melhor qualidade, era para poucos e excluía milhões de estudantes”, argumenta Natália Fregonesi, analista de Políticas Educacionais da ONG.

Segundo Natália, além do acesso aos bancos escolares, houve avanços importantes na aprendizagem dos estudantes. Entre 2007 e 2019, de acordo com informações do Todos pela Educação, o Brasil mais do que dobrou o porcentual de crianças com aprendizagem adequada em Língua Portuguesa e Matemática, nos anos iniciais do ensino fundamental.  Entretanto, o cenário ainda é preocupante: em 2019, cerca de quatro em cada dez alunos do quinto ano do ensino fundamental não tinham aprendizagem adequada em Língua Portuguesa. Em Matemática, são cinco em cada dez. “As taxas de acesso, permanência, conclusão e aprendizagem são sempre menores entre os estudantes negros e os mais pobres. É preciso, portanto, avançar em uma agenda sistêmica para a educação básica, que garanta uma educação de qualidade para todos”, afirma Natália.

 “O que importa no fim é o que o aluno ou a aluna aprende e incorpora em seu capital humano ao longo do processo educacional. Este deve ser o foco”, acrescenta Portela, da FGV, que cita como exemplo a educação integral. “Faz sentido termos educação integral se o tempo adicional na escola, de fato, resultar em aprendizado e incremento de capital humano que de outra maneira não ocorreria. Caso contrário, pode ser desperdício de recursos.”

NAS PÁGINAS DA PB

A qualidade do ensino brasileiro e a simetria entre educação e desenvolvimentos econômico e social são temas presentes nas páginas de Problemas Brasileiros desde os primeiros anos de circulação da revista. “Não basta alfabetizar as populações. É necessário fornecer à inteligência, desde o curso primário, os instrumentos indispensáveis de comunicação e de abstração”, escreveu o articulista e professor Dorival Teixeira Vieira no artigo “Educação para o desenvolvimento”, publicado na edição 69, em dezembro de 1968. No mesmo texto, Vieira criticava os baixos investimentos públicos em educação e que penalizavam principalmente os mais pobres, cujos resultados seriam sentidos no crescimento da Nação. “O sistema educacional brasileiro não está ajustado às necessidades do desenvolvimento econômico nacional.”

Em agosto de 1972, Teixeira Vieira retomou o tema de forma semelhante ao abordado cinco décadas mais tarde pelos pesquisadores da FGV: a educação como motor de desenvolvimento econômico nacional. No texto, Vieira critica a falta de incentivo à formação dos estudantes no sentido de oferecer ao País um jovem qualificado e apto ao mercado de trabalho, seja pelos cursos superiores, seja pelos profissionalizantes.

“A rede oficial de ensino nunca se preocupou muito com o ensino profissional. Nossas preferências têm sido as de um ensino de tipo acadêmico, fazendo da escola uma ponte de passagem entre a ignorância total e o saber universal dos cursos superiores. Mas muito pouco se fez no sentido de dar ao aluno uma profissão”, criticou Vieira, no artigo seguido de debate, que ocupou várias páginas da edição 108 da revista.

Dentre os pontos levantados, estavam o achatamento dos salários dos professores, as condições físicas precárias de muitas escolas públicas e um caldeirão de outros problemas cujas consequências seriam o incentivo cada vez maior do ensino particular e a proliferação de cursinhos pré-vestibulares, que supriam as deficiências do ensino público no preparo dos alunos que disputavam uma vaga nas universidades.

O alerta (de mais de 50 anos atrás) do articulista da PB continua atual, já que a valorização do magistério é um dos pontos principais destacados pelos especialistas para melhoria do setor. “Hoje em dia, 2% dos jovens que frequentam o ensino médio querem ser professores. A carreira do docente não é apenas salário. Ele é um profissional da aprendizagem e deve ter o devido reconhecimento pela sua carreira”, diz a educadora Pilar Lacerda, que integra a Agenda 227, movimento apartidário que reúne entidades civis em defesa das crianças e dos adolescentes apoiado por instituições como Itaú Social e Unicef.

O tom eloquente do artigo e as críticas de Vieira aos currículos educacionais dos anos 1970, marcado por mudanças no sistema de ensino que atendiam às diretrizes da ditadura militar, dentre elas a transformação do ensino de História e Geografia no ensino básico em novas disciplinas, como Estudos Sociais e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), não foram bem digeridos pelo regime. O então ministro da Educação e Cultura (MEC), Jarbas Passarinho, escreveu uma carta à redação, publicada na edição 111 da PB, em novembro de 1972, em que frisava o seu “profundo desapontamento” com o conteúdo crítico às reformas de ensino promovidas pelo governo federal, afirmando que elas não eram “realistas”.

Teixeira e a revista não se intimidaram com a crítica do ministro e o debate sobre educação – e a importância do ensino para o País continuaram nas edições seguintes, com ênfase na busca pela democratização do ensino e na importância de modalidades como o ensino capacitado. “No Brasil, o ensino profissionalizante é antes um ideal a atingir do que uma realização em marcha”, escreveu Teixeira no artigo “O ensino profissionalizante no Brasil”, publicado na edição 151 de PB, em março de 1976.

Na segunda década do século 21, esta marcha plena em direção à educação profissionalizante ainda está longe de acontecer. Segundo os especialistas no assunto, a universidade de qualidade deve ser acessível a todos os brasileiros que desejam ingressar no ensino superior, mas é necessário que haja boas alternativas para quem deseje trilhar outros caminhos, como o ensino profissionalizante.

FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Levantamento feito pela Fundação Roberto Marinho e pela Itaú Educação e Trabalho, em parceria com 34 organizações e entidades civis que trabalham com a inclusão de jovens brasileiros – em especial aqueles que pertencem às camadas mais baixas da população –, aponta falhas na formação desses jovens para o mundo laboral. De acordo com 67,65% das entidades, faltam cursos de qualificação profissional e de formação técnica adequados para o acesso desta população ao mercado de trabalho. Além disso, para 58,8% das organizações ouvidas, os cursos que existem não estão atualizados e sintonizados com as vagas disponíveis.

“O ensino técnico é uma peça muito importante para a composição de um bom sistema educacional”, afirma a economista e professora Claudia Costin, atual diretora da FGV, que já ocupou diversos cargos públicos de primeiro escalão na administração pública brasileira ligados à educação, à cultura e à modernização estatal. Claudia lembra que apenas 21% dos adultos brasileiros entre 25 e 34 anos possuem diploma universitário. Uma parte considerável desta parcela de pessoas que chegou, no máximo, ao ensino médio, poderia ampliar os horizontes mediante uma formação técnica adequada

A ex-ministra do governo Fernando Henrique Cardoso ainda cita o caso da Coreia do Sul, em que os alunos do ensino secundário podem optar por uma formação profissionalizante em cursos ligados à tecnologia de ponta, setor que responde por boa parte do PIB do país. “Se o aluno trabalhar por três anos na área escolhida, fica dispensado de prestar o disputadíssimo exame de acesso às universidades de engenharia de lá, além de conseguir eliminar disciplinas”, explica Claudia.

Para Pilar Lacerda, da Agenda 227, o ensino técnico não pode ser interpretado apenas como destino para aqueles que, por algum motivo, não consigam ingressar na universidade. “É uma excelente opção para os jovens que não querem entrar para a universidade. Não pode ser algo destinado apenas a jovens pobres. É uma oportunidade muito boa quando feita com qualidade, de maneira estruturada e que garanta a formação dos alunos”, destaca.

DISTÂNCIA INCLUSIVA, MAS PREJUDICIAL

A covid-19 acelerou uma modalidade de educação que estava ganhando musculatura antes mesmo da pandemia: o Ensino a Distância (EaD). Apesar de estar muito ligado à internet e às novas tecnologias, aprender longe da sala de aula é um processo que começou com os antigos cursos por correspondência e os telecursos: programas educativos que constavam da grade de programação das emissoras de televisão e se tornaram populares a partir dos anos 1970.

A “teleducação”, como eram chamados os cursos a distância na época, foi tema de reportagem na edição 141 de PB, em maio de 1975, em que se discutia o papel das emissoras educativas, em especial as estatais, como contraponto às grandes redes comerciais. Em dezembro de 1982, na edição 118, reportagem de capa antevia o impacto da chegada dos computadores às salas de aula e à teleducação.

Numa época analógica em que a internet não existia sequer nos filmes de ficção científica, e as máquinas de escrever mecânicas ainda reinavam absolutas em escritórios, a reportagem já previa modalidades de educação a distância, amparadas pela tecnologia, nas quais a sala de aula seria levada à casa do estudante, e não o contrário. Um dos métodos discutidos na ocasião era o envio do material didático pelo correio, ao passo que as aulas poderiam ser acompanhadas pela televisão, os famosos telecursos.

Apesar das facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias e a popularização do EaD, em especial no ensino superior, o modelo é visto com cautela pelos educadores, em especial nos primeiros ciclos de ensino. “Na educação básica, o contato e as formações de valores e de caráter ainda se apresentam com um papel muito importante. É difícil imaginar a EaD ocupando este espaço com maestria”, afirma Marcelo Xavier, diretor de Ensino da Inspira Rede de Educadores.

A mesma cautela é adotada por Natália Fregonesi, analista do Todos Pela Educação. “Os estudantes do ensino básico têm, na escola, a possibilidade de aprender a se relacionarem, trabalhar em grupo e interagir com o diferente, o que é muito mais difícil de ocorrer em um ambiente virtual. Este não parece ser o caminho mais viável para a educação brasileira”, pondera Natália.

Para André Portela, da FGV, o EaD pode ser incorporado ao sistema de educação, mas de maneira complementar à modalidade presencial. “A incorporação das Tecnologias de Informação (TIs) no processo educacional amplia os canais de aprendizagem e dialogam bem com o mundo contemporâneo dos jovens”, argumenta o professor.

Leia a matéria publicada na edição 475 em comemoração aos 60 anos da PB.

Marcus Lopes Débora Faria
Marcus Lopes Débora Faria