A volta às aulas no Brasil, após quase dois anos de pandemia de covid-19, expôs um cenário preocupante: milhares de carteiras escolares vazias em todo o País. De acordo com um levantamento de dezembro do Todos pela Educação, cerca de 244 mil crianças e adolescentes estão fora das escolas.
O número aponta um aumento de 171,1% no abandono das escolas em relação a 2019, ano anterior à pandemia. O estudo mostra ainda que os estudantes que não frequentavam instituições de ensino há dois anos representavam 0,3% do total. Agora, este percentual é de 1% e corresponde ao maior nível dos últimos seis anos. O abandono do ensino pelos alunos, fenômeno chamado de evasão escolar, produzirá efeitos profundos no desenvolvimento político, econômico e social do País. “O Brasil vinha avançando no processo de acesso à escola, o número de matrículas aumentava, bem como o de jovens que concluíam o Ensino Médio. Estávamos em um importante momento, interrompido pela pandemia”, afirma Ivan Gontijo, coordenador de Políticas Educacionais do Todos pela Educação.
Contudo, com as restrições e medidas de isolamento impostas para conter a disseminação do coronavírus, uma das áreas mais impactadas foi a da educação. Dois fatores, ressalta Gontijo, explicam a exclusão escolar nos últimos anos. “Um deles tem a ver com motivos internos, quando o aluno não vê a escola como algo interessante e se desengaja; o outro está relacionado a motivações externas, como queda da renda das famílias, necessidade de buscas financeiras e gravidez”, diz o coordenador. “Na pandemia, houve uma conjunção desses fatores. Soma-se a isso o fato de o ensino remoto ser desestruturado e menos engajado.”
O levantamento, produzido com base em informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), denota também um agravante: alunos em situação de atraso escolar. Segundo os dados, em 2019, cerca de 396,8 mil cursavam a Pré-escola, etapa destinada a crianças de 4 a 5 anos. Já em 2021, existiam 702,7 mil, o que indica um crescimento de 77%. A pesquisa constatou, além disso, uma redução no percentual de jovens de 15 a 17 anos matriculados no Ensino Médio ou que concluíram essa etapa. Em 2019, o percentual era de 77% e, em 2021, caiu para 74,9%.
A evasão escolar, segundo o advogado especialista em Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, deve ser tratada como o primeiro sinal de alerta de que uma criança ou um jovem está em risco. “Diante do abandono, a escola e a rede de proteção social devem verificar as razões implícitas em cada caso e fazer a busca ativa e a reaproximação da criança e do adolescente com o ambiente escolar”, afirma.
Segundo ele, diversos fatores sociais podem estar relacionados à saída das crianças e dos adolescentes da escola. “Fome, miséria, desemprego dos pais, trabalho infantil, exploração sexual, envolvimento com tráfico de drogas, necessidade de cuidar dos irmãos mais novos, violência doméstica e comunitária são algumas das motivações.” Para o advogado, porém, as escolas não conseguirão reverter este quadro sozinhas. “É preciso uma atuação conjunta com os conselhos tutelares, assistências sociais, áreas da saúde e programas voltados à empregabilidade e à renda.”
Os impactos da evasão e do atraso educacional, avalia Gontijo, recaem sobre segmentos determinantes. “Países com população menos escolarizada têm produtividade menor. No caso brasileiro, pagamos este preço até hoje”, lamenta. “A falta de acesso à educação produz desde disseminação de informações falsas até aumento nos indicadores de criminalidade”, afirma. “Não à toa, a população tem dificuldade para entender como funciona uma democracia, compreender o contexto político.”
Além dos impactos coletivos, o abandono escolar afeta diretamente a vida de crianças, adolescentes e suas famílias. “Quando eles estão fora da escola, que serve como mecanismo de proteção social, tendem a se alimentar pior e a sentir os efeitos de forma multidimensional”, explica. “No caso dos adolescentes, tudo indica que terão uma inserção mais fragilizada na cidadania.”
Outro dado levantado pela organização Todos pela Educação, em fevereiro, é o percentual de crianças que não sabem ler nem escrever. O número cresceu 66,3% entre os anos de 2019 e 2021. Ao todo, são 2,4 milhões de crianças brasileiras que não estão alfabetizadas nessa faixa etária. “Trata-se de uma habilidade básica e transversal que impacta toda a vida escolar. É diferente de não saber uma equação do segundo grau”, comenta Gontijo. Os dados refletem as desigualdades sociais e raciais do País: 47,4% das crianças pretas não estão totalmente alfabetizadas. Entre as pardas, o índice é de 44,5%. Já entre as brancas, o número é de 35,1%. Nos domicílios ricos, o percentual é de 16,6%, entre os pobres, 51%.
“A pandemia gerou grande defasagem e muitos prejuízos a estudantes de escolas públicas, já que estados e municípios não garantiram qualidade, tampouco estrutura necessária para o ensino a distância”, critica Alves. “Com isso, a desigualdade educacional entre pobres e ricos também aumentou, já que estudantes de escolas privadas tiveram condições superiores em relação aos de instituições públicas.”
Embora os dois últimos anos tenham trazido retrocessos à educação nacional, o coordenador do Todos pela Educação acredita que o cenário é reversível. “Não é uma solução de curto prazo ou um problema que se resolva em um mês ou um ano. É um processo para os próximos três anos”, esclarece. As estratégias para combater a evasão escolar passam, segundo ele, pela busca ativa do retorno de crianças e jovens ao ambiente escolar, pelo suporte emocional e pela recomposição da aprendizagem. “É preciso passar mais tempo na escola, acelerar o aprendizado com materiais didáticos específicos, aulas de reforço e recuperação.” Para ele, as redes estaduais têm o papel de dar apoio aos municípios com dificuldades para treinar professores. O governo federal, por sua vez, tem a função de dar diretrizes, apoio técnico e financeiro. “Mas tem tido uma postura bastante omissa.”
Um dos mecanismos para reduzir a evasão escolar, apontado por Alves, é a inclusão de psicólogos e assistentes sociais no ambiente escolar. “A lei que trata da obrigatoriedade desses profissionais deveria ter sido colocada em prática em dezembro de 2020, mas não houve concursos públicos para a contratação em escolas públicas municipais e estaduais”, afirma o advogado. “O governo federal deveria cobrar de estados e municípios o cumprimento da lei e estabelecer um plano nacional de enfrentamento à evasão escolar após a pandemia, garantindo recursos suplementares para a busca ativa.” Além disso, o especialista defende que sejam criadas redes de enfrentamento à evasão com profissionais da assistência social, de conselhos tutelares, das promotorias da infância e entidades sociais.
Os conselhos, explica ele, devem orientar os pais sobre a necessidade de garantir a matrícula e a frequência dos filhos. “Em casos mais graves, [as famílias] podem responder por descumprimento de deveres do poder familiar, nas Varas da Infância e Juventude, e até criminalmente, por abandono intelectual”, diz. “Esses órgãos devem verificar as necessidades e causas relacionadas à evasão, para que as famílias sejam incluídas em programas de apoio sociofamiliar.”
Para ampliar as buscas por estudantes que abandonaram a escola, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) criou uma plataforma tecnológica para apoiar estados e municípios na identificação de crianças e adolescentes fora da escola e, assim, proporcionar a volta às salas de aula, sua permanência e o aprendizado.
Com o nome de Busca Ativa Escolar em Crises e Emergências, a ferramenta funciona como um guia que permite às pessoas enviarem informações por aplicativo ou mensagens de texto. A partir daí, equipes intersetoriais ajudam a família a fazer a matrícula na etapa adequada. “No Brasil, o desafio já era muito grande. Agora, este processo de recuperação vai ser ainda mais difícil, mas é preciso criar estratégias”, diz Gontijo. “Há estados com exemplos muito bons, que incluem programas de bolsas, alunos atuando como monitores e propostas de ensino híbrido.”