Habilidades, habilidades, habilidades

06 de março de 2024

Educadores voltados à preparação para o mercado de trabalho enfrentam o desafio de tentar desenvolver habilidades nos jovens em vez de promover a aquisição de conhecimentos, algo mais voltado à memorização de conteúdos específicos. Seja no ensino superior, seja no técnico, essa busca significa estimular o uso da inteligência artificial (IA) e outras tecnologias no processo educativo, mas não como um fim em si mesmas. Elas devem ser instrumentos, como um “copiloto” para certas tarefas, de modo que os humanos tenham mais tempo para aprender a fazer perguntas e pensar de forma crítica e criativa.

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A questão de como fazer isso é uma necessidade global: todos os países precisam entender como melhorar certas habilidades dos estudantes. “Eu viajo pelo mundo, falo com diferentes setores, das indústrias criativas às manufaturas avançadas, e todo mundo diz que a próxima geração precisa de habilidades. A educação não serve apenas para a manutenção do mundo acadêmico, também serve muito para fornecer um canal útil para a próxima geração de trabalhadores, algo que é crítico para a nova fase da economia global”, afirma Rupert Daniels, diretor de Serviços e Habilidades do departamento de Negócios e Comércio do Reino Unido, em um encontro em Londres com gestores educacionais do Brasil. Segundo ele, não existe saída a não ser o sistema de educação se adaptar às novas necessidades do mundo do trabalho. Essa adequação se dará nas metodologias, nas didáticas e nos formatos de ensino, mas sempre precisando do apoio de novas tecnologias — e, segundo ele, nessa seara, ainda há muito o que fazer. “Em todo o mundo, o investimento em tecnologias é só 3% do que se gasta em educação. A gente deve usar a tecnologia da perspectiva pedagógica, assim como para aumentar a diversidade e a inclusão”, ressalta.

Os próprios estudantes parecem ávidos por essas novas aprendizagens, mas nem sempre são ouvidos por instituições e professores. “Uma das coisas que vimos na nossa pesquisa estudantil global foi que os estudantes estão bastante interessados, porque sabem que precisarão usar ferramentas de IA, por exemplo, no local de trabalho. E eles estão procurando instituições que possam combinar esses elementos no treinamento”, afirma Nina Huntemann, chief academic officer da empresa Chegg, citando um levantamento realizado pela sua empresa em 2023 com 17 mil estudantes de 21 países, incluindo o Brasil. Embora tenham buscado respostas dentro das instituições, esses alunos nem sempre encontram o que procuram, o que gera um certo desencanto com a educação formal. “Mas eu sou solidária [com professores e instituições], porque isso entrou em cena muito rapidamente, e todos nós estamos aprendendo. Para criar um programa de habilidades, um programa de alfabetização em IA, nós, acadêmicos, precisamos ser cuidadosos ao construí-lo. Então, há mesmo uma lacuna neste momento. Mas precisamos fechá-la rapidamente, porque os alunos estão se formando agora”, pondera Nina.

A capacidade de dialogar e fazer boas perguntas são algumas das habilidades que não podem esperar, defende Carla Aerts, consultora do Comitê de Educação Digital e Iniciativas de Futuro da Universidade Cambridge. Segundo ela, “o foco recente tem sido em STEM [acrônimo para Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática]. O conceito dos usos da linguagem e, mais importante, da conversação e do diálogo, muitas vezes, é posto de lado na educação. A linguagem é vista como meramente instrucional. Portanto, esse tipo de mudança que veio com as IAs e o foco no diálogo — ainda que seja entre máquina e pessoa — estão nos levando a um novo paradigma que vai mudar a educação. Para prosperar no mundo, é necessário se envolver com as pessoas, saber dialogar”.

Claro que quando se fala em mudança, não significa algo completamente novo. Diálogos pedagógicos foram uma estratégia do filósofo grego Sócrates, que há mais de dois mil anos levava os “alunos” a aprender por meio de perguntas dirigidas a eles. Não se trata, porém, de voltar a um passado tão longínquo. Até porque, agora, é a vez de os estudantes perguntarem. Segundo Carla, a habilidade de fazer boas perguntas é um grande diferencial para o momento e para o futuro. Ela garante que isso pode ser estimulado no processo educativo, citando como exemplo um professor de Stanford, Paul Kim, que avalia os estudantes de uma forma inusitada: em vez de responder perguntas, são os alunos que as fazem. “As perguntas têm de ser feitas em grupos, e a nota varia de acordo com a sofisticação e a profundidade da pergunta. Ele praticamente inverte o conceito de avaliação”, conta. Preparar jovens com um foco nas habilidades é tangível, mas vai exigir uma revisão da forma de avaliar nas instituições de ensino. Um aluno “nota 10” costuma responder a questões em um papel, ou numa tela. No entanto, na vida profissional, nenhuma empresa mantém esse tipo de avaliação. O que interessa é o quanto a pessoa consegue produzir com os colegas, e pouco importa se ela precisa de algum tipo de consulta ou sabe tudo de cor.

O limite da criatividade

A visão acadêmica ainda tem se mantido na contramão da necessidade do mercado. “A primeira reação dos professores ao ChatGPT foi dizer que todo mundo colaria nos trabalhos. Essa é a pior coisa que você pode dizer, como instituição, sobre os alunos. Esse tipo de discurso mostra que precisamos de mais imaginação”, ressalta Carla. Sem uma prova escrita com respostas “certas” desejáveis, o cerne do que se passa dentro de uma instituição de ensino tem de mudar, defende a consultora. “Precisamos começar a pensar o que é o conhecimento. O que ele realmente significa e por que ainda estamos martelando um currículo puramente baseado em conteúdos”, diz.

Numa experiência real, professores de uma pós-graduação em Marketing da Universidade Britânica King’s College, em Londres, pediram aos alunos que usassem o ChatGPT para fazer um projeto — a maior parte dos estudantes já trabalhavam. A ideia era que fosse utilizada uma ferramenta gratuita para que todos tivessem as mesmas oportunidades. E poderiam usar como bem entendessem ou conseguissem. “Já há uma grande adesão a IAs generativas, mas particularmente por parte dos estudantes, o que não reflete necessariamente o ponto onde estão os professores”, afirma Chahna Gonsalves, diretora da Escola de Negócios da instituição. A ideia dela era a de mudar esse cenário para que a “adesão” partisse dos professores.  

Durante as seis semanas do projeto, alguns dos estudantes foram convidados a participar de um grupo de estudo focal, com entrevistas sobre o tema e registros em diários das impressões sobre o trabalho. “A tarefa era criar uma nova marca na área de beleza e escrever um relatório”, conta Chahna. Segundo ela, a ferramenta foi usada para brainstorms, estruturação de ideias, redação do relatório e edição. “Mas o interessante é que, quando tentaram usar a ferramenta para gerar a nova marca em si, a maioria se decepcionou, achou que a IA foi menos criativa do que achavam que seria.” Ao acompanhar a jornada desses alunos, Chahna pôde perceber que eles conseguiram, de fato, desenvolver várias habilidades interessantes. “Percebemos um fenômeno oposto ao que esperavam alguns educadores mais cínicos: eles desenvolveram pensamento crítico e resolução de problemas, porque experimentaram e tiveram que decidir o que era útil ou não. E acabaram participando muito mais no nosso fórum online, assistiram a mais vídeos tutoriais sobre prompts e variantes em modelos de IA”, relata a diretora.

De acordo com a diretora do King’s College, todos os trabalhadores (estudantes ou não) precisam se preparar para se adaptarem a novas tecnologias e ferramentas a vida toda. Além disso, devem ser aptos para avaliar o contexto mais geral do mercado onde estiverem inseridos. “Uma coisa é ser capaz de desenvolver novas habilidades pontuais, fazer atualizações rápidas, mas é mais importante entender as mudanças do próprio papel no mercado. Isso é relevante de se questionar para várias indústrias: como as novas ferramentas estão mudando a natureza do trabalho? Quem perceber antes estará qualificado para se adaptar mais facilmente”, afirma. Portanto, defende ela, ninguém precisa ter medo de usar templates e estruturas sugeridas por sistema automatizados, uma vez que poupam tempo e permitem deixar as pessoas livres para o que ela chama de uma “criatividade mais radical”. “Também é preciso entender sobre a ética do trabalho, sobre os impactos sociais do que se faz”, referindo-se a tarefas que não devem ser terceirizadas para máquinas.

Ainda que sem perder o foco em olhar criticamente para o mercado, a tendência para as microcredenciais faz cada vez mais sentido. “Muita gente acaba mudando de área ao longo da carreira, mas mesmo quem se mantém na mesma indústria precisa rever o que sabe. Eu, por exemplo, sou engenheiro eletricista de formação e vejo quem se formou comigo diante da necessidade de descobrir como operar drones, algo que nunca fez parte do currículo dos principais cursos de Engenharia Elétrica”, cita Gauravi Bradoo, diretor de Produtos da Logitech.

Como nenhuma faculdade ou curso técnico é capaz de prever quais serão as habilidades específicas necessárias no futuro, o segredo é se ligar aos estudantes de forma mais definitiva, oferecendo cursos rápidos ao longo da trajetória profissional conforme as necessidades do mercado. E quem melhor para saber isso do que os próprios funcionários-estudantes? “As trocas e colaborações entre instituições de ensino e corporações nunca foram tão grandes. Estávamos acostumados a viver em diferentes ilhas — academia e indústria —, mas, agora, elas estão se conectando”, diz Braddo. E as pontes podem ser os próprios estudantes-trabalhadores, pois vivem nos dois lados ao mesmo tempo.

Para dar conta de atender a esse público — que precisa estudar e se aperfeiçoar ao longo de toda a vida, mas sem sair do mercado de trabalho —, a grande tendência é oferecer cursos na modalidade que Bradoo chama de hiperflexibilidade: podem ser presenciais ou online, síncronos ou assíncronos, dependendo da disponibilidade e da vontade do aluno. “Contudo, para isso acontecer, ainda precisamos de um investimento de infraestrutura. O estudante deve ter uma boa experiência de interação com professor e colegas, onde estiver, na hora que puder”, afirma o executivo. Da parte de professores e instituições de ensino, a adesão à tecnologia precisa ser criteriosa para que ela não se torne uma nova forma de fazer as mesmas coisas de sempre. Quando se fala, sobretudo, da realidade do Brasil e de outros países em desenvolvimento, onde ainda faltam recursos para a educação, cada investimento deve ser bem pesado. “Eu sou um defensor da tecnologia, mas o propósito é o mais importante em todos os casos. O aluno pode até gostar de uma atividade gamificada, mas pode aprender a responder certo só para vencer, sem que desenvolva de fato alguma competência ou habilidade”, alerta João Goia, gerente do Senac.

Ao mesmo tempo, ferramentas digitais não são a única forma de desenvolver certas habilidades nos alunos. A capacidade de dialogar e trabalhar em equipe, por exemplo, pode ser explorada mesmo em atividades desplugadas, no mundo físico. “Nas nossas escolas, buscamos avaliações constantes. Analisamos, sim, o trabalho em equipe. O professor tem uma lista de critérios para examinar a participação efetiva: se debateu, se fez contribuições, ou se ficou só dependendo dos demais”, cita Goia. Se, antes, o professor era aquele que fazia as perguntas como uma espécie de curador das informações para passar aos estudantes, o caminho atual mostra que, na preparação para o mundo do trabalho de hoje, são os alunos que devem fazer as perguntas e se transformarem nos curadores dos próprios projetos. “Cada um tem de ser um curador nas suas tarefas e trabalhos, ou seja, usar recortes e informações disponíveis, analisar o que é, de fato, útil para o que se quer construir, saber se a base dos seus dados é confiável e costurar tudo isso num produto”, explica o gerente do Senac. Nesse novo paradigma, os estudantes emergem como protagonistas de própria jornada de aprendizagem, uma habilidade essencial para a vida toda.

Feira internacional de tecnologia educacional

No começo deste ano, a reportagem esteve presente na feira Bett Show, em Londres, o maior evento de tecnologia para a educação do mundo. O tema da IA dominou as conversas dos painéis, assim como os produtos e serviços oferecidos nos estandes. São tecnologias que já estão disponíveis e não há retorno. Portanto, a busca atual é encontrar caminhos para que sejam bem empregadas. Outras tendências na área são as crescentes preocupações com a segurança de dados e os cuidados com saúde mental dos estudantes. 


Luciana Alvarez Annima de Mattos
Luciana Alvarez Annima de Mattos
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