Novo ensino, velhos problemas

31 de janeiro de 2023

Até poucos anos atrás, todos os estudantes de ensino médio do Brasil tinham de seguir o mesmo currículo. Com 12 disciplinas obrigatórias, o modelo era visto como fragmentado e inflexível, por desconsiderar a individualidade dos jovens e a região onde viviam. O “novo ensino médio”, fruto de uma reforma aprovada em 2017, viria para mudar este panorama.

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Até poucos anos atrás, todos os estudantes de ensino médio do Brasil tinham de seguir o mesmo currículo. Com 12 disciplinas obrigatórias, o modelo era visto como fragmentado e inflexível, por desconsiderar a individualidade dos jovens e a região onde viviam. O “novo ensino médio”, fruto de uma reforma aprovada em 2017, viria para mudar este panorama. A lei concedeu prazo de cinco anos para a transição, o que fez de 2022 o ano de estreia oficial do formato – algumas escolas e redes se adiantaram e já haviam começado anteriormente. Contudo, ainda nos primeiros meses de implementação, o novo modelo tem sido alvo de críticas e há até pedidos de revogação.

A grande promessa da reforma, a possibilidade de escolha para que o estudante se aprofunde em uma área de seu interesse, continua sendo uma “miragem”, como define César Callegari, presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada (IBSA) e ex-secretário de Educação Básica do MEC durante o governo Dilma Rousseff. “A parte complementar, de itinerários, deveria apresentar um leque de opções. Entretanto, lamentavelmente, a reforma não apresenta, de fato, as opções que estabelecia e implementava. Isso acaba levando a uma frustração maior”, opina.

De acordo com a lei, o jovem teria acesso a uma forma geral básica, igual para todos e definida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas poderia escolher entre cinco diferentes itinerários formativos para completar a grade escolar, chamados de “flexíveis” ou “complementares”. Na prática, faltam professores e opções, e a maior parte dos jovens continua com pouco poder de escolha, pois as escolas não são obrigadas a oferecer mais de uma das cinco possíveis trilhas.

Na rede estadual de São Paulo, o Estado mais rico da Federação e que começou a implementação em 2021, antes do prazo final, 35,9% das escolas ofertam apenas dois itinerários formativos, o mínimo exigido pela secretaria. Destas, 71,7% oferecem exatamente os mesmos dois itinerários. Além disso, 37 unidades ofertam apenas um itinerário formativo, contrariando o que determina a própria rede, de acordo com estudo realizado por pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (Repu) em abril.

O modelo está acarretando ainda desigualdades: as escolas que atendem alunos de famílias de renda mais baixa oferecem menos opções de itinerários formativos do que escolas com estudantes de nível socioeconômico mais elevado, como mostra o levantamento da Repu, uma compilação de dados fornecidos pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP).

Assim, esta situação causa frustrações não apenas aos alunos, mas também aos professores. “Muitos são forçados a dar aulas de matérias que mal conhecem: como precisam compor carga horária, acabam sendo empurrados a assumir aulas de itinerários para os quais não tiveram formação”, salienta Callegari.

Um dos desafios para docentes, em geral formados para uma disciplina, é se tornarem capazes de ensinar por áreas de conhecimento. Ciências da Natureza, por exemplo, reúne Química, Física e Biologia. “Um professor formado em Biologia não foi preparado para dar aula de Física. É possível que faça? Sim. Contudo, precisaria de um investimento fortíssimo para que ele aprendesse as outras áreas e soubesse integrá-las. Durante dois anos de pandemia, os professores não receberam este investimento”, detalha o presidente do IBSA. O resultado da soma entre a incompatibilidade da formação com a exigência das aulas no novo formato é a falta de professores. A Seduc-SP informa que ainda não foram designados professores para 17% das aulas.

Histórico de entraves

Os graves problemas da etapa, incluindo a falta de professores, não começaram agora. O ensino médio enfrenta uma longa crise. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal indicador de qualidade educacional no Brasil, mostra que, nas últimas duas décadas, a aprendizagem de língua portuguesa e matemática nesta etapa segue estagnada. No ensino fundamental, sobretudo nos anos iniciais (primeiro ao quinto), houve melhoras.

No começo da década de 2000, a necessidade de reformar o ensino médio era praticamente um consenso entre educadores. No entanto, ao tratar das mudanças, longas discussões surgiam. Em 2016, o então presidente Michel Temer trouxe o “novo ensino médio”, por medida provisória, que o Congresso converteu na Lei 13.415/2017.

Sem ignorar que ainda existem inúmeros desafios para o País chegar a um patamar desejável, a presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Maria Helena Guimarães de Castro defende o novo modelo. “Eu sou totalmente favorável ao novo ensino médio, porque creio que este apresente uma proposta pedagógica que faz mais sentido. O Brasil tinha um modelo engessado, atrasado, que não era capaz de atrair os alunos, com conteúdo que não fazia sentido”, opina. Maria Helena atuou como secretária-executiva do Ministério da Educação (MEC) no governo Temer e foi uma das idealizadoras da reforma.

Independentemente do modelo de ensino, o “feijão com arroz” da educação precisa ser sempre bem-feito, acredita a presidente do CNE. “A formação continuada de professores sempre será necessária”, defende. Maria Helena ressalta ainda que a falta de profissionais é problema histórico, presente em praticamente todo o território nacional – sobretudo na rede estadual paulista, por ser a maior do País. “A rede é grande demais; os processos de contratação e seleção precisariam ser feitos todo ano”, pontua.

O sucesso também depende de uma boa implementação estadual. Na divisão de responsabilidades entre os entes federais, os Estados são os grandes administradores das instituições de ensino médio: 84% dos alunos da etapa estão matriculados nessas escolas, segundo o Censo Escolar. Há cerca de 13% de estudantes na rede privada, e 3% em institutos federais.

“A gente precisa de uma boa implementação, de formação continuada para os docentes, de uma coordenação pedagógica com reuniões semanais. Neste ano, em que a maior parte das redes não deu início aos itinerários (estão dando os conteúdos da BNCC, parte do currículo que é igual para todos), deve-se ouvir os alunos, para que eles possam participar de fato, para que a escola possa trabalhar as diferentes dimensões que afetam as juventudes”, argumenta Maria Helena. Ela acredita que o papel da escola é imenso, porque não existem outras instituições olhando para a população desta faixa etária: “Não temos política de juventudes, então, a escola acaba sendo a grande responsável por tudo”.

Críticas à reforma

Contudo, um dos pontos críticos desse novo ensino médio é justamente a falta de outras políticas para além da reformulação curricular. De acordo com Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Repu, uma reforma forte exigiria um investimento também robusto, o que não aconteceu. “O novo ensino médio é uma reforma do currículo, mas não envolve a ampliação da rede física, não trata de equipes escolares nem da valorização da carreira docente, tampouco cria uma política de permanência. Como expandir a carga horária se uma parcela de estudantes é de trabalhadores?”, provoca.

Agora, as escolas precisam oferecer mil horas letivas anuais, um aumento de 200 horas em comparação ao modelo anterior. Desta forma, o tempo de aula que era, em média, de quatro horas por dia, passou a ser de cinco. Para os estudantes do noturno, fica impossível atingir a média diária. As redes têm como opção dar aulas aos sábados, aumentar em um ano o ensino médio ou oferecer parte da carga horária em aulas remotas – a lei autoriza que até 30% das aulas do ensino médio noturno sejam a distância.

Cássio acrescenta que a reforma piorou o ensino médio para os jovens mais pobres e defende que ela seja revogada. “Diziam que, ante,s havia disciplinas demais, mas, hoje, há ementas com mais de 20 disciplinas. Só que trocaram aula de Sociologia por ‘Vendas no Instagram’, ou ‘Como se Apresentar no Mercado de Trabalho’. Seria ótimo ter espaço para a qualificação profissional, mas os estudantes estão perdendo conteúdos importantes. Neste mundo de negacionismos, vale mesmo a pena tirarmos aula de Física, fazer com que deixem de aprender gravitação, em nome de aulas de Design de Games?”, convida ele ao debate.

“O novo ensino médio não amplia a rede, não trata de equipes escolares nem da valorização docente, tampouco cria uma política de permanência. Como expandir a carga horária se uma parcela de estudantes é de trabalhadores?” Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC e membro da Repu

Educação Profissional e Tecnológica (EPT): fagulha de esperança

Uma das inovações do modelo foi criar uma trilha de aprendizagens profissional e tecnológica dentro da grade curricular do ensino médio – até então, para ter algum tipo de formação profissional, os alunos precisavam fazer o ensino médio regular mais um complemento técnico – ou, mais tarde, uma graduação.

A qualificação mais voltada ao mundo do trabalho é uma necessidade do Brasil. Dos jovens de 18 a 24 anos, apenas 20% estão no ensino superior. “Para os outros 80%, não temos nenhuma política de educação e trabalho, ou seja, ficam abandonados à própria sorte e, na maioria das vezes, expostos a trabalhos precários”, diz Ana Inoue, superintendente do Itaú Educação e Trabalho.

Incluir a possibilidade da educação profissional no ensino médio é positivo na visão da porta-voz. “Pode ser uma oportunidade para conectar os alunos às realidades local, nacional e mundial, ao mundo laboral, aos grandes problemas que o País enfrenta e às grandes oportunidades também. Ao trazer o mundo do trabalho de forma articulada e crítica para o ensino médio, ampliamos a participação dos jovens no debate sobre as soluções para o Brasil. Acredito que estamos construindo um caminho no ensino médio”, analisa.

Para dar conta de criar currículos adequados a esse itinerário, muitas regiões foram buscar parcerias no terceiro setor. O Itaú Educação e Trabalho apoia 16 Estados nesta implementação. Em Araripina, interior pernambucano, por exemplo, a empresa ajudou a criar um curso de Sistemas de Energias Renováveis para alunos do ensino médio. “É uma região com potencial de produção de energias eólica e solar. O curso é um modelo inédito de parceria intersetorial, envolvendo Poder Público, sociedade civil e setor produtivo”, explica Ana.

Os estudantes que fizerem o curso terão aulas presenciais e receberão diplomas de ensinos médio e técnico. Mas esta não será a realidade para todos. No Paraná, para se ter uma ideia, várias aulas do itinerário técnico são remotas – transmitidas ao vivo numa TV em sala de aula –, o que provocou protestos de estudantes. Por lei, até 20% da carga horária do ensino médio podem ser a distância.

Na ótica de Maria Helena Guimarães, o que vale é que o jovem vai estar mais preparado para atuar no mundo do trabalho quando concluir o curso. “Tenho certeza de que será uma maneira de preparar melhor os estudantes”, pensa. Já na opinião de Fernando Cássio, o que o modelo entrega não passa de “teatro”. “O que está sendo oferecido é inferior em qualidade e em quantidade de estudos do que um curso técnico. O estudante está sendo convidado a trocar a formação por ilusão”, lamenta.

Luciana Alvarez Débora Faria
Luciana Alvarez Débora Faria