Pedagogia oprimida

19 de abril de 2021

O impacto da pandemia na educação básica vai além dos efeitos causados pelo fechamento e pela abertura de escolas. De um lado, balanços recentes expõem a desaceleração da agenda de políticas públicas; de outro, ausência de coordenação nacional e baixa execução orçamentária do MEC em 2020 agravaram o quadro.

C

Com milhões de alunos fora da escola desde março do ano passado, o Brasil encerrou 2020 ostentando grandes prejuízos à implementação de políticas públicas centrais para a melhoria da educação básica, as quais, antes do covid-19, seguiam em curso. Esta é a principal conclusão do 2º Relatório Anual de Acompanhamento do Educação Já!, da organização sem fins lucrativos Todos Pela Educação. No documento, dados sustentam que a ausência de liderança e as dificuldades de gestão do MEC, já observadas em 2019, aprofundaram-se em 2020. De acordo com o relatório, “não houve avanços significativos” na coordenação nacional e no redesenho da governança entre União, Estados e municípios: “As discussões de regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE) não avançaram, tampouco houve aprimoramentos na gestão do MEC como órgão responsável pela coordenação nacional da educação”.

O diagnóstico é confirmado pelo 6º Relatório Bimestral da Execução Orçamentária do MEC: a educação básica fechou o ano com R$ 42,8 bilhões de dotação, 10,2% menor em comparação a 2019, e, efetivamente, pagou R$ 32,5 bilhões. Foi o pior resultado da década. O Ministério da Educação (MEC) transferiu e executou mais recursos na educação básica em 2010 (e em todos os anos subsequentes) do que em 2020. Outros números demonstram a falta de priorização da educação básica na atual gestão, confirmada pelos cortes no orçamento do MEC e pelos insuficientes apoios técnico e financeiro destinados ao combate à pandemia ao longo do ano: após 12 meses, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) consumiu apenas 63% do limite de empenho e 77% do limite de pagamento das despesas discricionárias, evidências da baixa execução e dos problemas de gestão que cercam a pasta.

“O ano deixou ainda mais claro que, sem coordenação nacional, os desafios da educação básica são acentuados, e o avanço de agendas estruturantes em todo o País é comprometido”, afirma Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos. “A pandemia evidenciou a dificuldade de resposta das redes de ensino em um cenário de crise, mas escancarou a incapacidade de liderança do MEC, comprometendo os avanços que vínhamos observando em agendas prioritárias para a garantia de um ensino de qualidade para todos os alunos brasileiros.”

Outro relatório, da comissão de deputados que acompanha o trabalho da pasta, mostra que o programa de conectividade do MEC contou com menos da metade da verba em 2020 em relação a 2019. E o programa de investimentos em infraestrutura de escolas, que careciam de subsídio para reformar banheiros, salas ou comprar álcool em gel, perdeu R$ 1,6 bilhão. Este já é o 3º relatório da Coalizão Parlamentar de Acompanhamento do MEC, que inclui o deputado federal Felipe Rigoni (PSB/ES), como coordenador, e parlamentares como Tabata Amaral (PDT/SP), Luísa Canziani (PTB/PR) e Professor Israel Batista (PV/DF). Ainda segundo a comissão, apenas 37,8% dos ocupantes atuais de cargos estratégicos no MEC já tiveram experiência com educação.

No que tange ao orçamento, o levantamento conclui que houve “queda abrupta e inexplicável do fluxo dos recursos federais em diferentes áreas da educação, num ano em que o orçamento federal da pasta deveria ser revisto para dar conta dos novos desafios, como conectividade dos estudantes e implementação dos protocolos de biossegurança”. Segundo o Censo Escolar, mais de 4 mil escolas não têm banheiro no País, ao passo que 17 mil não possuem internet banda larga. Mesmo assim, houve redução de 60% nas verbas para infraestrutura nas escolas; além disso, o presidente Jair Bolsonaro vetou, neste mês, projeto aprovado no Congresso que destinava recursos para internet a estudantes de baixa renda e professores de escolas públicas.

“Apesar dos esforços das redes públicas estaduais e municipais para a oferta do ensino remoto, os desafios e os prejuízos à aprendizagem de crianças e adolescentes têm sido imensos”, lamenta Priscila. “Certamente, a tecnologia pode ser uma importante aliada de professores e alunos, e, se ela já fosse uma realidade em nossas escolas, poderíamos ter um cenário de menor disparidade entre quem conseguiu e quem não conseguiu acompanhar as aulas”. Entre os desafios do ensino remoto – e isso pode ser estendido ao que tem se chamado de “ensino híbrido” –, estão os diferentes contextos domésticos e familiares. Por isso, ela ressalta que “a escola tem um papel na vida das crianças e das famílias, em especial as mais pobres, que vai muito além de assistir às aulas. É importante também para a proteção social, segurança alimentar e identificação de vulnerabilidades.”

“A pandemia evidenciou a dificuldade de resposta das redes de ensino em um cenário de crise, mas escancarou a incapacidade de liderança do MEC, comprometendo os avanços que vínhamos observando em agendas prioritárias para a garantia de um ensino de qualidade.” Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos Pela Educação

Ação conjunta

A presidente-executiva do Todos Pela Educação destaca o protagonismo de algumas gestões municipais e estaduais e do Congresso Nacional, para que não vivêssemos um cenário de estagnação e retrocessos completo. O balanço anual do Todos destaca, por exemplo, que mesmo com os desafios trazidos pelo coronavírus, alguns governos estaduais e prefeituras seguiram adiante com a formulação de programas de alfabetização em regime de colaboração entre Estados e municípios.

“O desafio é grande”, assume ela, “mas iniciativas aqui no Brasil têm mostrado que é possível melhorar a aprendizagem no ensino fundamental I, importante para toda a trajetória escolar. No caso da alfabetização, analisamos que é plausível avançar com a expansão do regime de colaboração entre governos estaduais e municipais, em que Estados estabeleçam estratégias coordenadas e colaborativas com os municípios, buscando fortalecer ações pedagógicas específicas”. O Estado do Ceará, segundo Priscila, mostrou que “com a combinação de apoio técnico às redes municipais, fortalecimento da prática docente, um bom modelo de governança e mecanismos de incentivo com foco na melhoria da aprendizagem, dá para fazer.”

No entanto, apesar do cenário desfavorável, houve avanços importantes, como a aprovação do Novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) – principal mecanismo de financiamento da educação –, graças à ação de entidades representativas de diversos segmentos da área e do Congresso Nacional. O Fundeb tinha prazo de vigência para até 2020, de modo que era urgente sua renovação, a fim de se evitar uma crise no sistema de financiamento da educação básica e, assim, o aumento de desigualdades. A aprovação da Emenda Constitucional (EC) 108/2020 pelo Congresso representa um novo capítulo de mais cooperação federativa e de equidade na educação brasileira. O novo fundo terá mais insumos, com uma maior complementação da União aos recursos arrecadados de Estados e Municípios.

“Mas a principal novidade”, sublinha Priscila, “é que o aumento da complementação será voltado às redes de ensino mais pobres, independentemente do Estado de origem”. O patamar mínimo de investimento por aluno/ano no Brasil sairá de R$ 3,7 mil para R$ 5,5 mil, reduzindo o subfinanciamento crítico na educação. “Com isso, o potencial para a redução das desigualdades na educação é enorme – ainda mais necessário, em razão do aumento das disparidades causadas pelo longo fechamento das escolas, ocasionado pela pandemia”, comemora ela.

Dentre os principais desafios e prioridades para 2021, a retomada das aulas presenciais de forma segura é, certamente, o mais imediato. Será fundamental contar com ações articuladas e estratégias de curto e médio prazos para recuperar os prejuízos à aprendizagem, e aos desenvolvimentos cognitivo e socioemocional de crianças e adolescentes, que a separação da escola e o cenário da pandemia causaram. E mais: Priscila acredita que é também urgente retomar uma agenda de reformas estruturantes focadas na melhoria da qualidade da educação pública: “Será fundamental contarmos com o engajamento da sociedade civil e o compromisso dos executivos estaduais e municipais, bem como do Congresso Nacional.”

Os indicadores nacionais mostram como evoluímos no acesso à escola, mas ainda não atingimos patamares aceitáveis de qualidade da educação básica. O Brasil registrou avanços nas primeiras edições do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) – entre 2000 e 2009 – contudo, nas últimas quatro edições da avaliação (2009, 2012, 2015 e 2018), os resultados médios dos alunos brasileiros ficaram estagnados. A diferença de pontuação entre os brasileiros de maior e menor níveis socioeconômicos aumentou. A diferença, que era de 84 pontos em 2009, passou para 97 em 2018.

Por outro lado, o porcentual de alunos brasileiros de status socioeconômico mais baixo que alcançou os maiores níveis de desempenho entre os estudantes do País é 10% – muito próximo ao verificado na média das nações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), nas quais a parcela de estudantes mais pobres que atingem as mais altas pontuações fica em torno de 11%. “Isso mostra que, muito embora o nível socioeconômico seja um fator de peso significativo no desempenho, dá para superar esta lacuna com boas políticas públicas”, avalia Priscila Cruz.

Eduardo Ribeiro Paula Seco
Eduardo Ribeiro Paula Seco
receba a nossa newsletter
seta