O impacto da pandemia na educação básica vai além dos efeitos causados pelo fechamento e pela abertura de escolas. De um lado, balanços recentes expõem a desaceleração da agenda de políticas públicas; de outro, ausência de coordenação nacional e baixa execução orçamentária do MEC em 2020 agravaram o quadro.
Com milhões de alunos fora da escola desde março do ano passado, o Brasil encerrou 2020 ostentando grandes prejuízos à implementação de políticas públicas centrais para a melhoria da educação básica, as quais, antes do covid-19, seguiam em curso. Esta é a principal conclusão do 2º Relatório Anual de Acompanhamento do Educação Já!, da organização sem fins lucrativos Todos Pela Educação. No documento, dados sustentam que a ausência de liderança e as dificuldades de gestão do MEC, já observadas em 2019, aprofundaram-se em 2020. De acordo com o relatório, “não houve avanços significativos” na coordenação nacional e no redesenho da governança entre União, Estados e municípios: “As discussões de regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE) não avançaram, tampouco houve aprimoramentos na gestão do MEC como órgão responsável pela coordenação nacional da educação”.
O diagnóstico é confirmado pelo 6º Relatório Bimestral da Execução Orçamentária do MEC: a educação básica fechou o ano com R$ 42,8 bilhões de dotação, 10,2% menor em comparação a 2019, e, efetivamente, pagou R$ 32,5 bilhões. Foi o pior resultado da década. O Ministério da Educação (MEC) transferiu e executou mais recursos na educação básica em 2010 (e em todos os anos subsequentes) do que em 2020. Outros números demonstram a falta de priorização da educação básica na atual gestão, confirmada pelos cortes no orçamento do MEC e pelos insuficientes apoios técnico e financeiro destinados ao combate à pandemia ao longo do ano: após 12 meses, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) consumiu apenas 63% do limite de empenho e 77% do limite de pagamento das despesas discricionárias, evidências da baixa execução e dos problemas de gestão que cercam a pasta.
“O ano deixou ainda mais claro que, sem coordenação nacional, os desafios da educação básica são acentuados, e o avanço de agendas estruturantes em todo o País é comprometido”, afirma Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos. “A pandemia evidenciou a dificuldade de resposta das redes de ensino em um cenário de crise, mas escancarou a incapacidade de liderança do MEC, comprometendo os avanços que vínhamos observando em agendas prioritárias para a garantia de um ensino de qualidade para todos os alunos brasileiros.”
Outro relatório, da comissão de deputados que acompanha o trabalho da pasta, mostra que o programa de conectividade do MEC contou com menos da metade da verba em 2020 em relação a 2019. E o programa de investimentos em infraestrutura de escolas, que careciam de subsídio para reformar banheiros, salas ou comprar álcool em gel, perdeu R$ 1,6 bilhão. Este já é o 3º relatório da Coalizão Parlamentar de Acompanhamento do MEC, que inclui o deputado federal Felipe Rigoni (PSB/ES), como coordenador, e parlamentares como Tabata Amaral (PDT/SP), Luísa Canziani (PTB/PR) e Professor Israel Batista (PV/DF). Ainda segundo a comissão, apenas 37,8% dos ocupantes atuais de cargos estratégicos no MEC já tiveram experiência com educação.
No que tange ao orçamento, o levantamento conclui que houve “queda abrupta e inexplicável do fluxo dos recursos federais em diferentes áreas da educação, num ano em que o orçamento federal da pasta deveria ser revisto para dar conta dos novos desafios, como conectividade dos estudantes e implementação dos protocolos de biossegurança”. Segundo o Censo Escolar, mais de 4 mil escolas não têm banheiro no País, ao passo que 17 mil não possuem internet banda larga. Mesmo assim, houve redução de 60% nas verbas para infraestrutura nas escolas; além disso, o presidente Jair Bolsonaro vetou, neste mês, projeto aprovado no Congresso que destinava recursos para internet a estudantes de baixa renda e professores de escolas públicas.
“Apesar dos esforços das redes públicas estaduais e municipais para a oferta do ensino remoto, os desafios e os prejuízos à aprendizagem de crianças e adolescentes têm sido imensos”, lamenta Priscila. “Certamente, a tecnologia pode ser uma importante aliada de professores e alunos, e, se ela já fosse uma realidade em nossas escolas, poderíamos ter um cenário de menor disparidade entre quem conseguiu e quem não conseguiu acompanhar as aulas”. Entre os desafios do ensino remoto – e isso pode ser estendido ao que tem se chamado de “ensino híbrido” –, estão os diferentes contextos domésticos e familiares. Por isso, ela ressalta que “a escola tem um papel na vida das crianças e das famílias, em especial as mais pobres, que vai muito além de assistir às aulas. É importante também para a proteção social, segurança alimentar e identificação de vulnerabilidades.”
A presidente-executiva do Todos Pela Educação destaca o protagonismo de algumas gestões municipais e estaduais e do Congresso Nacional, para que não vivêssemos um cenário de estagnação e retrocessos completo. O balanço anual do Todos destaca, por exemplo, que mesmo com os desafios trazidos pelo coronavírus, alguns governos estaduais e prefeituras seguiram adiante com a formulação de programas de alfabetização em regime de colaboração entre Estados e municípios.
“O desafio é grande”, assume ela, “mas iniciativas aqui no Brasil têm mostrado que é possível melhorar a aprendizagem no ensino fundamental I, importante para toda a trajetória escolar. No caso da alfabetização, analisamos que é plausível avançar com a expansão do regime de colaboração entre governos estaduais e municipais, em que Estados estabeleçam estratégias coordenadas e colaborativas com os municípios, buscando fortalecer ações pedagógicas específicas”. O Estado do Ceará, segundo Priscila, mostrou que “com a combinação de apoio técnico às redes municipais, fortalecimento da prática docente, um bom modelo de governança e mecanismos de incentivo com foco na melhoria da aprendizagem, dá para fazer.”
No entanto, apesar do cenário desfavorável, houve avanços importantes, como a aprovação do Novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) – principal mecanismo de financiamento da educação –, graças à ação de entidades representativas de diversos segmentos da área e do Congresso Nacional. O Fundeb tinha prazo de vigência para até 2020, de modo que era urgente sua renovação, a fim de se evitar uma crise no sistema de financiamento da educação básica e, assim, o aumento de desigualdades. A aprovação da Emenda Constitucional (EC) 108/2020 pelo Congresso representa um novo capítulo de mais cooperação federativa e de equidade na educação brasileira. O novo fundo terá mais insumos, com uma maior complementação da União aos recursos arrecadados de Estados e Municípios.
“Mas a principal novidade”, sublinha Priscila, “é que o aumento da complementação será voltado às redes de ensino mais pobres, independentemente do Estado de origem”. O patamar mínimo de investimento por aluno/ano no Brasil sairá de R$ 3,7 mil para R$ 5,5 mil, reduzindo o subfinanciamento crítico na educação. “Com isso, o potencial para a redução das desigualdades na educação é enorme – ainda mais necessário, em razão do aumento das disparidades causadas pelo longo fechamento das escolas, ocasionado pela pandemia”, comemora ela.
Dentre os principais desafios e prioridades para 2021, a retomada das aulas presenciais de forma segura é, certamente, o mais imediato. Será fundamental contar com ações articuladas e estratégias de curto e médio prazos para recuperar os prejuízos à aprendizagem, e aos desenvolvimentos cognitivo e socioemocional de crianças e adolescentes, que a separação da escola e o cenário da pandemia causaram. E mais: Priscila acredita que é também urgente retomar uma agenda de reformas estruturantes focadas na melhoria da qualidade da educação pública: “Será fundamental contarmos com o engajamento da sociedade civil e o compromisso dos executivos estaduais e municipais, bem como do Congresso Nacional.”
Os indicadores nacionais mostram como evoluímos no acesso à escola, mas ainda não atingimos patamares aceitáveis de qualidade da educação básica. O Brasil registrou avanços nas primeiras edições do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) – entre 2000 e 2009 – contudo, nas últimas quatro edições da avaliação (2009, 2012, 2015 e 2018), os resultados médios dos alunos brasileiros ficaram estagnados. A diferença de pontuação entre os brasileiros de maior e menor níveis socioeconômicos aumentou. A diferença, que era de 84 pontos em 2009, passou para 97 em 2018.
Por outro lado, o porcentual de alunos brasileiros de status socioeconômico mais baixo que alcançou os maiores níveis de desempenho entre os estudantes do País é 10% – muito próximo ao verificado na média das nações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), nas quais a parcela de estudantes mais pobres que atingem as mais altas pontuações fica em torno de 11%. “Isso mostra que, muito embora o nível socioeconômico seja um fator de peso significativo no desempenho, dá para superar esta lacuna com boas políticas públicas”, avalia Priscila Cruz.