Quando se aprende a empreender

09 de novembro de 2023

O ensino de conceitos de empreendedorismo pode ter impactos positivos em disciplinas obrigatórias como português, matemática ou ciências e até no comportamento social dos alunos. Mas a inclusão dessas atividades no ensino médio esbarra na preocupação exclusiva que alunos e pais têm com a aprovação no vestibular.

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Desafiados por um projeto da escola, um grupo de alunos do ensino médio do Colégio Positivo, de Curitiba (PR), viu uma oportunidade de negócios: a comercialização de hand spinner, um brinquedo que virou febre no Brasil cuja graça é que ele gira em torno do próprio eixo e que crianças e adolescentes usam para fazer manobras nos dedos. A ideia surgiu em um brainstorm com cerca de 30 alunos. Aquele era o momento para entrar no mercado do brinquedinho. Compraram material, criaram uma microempresa fictícia chamada “Rolê” e passaram a fabricar um hand spinner homônimo. Venderam mais de 500 peças. Dividiram o lucro e, o que seria pago em impostos – caso a empresa fosse real – foi destinado a uma instituição de caridade.

A experiência é um exemplo de prática de empreendedorismo entre alunos da educação básica, ainda rara nas escolas do Brasil. No exercício, que teve orientação de professores e de empreendedores, os alunos aprenderam a fazer pesquisa de mercado, a dividir funções em um time, a calcular impostos e preços – o brinquedodesenvolvido pela Rolê, por exemplo, variava de R$ 15 (modelo mais simples) a R$ 30 (modelo personalizado); na promoção, saía por R$ 20 para queimar o estoque.

Os alunos também tiveram de liderar situações, trabalhar em equipe e orquestrar ideias, que são os chamados “aspectos sociais de aprendizado”. O exercício foi feito em 2017. Neste ano, há uma nova turma participando do mesmo projeto na escola.

“Eu percebi que tenho capacidade de fazer as coisas acontecerem”, diz Juliana Cordeiro Pacheco, 16, aluna do segundo ano do ensino médio na escola e uma das participantes da Rolê. “Fui diretora de RH, outros três amigos foram os diretores das outras áreas”, conta. Depois da experiência, ela decidiu que vai cursar Administração. “Sem dúvida, vou pender para o lado de empreender, de ter as minhas franquias.”

O empreendedorismo, ou seja, desenvolver uma ideia de maneira organizada e colocá-la em prática, precisa ser ensinado desde cedo. “Tem de começar no útero”, brinca o professor da Fundação Dom Cabral em Minas Gerais, Fernando Dolabela, criador de um programa de ensino de empreendedorismo na educação básica e universitária chamado “Pedagogia Empreendedora”.

Dolabela, inicialmente, trabalhava com ensino de empreendedorismo com alunos universitários. Aos poucos, no entanto, decidiu expandir as aulas para a educação básica. Isso porque ele conta que, na universidade, os alunos já possuem a cultura local enraizada – e a nossa cultura nacional não é empreendedora.

Para ele, o empreendedorismo é uma mudança de “modelo mental”. “É preciso que as crianças percebam isso e que comecem a entender que é muito mais natural você buscar a sua autonomia do que se submeter a uma relação de dependência, que é a relação de emprego”, diz. “Emprego é um mal danado.”


MODELO MENTAL

No Positivo, onde o grupo de alunos criou a empresa Rolê, a tal mudança de modelo mental foi orientada pela professora e assessora de empreendedorismo do colégio, Daniela Tatarin. Há quatro anos, a escola implementa o programa Jovens Empreendedores Primeiros Passos (JEPP), criado pelo Sebrae no âmbito do Programa Nacional de Educação Empreendedora. A ideia é justamente trabalhar aspectos de empreendedorismo com os alunos dos ensinos fundamental e médio. Os professores são treinados pelo próprio Sebrae, que firmou uma parceria com a escola e fornece o material de apoio para as atividades. A capacitação, gratuita, pode ser feita pela internet. “Os alunos aprendem a parte da geração do negócio, a lidar com as pessoas, a resolver conflitos e a gerenciar valores e custos. Construímos um plano de negócios, cada ano com uma atividade diferente para gerar autonomia no aluno”, diz a docente, que também é empreendedora.

Inicialmente, os conceitos de empreendedorismo eram desenvolvidos em alguns momentos das aulas de Matemática e de Ciências no Colégio Positivo. Desde 2017, no entanto, acabou virando uma disciplina extracurricular. O trabalho começa no ensino fundamental e segue no médio. “Discutimos coisas simples, como um preço de um tênis ou como é formado o preço de um hambúrguer de um restaurante fast-food”, conta Daniela.

Segundo ela, oferecer uma disciplina específica sobre empreendedorismo, como acontece no Colégio Positivo, é interessante para aprofundar o assunto por uma equipe de professores. Algumas escolas estão fazendo esse movimento e já existe discussão legal para levar o curso de empreendedorismo para escolas públicas.

Para se ter uma ideia, em maio deste ano, a Câmara dos Vereadores de São Paulo aprovou um projeto de lei que inclui empreendedorismo como disciplina fixa ou extracurricular na rede municipal de ensino da cidade, que integra do infantil ao fim do fundamental (etapa que vai até os 14 anos). A ideia, de acordo com o projeto, que ainda não foi sancionado pelo prefeito Bruno Covas (PSDB), é introduzir na sala de aula, por exemplo, conceitos de educação financeira, cultura organizacional e gestões de negócios e de mercado.

Aspectos do empreendedorismo, no entanto, também podem ser abordados em outras disciplinas do currículo – o que se chama de “ensino transversal”. Para Dolabela, ensinar empreendedorismo de maneira transversal, ou seja, em aulas de Matemática ou História, pode ser mais difícil quando a cultura do empreendedorismo não é o forte de um país. “A transversalidade é mais trabalhosa, ela implica que um professor que não está interessado em empreendedorismo aborde o tema.”

Temas de empreendedorismo são abordados transversalmente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento do MEC que deve guiar os currículos dos Estados e municípios a partir de 2019. O texto, já aprovado para o ensino fundamental, descreve, por exemplo, que no nono ano o aluno deve ser capaz de resolver e elaborar problemas que envolvam porcentagens “no contexto da educação financeira”. Conceitos básicos de economia e finanças, como taxas de juros, inflação, aplicações financeiras aparecem no conteúdo que deve ser ensinado na área de Matemática.

A demanda por ensino transversal de empreendedorismo por meio de disciplinas já era assunto em um projeto de lei do Senado (n.° 772), de 2015, que propunha alterar o principal marco legal de educação do país – a Lei de Diretrizes e Bases, de 2006 –, para incluir o tema nos anos finais do ensino fundamental e também no ensino médio. O projeto segue tramitando.

“É até um equívoco pensar que esse aprendizado e essas características empreendedoras não são importantes para o vestibular.” Daniela Tatarin, professora e assessora de empreendedorismo do colégio Positivo, em Curitiba (PR), onde são desenvolvidos projetos de empreendedorismo

PITCH

Há, ainda, outras formas de lidar com aspectos ligados ao empreendedorismo na escola, mesmo que fora da sala de aula. O colégio Visconde de Porto Seguro, da capital paulista, por exemplo, fez no ano passado um evento no formato TED – o TEDx Kids –, no qual os alunos tinham de apresentar e defender ideias em um palco por um tempo determinado. É o que, na linguagem dos empreendedores, leva o nome de “pitch” de uma ideia. Com o exercício, os alunos acabam aprendendo a se comunicar, argumentar e convencer com uma lógica própria, em curto espaço de tempo, quem estiver ouvindo.  

Participaram da experiência alunos dos quarto e quinto anos do ensino fundamental (de aproximadamente nove e dez anos). Todos os estudantes foram convidados, e as adesões à iniciativa, voluntárias. A participação não valeu nota – a ideia era justamente despertar a capacidade de realização no aluno, mesmo que não vinculada a uma avaliação específica.

“O que nos motivou a realizar o TEDx Kids foram as constantes transformações dos processos com as tecnologias, o que proporcionou outras formas de aprender e ensinar e trouxe à educação a oportunidade de criar, prototipar, colaborar e compartilhar com o mundo”, ressalta a coordenadora institucional de educação digital do colégio, Joice Lopes Leite. Já os alunos mais velhos, que estão no ensino médio, desenvolvem um projeto específico de empreendedorismo. Neste ano, a proposta é criar uma empresa, um produto e ferramentas de comunicação embasados na consciência ambiental e na qualidade de vida.

Para Joice, a disseminação de uma cultura empreendedora no Brasil é necessária para o crescimento socioeconômico do País, e o assunto, que antes estava mais restrito ao ensino técnico e universitário, tem, mais recentemente, chegado às escolas. “Se considerarmos que na escola atuamos de forma a fazer o aluno pensar em sua vida produtiva e programar ações para o futuro profissional, quando os incentivamos a entender o mercado de trabalho, estamos estimulando uma postura empreendedora”, destaca.

Ensinar empreendedorismo, no entanto, não significa transformar todos os alunos de uma determinada escola em empreendedores quando adultos. Isso porque, afirma Dolabela, o empreendedorismo depende da comunidade como um todo. “Trata-se de um fenômeno socioeconômico. É preciso que a sociedade crie bens que sejam receptivos a ação empreendedora adequada”, diz. Por isso, de acordo com ele, o empreendedorismo não é um fenômeno de sala de aula, mas da comunidade.

EMPREENDEDOR DELE MESMO

Mesmo que os alunos não se tornem empreendedores, de fato, no futuro, o ensino de aspectos ligados à atividade de empreender pode ter impactos positivos nas disciplinas obrigatórias cognitivas (como português ou ciências) e até mesmo no comportamento dos alunos. “Eu trabalho com o aluno para que ele tenha iniciativa, seja persistente, enxergue oportunidades e crie uma rede de contatos”, conta a professora do Positivo. “A ideia é que ele perceba que está mais comprometido e organizado e que vai precisar desse conhecimento em qualquer coisa que fizer.” De acordo com a docente, o mais importante na atividade é que o estudante seja empreendedor dele mesmo, “até para que seja uma pessoa melhor”.

A aluna Juliana Cordeiro Pacheco, do Positivo, sentiu isso na pele. Ela diz que aprendeu, no exercício da empresa fictícia, a resolver pendências de maneira autônoma, o que causou uma mudança comportamental até em casa. “Quando precisava resolver algum problema com fornecedor [na empresa fictícia], eu que resolvia. Depois, se alguma coisa no colégio não estava legal, eu comecei a ter independência e já não pedia mais para os meus pais ligarem na escola para resolver”, destaca. “Percebi que eu podia fazer as coisas sozinha e não depender de outras pessoas.”

Um dos obstáculos, no entanto, é oferecer nas escolas cursos como Empreendedorismo justamente em um momento em que alunos e seus pais estão preocupados quase exclusivamente como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e com a aprovação no vestibular. “Esse é um desafio bem grande”, diz a professora do Positivo. Para ela, no entanto, não dá para pensar nas duas coisas de maneira separada. “É até um equívoco pensar que esse aprendizado e essas características empreendedoras não são importantes para o vestibular. Pelo contrário, os alunos passam a se conhecer, ficam mais organizados e começam a exigir mais deles mesmos.”

A reportagem original foi divulgada na edição #448 da Problemas Brasileiros e sua republicação faz parte das ações em comemoração aos 60 anos da revista, celebrados em 2023.

Sabine Righetti Débora Faria
Sabine Righetti Débora Faria