Quem quer ser professor?

22 de fevereiro de 2023

Uma profissão que pague salários baixos e ofereça, de forma geral, condições ruins de trabalho tende a perder interessados entre os jovens. É exatamente o que se vê, hoje, na carreira docente. Algumas instituições e redes de ensino já enfrentam dificuldade em contratar professores nas áreas de Ciências Exatas, mas o cenário para os próximos anos tende a piorar.

U

Uma profissão que pague salários baixos e ofereça, de forma geral, condições ruins de trabalho tende a perder interessados entre os jovens. É exatamente o que se vê, hoje, na carreira docente. Algumas instituições e redes de ensino já enfrentam dificuldade em contratar professores nas áreas de Ciências Exatas, mas o cenário para os próximos anos tende a piorar. A pesquisa Risco de Apagão de Professores no Brasil, elaborada pela Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), aponta que o déficit de profissionais em todas as etapas da educação básica pode chegar a 235 mil até 2040.

A Semesp é uma entidade que representa mantenedoras de ensino superior no Brasil. De acordo com sua pesquisa, dois fatores contribuem para esse apagão: de um lado, o envelhecimento do corpo docente atual; de outro, o desinteresse dos jovens em se tornarem professores.

Os dados mostram que o número de calouros em cursos de licenciatura apresentou uma taxa de crescimento anual de 4,4% entre 2010 e 2020, mas foi um avanço puxado pelos cursos de Ensino a Distância (EaD). A partir de 2016, os ingressos em cursos na modalidade ultrapassaram a admissão nos presenciais. Em 2020, o número chegou a 73,2% dos novos alunos. A quantidade de ingressantes em cursos presenciais de licenciatura diminuiu 37,6% na última década.

Contudo, ingressar não é sinônimo de concluir o ensino superior. Existe uma alta evasão em EaD, principalmente nos cursos de licenciatura. Em média, um a cada três alunos ingressantes na modalidade não termina a graduação.

Outro ponto que mereceu destaque diz respeito à idade dos estudantes de licenciatura: a participação de ingressantes com até 29 anos apresentou uma queda de 9,8 pontos porcentuais na última década, passando de 62,8%, em 2010, para 53,0%, em 2020. É um indicativo de que há muitos profissionais que atuam como docentes e decidiram se aperfeiçoar. Portanto, não se trata de novos professores no mercado.

Enquanto, à porta de entrada na carreira, o fluxo desacelera, a quantidade de professores com 50 anos ou mais – e, possivelmente, na iminência de se aposentar – tem aumentado significativamente, chegando a subir 109% em dez anos.

A matemática para o futuro foi feita assim: considerando a taxa atual de 20,3 pessoas com idade entre 3 e 17 anos para cada docente em exercício na educação básica, em 2040, serão necessários 1,97 milhão de professores para atender à demanda de alunos. Mantendo as taxas de crescimento de 2021, estima-se que o número de professores diminuirá 20,7% até 2040. Desta forma, o número de professores em atividade será de 1,74 milhão. A diferença entre a demanda e a oferta em nesse mesmo ano deve chegar a 235 mil.

Reverter esta tendência exige do País uma série de ações, a começar pela etapa da formação docente, de forma a aumentar as taxas de conclusão das licenciaturas.

“É preciso melhorar o salário, mas não só isso, porque o aluno de licenciatura que evade vai trabalhar em funções que apresentem salários piores sem o diploma. Devemos dar condições para que ele se forme, tornar os cursos atraentes”, afirma Lúcia Teixeira, presidente da Semesp.

Lúcia acredita que o fato de os futuros professores serem formados majoritariamente por EaD não seja um problema em si. “Não necessariamente é ruim, desde que o estágio e as atividades práticas sejam presenciais, de que a formação seja de qualidade – temos cursos EaD muito bons. Há uma parte dos brasileiros que só pode estudar se for a distância. Temos de encarar esta nossa realidade”, comenta.

Segundo Lúcia, o que os futuros professores precisam é de apoio, independentemente da modalidade, do perfil socioeconômico e da bagagem de cada um. Uma das razões da desistência no meio do curso é a falta de conhecimentos básicos, por causa de uma educação básica precária. “Muitas vezes, o profissional evade porque o curso fica difícil para ele. Se não aprendeu bem biologia na escola, como pode ser professor de Biologia? Temos de propiciar uma formação superior que dê ao futuro docente a possibilidade de refazer seus percursos de aprendizagem, de pontos que não tenham sido realizados de forma satisfatória na educação básica. Com incentivo, ele pode fechar estas brechas”, defende.

Uma ideia também defendida pelo setor é oferecer uma bolsa ou outro tipo de auxílio que seja ligado à presença do estudante de licenciatura na escola pública desde o início do curso, que atua sob a orientação de um tutor no local. “Temos alguns projetos de bolsa de iniciação à docência que dão muito certo. O estudante vai, desde o primeiro semestre, para a escola pública e passa a ter contato com a realidade da docência. É bom para ele, que percebe o próprio impacto, pode se encontrar na profissão E é bom para a rede de ensino, porque este jovem pode ser uma ponte entre o que o conhecimento da universidade e a escola”, diz Lúcia.

O modelo, que em alguns locais é chamado de “residência pedagógica”, precisa, contudo, de financiamento. Idealmente, tanto o universitário que vai para a escola durante sua formação quanto o professor da escola que orienta esse novo profissional deveriam receber um apoio financeiro.

Luta antiga

A necessidade de medidas para melhorar a qualidade e aumentar a quantidade de professores no Brasil não é novidade. Com altos e baixos, desde a década de 1980, o Brasil empreende uma série de esforços para conseguir que todas as crianças estudem numa com professores devidamente qualificados. Na época, com a universalização da educação, houve uma ampliação rápida da quantidade de alunos com acesso à escola básica, o que levou a uma escassez de profissionais. Como solução imediata, foi permitido pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) que pessoas sem licenciatura, ou com formação em áreas diversas, lecionassem.

Na década seguinte, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, determinou que todos os professores e as professoras da educação básica devessem ter formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam. A partir de então, o governo federal passou a pedir e incentivar quem já estava em sala de aula a tirar o diploma em sua disciplina de atuação. Um dos maiores programas do gênero foi o da Universidade Aberta do Brasil (UAB), iniciado em 2005, que reuniu governo federal, instituições de ensino superior e redes públicas municipais e estaduais para oferecer formação inicial ou pós-graduação a distância a professores que já atuassem, mas não tivessem a formação adequada.

Sabemos que escassez de professores nos aguarda no futuro, mas já faz 40 anos que o País luta para ter profissionais formados para a função. Até hoje, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nunca foi integralmente cumprida. Segundo o Censo Escolar, realizado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2020, mais de 13% dos profissionais da educação básica não tinham completado o ensino superior. Embora o quadro não seja positivo, já havia uma evolução: dez anos antes, este número era de 32%.

Mudanças estruturais no sistema de ensino, contudo, podem inverter a tendência. Professora na Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Política Educacional e Gestão Escolar, Márcia Jacomini vê no novo ensino médio um desafio extra quando se trata de preencher adequadamente as vagas docentes. “A reforma [do ensino médio] fez com que os componentes curriculares dos itinerários formativos diferissem da formação disciplinar. O professor é formado em Química, Física, Matemática, mas precisa dar aula de um componente com conteúdo que junta conhecimentos de disciplinas diferentes. Nem sempre o professor quer, porque ele se sente inseguro”, analisa.

O novo ensino médio é uma reforma curricular que prevê que os jovens tenham uma formação geral básica, igual para todos e definida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas escolham entre cinco diferentes itinerários para completar a grade. Nesta etapa, os componentes curriculares oferecidos são interdisciplinares.

No início do ano passado, com a implantação do novo ensino médio no Estado de São Paulo, a rede ficou com 17% das disciplinas dos itinerários formativos sem professores. Um levantamento feito pela organização Rede Escola Pública e Universidade (Repu), da qual Márcia é integrantes, com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação, aponta que, no fim de agosto, 8,7% das aulas nos itinerários formativos continuavam sem um professor atribuído. São quase 5 mil turmas sem o profissional. Em julho, a Secretaria Estadual de Educação não conseguiu preencher 500 das 2,9 mil vagas abertas para temporários, com um contrato de trabalho de três anos de duração.

“Nós já encaramos uma situação que poderia ser caracterizada como falta de professores, especialmente em algumas áreas. Com o problema, o CNE preparou uma resolução abrindo a possibilidade de formados em pedagogia darem determinadas aulas no ensino médio. Triste ver que voltamos à mesma situação dos anos de 1980”, lamenta a professora da USP.

Enquanto, à porta de entrada na carreira, o fluxo desacelera, a quantidade de professores com 50 anos ou mais – e, possivelmente, na iminência de se aposentar – tem aumentado significativamente, chegando a subir 109% em dez anos.

Nem tudo está perdido

Por meio de ações de valorização da carreira docente agora, é possível garantir professores bem preparados para as próximas gerações. Essa valorização depende de melhores condições de infraestrutura dentro das escolas, de mais autonomia didática para a elaboração das aulas – passando, também, pela questão salarial.

“O quanto se paga para um profissional está vinculado a como a sociedade o vê. Temos pesquisas atuais que indicam que as pessoas acreditam que o professor é muito importante, mas, ao mesmo tempo, não querem se tornar professores ou que seus filhos sejam professores. É uma contradição. Tem a ver com o salário e a carreira. Um docente precisa ganhar, no mínimo, a média salarial daquele Estado em relação a pessoas com formação equivalente”, defende Márcia.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, um professor no Brasil ganhava 78,5% do salário médio de outros profissionais com a mesma formação.

Como todas as médias, há sempre grandes discrepâncias escondidas nos números. No segundo semestre de 2022 foram abertos dois concursos públicos na cidade de São Paulo, um para a rede municipal, com salário inicial de R$ 5,05 mil, e outro para a Escola de Aplicação da USP, com salário de R$ 9.257.

“Ainda bem que temos esses concursos, mas, além do salário inicial, precisamos ver se há progressão na carreira: como ele vai estar daqui 30 anos? E lembrar que estamos num país de dimensões continentais”, ressalta Cristina Nogueira Barelli, coordenadora de Pedagogia no Instituto Singularidades, instituição focada na formação de docentes e braço social das empresas da família Abilio Diniz. “Em termos de políticas públicas, seria interessante ter dados mais refinados, como conhecer o déficit de professores por região e por disciplina. Assim, poderíamos ter ações localizadas, de acordo com as necessidades específicas”, explica.

Em todo o País, condições profissionais melhores ajudariam ainda a derrubar alguns mitos sobre a carreira docente, acredita Cristina: “Não colaboram nem a visão do professor como um herói, nem a visão dele como uma vítima. Precisamos olhar para ele como um profissional: ver a sua importância, o que sua atuação demanda em termos de formação e como fazer para promover a continuidade do seu trabalho.”

A despeito de todas as barreiras, a coordenadora pedagógica conta que vê muitos jovens talentosos e comprometidos com a docência se tornarem profissionais bem qualificados e realizados. Há esperança de melhorias, mas, para isso, deve-se focar na realidade do presente. “Temos de escutar os professores que já estão em ação, quais as necessidades que já estão colocadas, para que possam atingir a valorização”, adverte Cristina Nogueira Barelli. Desta forma, naturalmente, os novos docentes serão atraídos.

Luciana Alvarez Jônia Caon
Luciana Alvarez Jônia Caon