O mundo laboral sofre uma profunda transformação, cujo processo se acelerou durante a pandemia, que impactou todo o globo. Milhares de pessoas passaram a trabalhar de forma remota, transformando as idas e vindas ao local de ofício desnecessárias e ampliando ainda mais a dependência das tecnologias que permitiram produzir e se conectarem aos colegas. “A pandemia de covid-19 agilizou a digitalização das relações de trabalho de forma sem precedentes, transformando o cenário laboral global e incitando debates sobre o futuro. A transição para o modelo remoto, impulsionada pelas necessidades de isolamento social, revelou tanto oportunidades quanto desafios para trabalhadores e empregadores”, considera José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de Bens, Servuços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). Lina Nakata, professora na Fundação Instituto de Administração (FIA) Business School, comenta que o trabalho flexível é visto como muito vantajoso para grande parte das pessoas — afinal, é mais confortável ter o poder de escolher onde e como trabalhar. No entanto, diz ela, isso exige maturidade e uma boa gestão da organização e dos líderes, o que nem sempre está presente nas empresas.
Passado esse período mais rígido imposto pelo coronavírus, o mundo, mais uma vez, vê novas movimentações, com modelos de atuação híbrida ganhando destaque nas corporações, mas com muitos empregadores defendendo a atuação presencial e, simultaneamente, trabalhadores resistentes à volta para o escritório.
Pesquisa realizada pela Catho mostra que 61% das empresas pretendem voltar ao regime de trabalho totalmente presencial neste ano, uma decisão que abandona os modelos remotos ou híbridos adotados durante e logo após a pandemia. De acordo com Marino Alves de Faria, professor e coordenador do curso técnico em Recursos Humanos (RH) na Fundação de Apoio à Tecnologia (FAT), esse embate de retorno ao expediente presencial requer das empresas uma análise sobre a natureza e as condições do trabalho, isto é, algumas funções exigem a presença física no local, ao passo que outras podem ser realizadas remotamente. Essa definição permite avaliar se o retorno ao presencial é realmente necessário e fundamental para a produtividade, a eficiência e o resultado. Ainda segundo ele, os negócios devem levar em consideração as necessidades dos funcionários, por isso, uma abordagem flexível que combine trabalhos remoto e presencial pode ser uma solução adequada a muitas organizações.
Outro ponto destacado pelos especialistas é que o trabalho remoto pode contribuir para reduzir as desigualdades sociais. Em artigo publicado na revista norte-americana Forbes, a jornalista e empresária Erin Grau trata do assunto e cita um levantamento realizado com mulheres que adotam o modelo híbrido, combinando trabalho presencial e remoto. De acordo com o estudo, 88% delas acreditam que essa flexibilidade é equalizadora no ambiente laboral, enquanto dois terços afirmam que observaram um impacto positivo à própria trajetória de crescimento profissional.
“Os arranjos de trabalho ultrapassados e machistas podem impactar de forma extremamente negativa o retorno ao trabalho presencial, principalmente para as mulheres, resultando em faltas de flexibilidade, expectativas desiguais, assédio, discriminação, barreiras de acesso e cultura de presenteísmo”, diz Faria. Segundo o professor, para minimizar esses reflexos, as empresas devem adotar uma postura inclusiva, igualitária e flexível, implementando políticas que apoiem a igualdade de gênero, ofereçam flexibilidade de horários e combatam qualquer assédio e discriminação — e, nesse caminho, a liderança tem papel fundamental.
A professora Lina considera que, apesar de todos ganharem com o trabalho flexível, quando possível, as mulheres priorizam ainda mais esse formato. “As mulheres se beneficiam muito com isso, pois desempenham mais papéis [funcionária, gestora, mãe, filha, esposa, voluntária etc.] do que os homens, no geral. Os cuidados doméstico e familiar combinam melhor com o trabalho flexível”, diz, ao ponderar que a jornada móvel não contribuiu exatamente para gerar igualdade entre homens e mulheres, pois o trabalho remoto (seja durante a pandemia, seja depois) sobrecarregou as mulheres, quando observamos um quadro geral. “Em casa, elas tiveram de trabalhar mais horas para as empresas, mas também executar mais atividades domésticas e de responsabilidade familiar. Inclusive, no período da pandemia, foi observada uma saída significativamente maior de mulheres do mercado de trabalho formal, pois nem sempre conseguiram conciliar com tantas atividades (por exemplo, o homeschooling com filhos)”, afirma Lina.
Para especialistas, o panorama futuro parece caminhar para um modelo híbrido que busca equilibrar os benefícios dos trabalhos presencial e virtual. “A chave para o sucesso será encontrar o equilíbrio certo que maximize os benefícios de ambas as abordagens, atendendo às necessidades de empregados e empregadores e se adaptando às mudanças contínuas no ambiente laboral mundial”, afirma Pastore.
Outra tendência dos últimos anos, destaca a professora, é que os mais jovens também querem trabalhos cada vez mais flexíveis. Com isso, surgiram vários fenômenos, como o slow Monday (trabalhar o mínimo na segunda-feira), quiet quitting (saída silenciosa) e outros, por parte da geração Z, apontando que eles não estão dispostos a seguir a tradição do mundo corporativo da forma como está. A pesquisa Tendências e Perspectivas do Trabalho, realizada em 2023 pela WeWork Latam, com uma amostra de 3 mil trabalhadores brasileiros, revelou a busca dos profissionais por um equilíbrio entre o presencial e o remoto. Dos colaboradores que estão em modelo híbrido, 21,7% seguem presencialmente um dia por semana; 31,7% trabalham até dois dias; 32,7%, até três dias; 10,9%, até quatro dias; e apenas 3% trabalham cinco dias na semana.
A mesma pesquisa mostra a preferência de modalidade de trabalho. O levantamento evidencia o claro favoritismo pelo modelo híbrido (53%). Apenas 6% preferem trabalhar presencialmente, enquanto 41% optam pelo trabalho remoto. Isso comprova a insatisfação com o modelo antes tradicional, no qual não havia flexibilidade ou escolha. Isto é, o estudo comprovou que as empresas enfrentam, hoje, o desafio de equilibrar as necessidades operacionais com as preferências dos funcionários. Embora algumas estejam adotando o modelo híbrido, outras insistem em um retorno 100% presencial. No entanto, essas empresas podem enfrentar obstáculos de retenção de talentos, já que a pesquisa também mostra que 38% dos profissionais empregados no Brasil considerariam buscar outro emprego se a empresa em que estivessem adotasse somente a modalidade presencial. Segundo Leizer Pereira, CEO da Empodera, startup de RH, o trabalho presencial ou remoto não deveria fazer a diferença. A empresa — que, na pandemia, operou com modelo 100% remoto e, em 2022, mudou para o regime híbrido —, hoje, voltou ao sistema 100% online.
Nesse contexto, a tecnologia se torna cada vez mais importante. Por isso, conciliar as inovações tecnológicas, como a Inteligência Artificial (IA), é o principal desafio das organizações e dos trabalhadores. “A IA causa um impacto profundo e multifacetado aos modos de trabalho atuais, transformando os negócios, criando novas categorias de empregos e alterando as exigências de habilidades. Não há dúvida que afetará profundamente o modo como se trabalha, os modelos de trabalho e o sujeito do trabalho, aqui entendido como a inserção da IA como o agente do trabalho, e não mais a exclusividade do ser humano para o trabalho. Estamos, penso eu, no início de uma grande revolução silenciosa”, avalia Pastore.
A professora Lina, por sua vez, comenta que a IA e todas as outras evoluções tecnológicas trazem muito mais produtividade para os trabalhadores. Trata-se de uma vantagem, e não uma competição. “Devemos nos atualizar com os conhecimentos e, principalmente, o uso dessas tecnologias para avançar com mais competências e entregas.” No entanto, a entrevistada faz um contraponto, chamando a atenção para a necessidade da requalificação profissional. “O mercado de trabalho pode necessitar de menos mão de obra, dada a eficiência gerada, e os trabalhadores digitais vão tirando o espaço daqueles que exercem algo substituível pela tecnologia”, finaliza Lina.