Economia, popularidade e eleições

23 de setembro de 2022

Em todo o mundo, o desempenho da economia influencia a decisão dos eleitores de reeleger governantes ou dar uma oportunidade a seus oponentes. Este fenômeno, conhecido como "voto econômico", é uma das regularidades mais documentadas nos estudos sobre política eleitoral. Sabendo, entretanto, que a influência da economia varia bastante entre eleições, em que medida este será um tema dominante nas eleições presidenciais deste ano? ESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #468 IMPRESSA DA REVISTA PB. A VERSÃO DIGITAL ENCONTRA-SE DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

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As razões que explicam o voto econômico são objeto de intenso debate entre especialistas. É possível que o eleitor vote com base na economia porque, em última instância, o bem-estar material é sua prioridade. Um presidente cujo governo transcorre sob baixa inflação e desemprego e no qual o eleitorado experimenta um aumento do seu poder de compra torna-se imbatível, na medida  que atende aos anseios materiais fundamentais da sociedade. Um entendimento alternativo é que a economia determina o voto porque é muito difícil, para o eleitor comum, avaliar cada uma das políticas adotadas pelo governo. O desempenho econômico, neste sentido, seria um “sinal da competência” dos governantes em outros temas menos visíveis para o cidadão comum. Por fim, é possível que a conexão entre economia e voto seja ainda mais sutil, menos “racional” ou até menos consciente: uma economia próspera aumentaria a sensação de bem-estar, produzindo otimismo e desejo de continuidade, que se traduziriam em apoio àqueles que estão no poder sem que, necessariamente, os eleitores precisem conectar desempenho econômico e voto.

Independentemente das razões que o motivam, o voto econômico tem implicações profundas para a qualidade da representação política, principalmente em democracias menos consolidadas, como é o caso das latino-americanas e, dentre elas, a brasileira. Na ausência de partidos políticos fortemente vinculados a diferentes segmentos da sociedade e com uma agenda ideológica clara e estável, o voto fundamentado na economia torna-se um recurso importante, muitas vezes o único, para alinhar os interesses dos governantes aos do eleitorado.

A lógica é simples. Se cada eleitor apoiar ou rejeitar seus representantes com base em mudanças no bem-estar sob determinada gestão, e se os políticos perceberem este comportamento, os incentivos para que os representantes usem seus recursos — tempo, competência, dinheiro — para aumentar o bem-estar da população estarão dados. Assim, o simples ato de punir ou premiar lideranças políticas pelo desempenho da economia asseguraria a “boa representação”. 

A teoria do voto econômico, ao contrário de outras perspectivas sobre a democracia, não exige que os eleitores tenham preferências políticas claras ou estáveis, nem que conheçam ou acompanhem as ações de seus governos. Para a democracia “funcionar” e prover incentivos positivos para os governos, basta que o eleitor avalie se, ao final do mandato, sua vida melhorou ou piorou (ou se ele se sente bem ou não) e que vote de acordo.

Embora este seja um princípio poderoso, é preciso notar que nada no mundo social é assim tão simples. Os bons incentivos produzidos pelo voto econômico só se materializam caso o desempenho da economia seja, ao menos em grande parte, um resultado das escolhas do governo. Neste caso, ao premiar este desempenho com seu voto o eleitor estará premiando o mérito dos governantes e incentivando-os a buscar a melhoria de seu bem-estar. Apesar de uma simplificação, esse pressuposto reflete razoavelmente a realidade das democracias desenvolvidas.

As democracias sul-americanas estão inseridas na economia internacional como exportadoras de commodities e importadoras de poupança externa. Essas características fazem com que condições externas, e, portanto, fora do controle dos governos, determinem em grande parte o desempenho econômico.

INFLUÊNCIAS EXTERNAS 

É preciso perguntar, no entanto, o que acontece em países onde o desempenho econômico – e por consequência o bem-estar da população – está fortemente atrelado a fatores que os governantes não controlam.  Nossa resposta é simples, mas pouco otimista: nestas circunstâncias, o voto econômico premia não o mérito, mas a “sorte” dos governantes. E governantes cujo sucesso depende mais da sorte do que de mérito têm poucas razões para priorizar o bem-estar de seus governados. O impacto disso na qualidade da democracia é enorme e precisa ser compreendido.

Essas considerações teóricas têm fortes implicações no mundo real. As democracias sul-americanas estão inseridas na economia internacional como exportadoras de commodities e importadoras de poupança externa. Essas características fazem com que condições externas, e, portanto, fora do controle dos governos, determinem em grande parte o desempenho econômico.

Flutuações nos preços de commodities e nas taxas de juros internacionais, das quais dependem os fluxos de capital transnacional, afetam crescimento, inflação e desemprego na América do Sul. Por conta disso, essas flutuações afetam também o apoio popular a presidentes, suas perspectivas de reeleição (ou de eleição de sucessor) e até mesmo as chances de uma transição regular de governo. Em última instância, a volatilidade econômica que caracteriza a região limita a capacidade do eleitorado de avaliar a qualidade dos presidentes por meio da comparação do desempenho econômico dos governos, terminando por apoiar os “sortudos” (que governaram sob um ciclo favorável), muitas vezes em detrimento dos mais competentes. Além disso, a volatilidade econômica acaba produzindo volatilidade política, refletida em ciclos de euforia e depressão que fragilizam a democracia.

Essas relações estão fartamente documentadas em The Volatility Curse, e a discussão subjacente informa o que se pode esperar da eleição presidencial de 2022.

Análise de 62 eleições presidenciais em nove países sul-americanos mostra que a popularidade média entre os que não conseguiram se reeleger ou eleger seu sucessor foi 33,2%. Entre os bem-sucedidos foi de 56,1%.

RADIOGRAFIA ELEITORAL 

Preliminarmente, cabe registrar que a eleição de 2018 foi anômala por inúmeras razões. Além de haver transcorrido em meio a uma crise econômica profunda, que já se estendia, no mínimo, desde 2012, e uma crise de credibilidade política alimentada pela Lava Jato, não havia um candidato claro da situação; e o  que estava à frente das pesquisas foi preso e impedido de se candidatar.

A eleição de 2022, por sua vez, tem tudo para ser “normal”. Por  normal entenda-se, acima de tudo, um referendo sobre o desempenho econômico do governo. Neste sentido, embora seja tentador analisarmos cada movimento dos potenciais presidenciáveis, a perspectiva de reeleição (ou não) do presidente, em grande medida, independe desses fatores.

A situação econômica atual é particularmente ruim e, consequentemente, a popularidade de Jair Bolsonaro está no patamar mais baixo desde o início de seu mandato. Hoje, menos de 1/4 dos brasileiros considera o seu desempenho como bom ou ótimo. O histórico de medições realizadas no passado sugere que, com essa popularidade, a dez meses do pleito, o presidente terá grandes dificuldades para se reeleger.

Consideremos 62 eleições presidenciais realizadas em nove países da América do Sul, entre 1985 e 2021., sobre as quais temos os dados de popularidade. A popularidade média de presidentes a dez meses da eleição, neste universo, é de 40.7%. Considerando os que não conseguiram se reeleger ou eleger seu sucessor, essa média cai para 33.2%; e, entre os bem-sucedidos, ela sobe para 56.1%. Dentre os presidentes que detinham mais de 40% de popularidade nesse ponto do calendário eleitoral, 72% tiveram êxito. Acima de 30%, a taxa de sucesso é 62%. Abaixo de 30%, é de apenas 20%.

O cenário eleitoral é, neste sentido, francamente desfavorável a Bolsonaro. Neste contexto, é interessante olhar para os quatro casos em que presidentes em situações semelhantes a Bolsonaro hoje alcançaram êxito eleitoral (e que correspondem aos 20% do parágrafo anterior).

BAIXA POPULARIDADE X VOTO

Nas eleições argentinas de 2003, Nestor Kirchner se elegeu presidente com o apoio muito discreto de Eduardo Duhalde. Numa disputa acirrada, Kirchner acabou o primeiro turno em segundo lugar, atrás do também peronista ex-presidente Carlos Menem, mas com apenas 22% dos votos. Menem eventualmente retirou a sua candidatura e Kirchner venceu por W.O. Por seu caráter extremamente específico,  tanto em termos de conjuntura econômica quanto política, esse caso não gera lições claras para as eleições brasileiras de 2022.

Outro dos quatro casos de sucesso de presidentes pouco populares ocorreu no Brasil de 1993, quando o Plano Real, iniciado alguns meses antes, começava a render frutos. O então presidente Itamar Franco, que assumira após o impeachment de Collor, ainda não gozava de grande popularidade, mas o seu ex-ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, navegou o eventual sucesso econômico do Plano Real e se elegeu presidente ainda no primeiro turno. Assim como no caso anterior, o presidente não havia sido eleito e fazia um governo tampão, o que explica, em parte, sua baixa popularidade. A lição desse episódio, no entanto, é que uma drástica mudança econômica, como foi o Plano Real, tem efeitos eleitorais fortíssimos. Mudanças desta monta, no entanto, são eventos raríssimos.

O caso do Equador, em 2017, mostra o efeito eleitoral negativo de uma economia em retração. O presidente Rafael Correa, que havia governado por quase dez anos durante o superciclo de commodities, viu a sua popularidade cair substancialmente no final de seu mandato. As memórias positivas do período de bonança não garantiram uma eleição tranquila. Pelo contrário, o pleito foi extremamente disputado, e o resultado, questionado, levando a uma recontagem parcial dos votos. Após dias de impasse, o candidato da situação, Lenín Moreno, venceu o agora presidente Guillermo Lasso por pouquíssimos votos. Se a eleição houvesse ocorrido algumas semanas depois, é provável que tivesse terminado em derrota da situação.

O último caso é a reeleição de Lula, em 2006. Das quatro exceções, esta é certamente a mais auspiciosa para Bolsonaro. A evolução da popularidade de ambos os presidentes ao longo de seus primeiros mandatos é bastante semelhante. Em dezembro de 2005, Lula ainda se recuperava do escândalo do mensalão, e o País começava a experimentar os efeitos do boom de commodities que se iniciara alguns meses antes. A popularidade de Lula disparou nos meses que antecederam a eleição, com o Brasil experimentando forte crescimento econômico. Apesar do impulso dado pelo boom sem precedentes em tempos recentes, uma série de políticas que já estavam em curso contribuíram para que o vento favorável não fosse desperdiçado.

Bolsonaro pode até enxergar o proverbial “copo meio cheio” ao se comparar com Lula de 2006, mas nem as perspectivas externas nem a situação doméstica são comparáveis. Enquanto o FMI prevê uma leve queda nos preços de commodities em 2022, a política fiscal dos EUA deverá se tornar menos expansionista, o que pode reduzir o fluxo de capitais para economias emergentes como a nossa. O rescaldo da pandemia está sendo desafiador para todos os presidentes da região, como indicam todas as eleições (presidenciais e legislativas) livres realizadas na América Latina em 2021, e os eleitores não demonstram qualquer propensão a descontar a “má sorte” de seus líderes. Além disso, o cenário  macroeconômico é muito mais incerto hoje do que em 2005: o mercado de trabalho está em forte contração, e as políticas sociais estão sendo montadas às pressas, o que certamente comprometerá o retorno eleitoral delas.

POSSIBILIDADE DE REELEIÇÃO

Deixando a América do Sul de lado e examinando as eleições brasileiras no atual período democrático, nota-se uma forte relação entre a avaliação de desempenho dos presidentes e o voto (e/ou a intenção de voto) para o candidato da situação, como mostra o gráfico. Nele são considerados Ulysses Guimarães e Henrique Meirelles, os candidatos de José Sarney e Michel Temer, respectivamente, embora o apoio daqueles a estes não ter sido enfático.

Ainda que se reconheça as limitações inerentes ao exercício de estimar a relação entre popularidade e voto com base em apenas oito eleições, a figura abaixo evidencia uma relação bastante clara entre ambos.  Com a exceção de 2010, observa-se que a proporção de votos dos candidatos no primeiro turno é um pouco superior à sua popularidade — ou à popularidade dos presidentes que os apoiam) — às vésperas da eleição. Essa relação não significa, necessariamente, que quem avalia bem o/a presidente é quem vota nele/a no primeiro turno, mas ela nos dá algum parâmetro para pensar em 2022. Com a popularidade de hoje, Bolsonaro faria pouco mais de 25% dos votos, valor que pode ou não colocá-lo num ainda incerto segundo turno, mas que é insuficiente para uma vitória eleitoral.

Sem uma melhora significativa da economia, não haverá melhora da popularidade. Por outro lado, embora seus assessores mais próximos pareçam não compreender, a irresponsabilidade fiscal e os estratagemas de que o governo vem se valendo para maquiá-la têm um custo de credibilidade, que, entre outros fatores, vêm mantendo o real desvalorizado, em que pese a melhora no cenário externo ocorrida em 2021. Assim, o que o presidente dá com uma mão, a economia tira com a outra, por meio de inflação e desemprego.

TENDÊNCIA

Sem uma melhora substancial da popularidade, são poucas as chances de Bolsonaro vencer as eleições, independentemente do número, da identidade ou da estratégia dos demais candidatos. Mas mesmo um Bolsonaro com chances reduzidas de sucesso poderá causar estrago considerável. Uma das implicações mais interessantes observadas em nossa pesquisa é que presidentes quase certos de sua vitória ou derrota nas eleições têm menos incentivos para atender às necessidades dos eleitores, em comparação com aqueles cujo desfecho é incerto. A tendência, sob a ótica menos negativa, é que presidentes nessa situação se voltem para suas audiências cativas, em um esforço de fortalecer seu apoio futuro. No pior cenário, presidentes que se veem sem chances de reeleição podem buscar permanecer no poder por vias não eleitorais. Toda atenção será pouca para evitar que isso ocorra em outubro deste ano.

Daniela Campello e Cesar Zucco Paula Seco
Daniela Campello e Cesar Zucco Paula Seco