A história das mutações de sua condição como esposa, mãe e trabalhadora e de sua relação com o homem, numa sociedade em permanente transformação, possibilitou tornar as brasileiras protagonistas de uma lenta evolução: elas se tornaram donas do próprio nariz.
Desde sempre, mulheres souberam resistir e ficar em pé. Em 1822, nossa futura imperatriz, Maria Leopoldina; a concubina de seu marido, Domitila de Castro; a senhora de engenho Maria Barbara Pinho de França – que nos deixou um fantástico relato da guerra da Bahia –; as senhoras baianas e paulistas que assinaram manifestos em favor da separação de Portugal; a afro-brasileira Maria Felipa, que, na ilha de Itaparica, organizou a resistência nacional; ou a soldado Maria Quitéria, que empunhou armas contra o inimigo, marcaram presença na história, em meio a outras tantas milhares de anônimas.
Após a Independência do Brasil, nossas antepassadas se multiplicaram em primeiras “mestras de letras”, como o fez a pioneira feminista Nísia Floresta, e em pequenas e grandes comerciantes, lavradoras e fazendeiras – fossem brancas ou afro-brasileiras. Lendo e escrevendo, participaram do movimento abolicionista e republicano. Ao fim do século 19, grande parte do proletariado era constituído por elas. Em 1901, operárias, majoritariamente descendentes de imigrantes, perfaziam 67,62% da mão de obra empregada na fiação e na tecelagem, enquanto grande parte das mulheres negras, após a Abolição, continuou trabalhando em setores desqualificados. Durante a industrialização dos anos 1930 e 1940, milhares de mulheres integraram o setor de serviços e obtiveram o direito de votar. Nascia, então, a primeira onda feminista no Brasil. Na década de 1970, a participação delas em grupos comunitários organizados por igrejas e sindicatos resultou na criação de “clubes de mães” e de movimentos de mulheres trabalhadoras, bem como na participação em comissões jurídicas e políticas, que passaram a atuar ao lado do Estado. Além disso, elas fizeram crescer rapidamente a mobilização de diferentes setores da sociedade ao exigir a redemocratização do País, sacudindo o imobilismo das organizações sindicais.
Entre os anos 1970 e 1980, a “segunda onda feminista”, o aparecimento da pílula anticoncepcional, a migração do campo para a cidade e a explosão urbana ajudaram a mudar os papéis femininos e masculinos na família. A instituição se modernizou para acompanhar as transformações da sociedade industrial e o avanço do individualismo, ao passar de grandes famílias patriarcais a famílias reduzidas. À época, as mulheres se debatiam entre o desejo de multiplicidade de parceiros sexuais e a estabilidade sexual necessária aos filhos. E entre a parentela e a carreira profissional. Com a pílula anticoncepcional, surgiu também a chamada “revolução sexual”. Livre da sífilis, e ainda longe da aids, elas podiam provar de tudo. Na cama, novidades. A sexualidade, graças aos avanços da higiene íntima, se estendeu ao corpo inteiro. As preliminares ficaram mais longas. Na moda, a minissaia começou a despir os corpos. E a ideia de que os casais, além de amar, deviam ser sexualmente equilibrados começou a ser discutida.
Era o início do direito ao prazer para todos sem que a mulher fosse atormentada por se interessar por alguém. O fim do século 20 foi marcado, com pequenas variações entre as classes sociais, por um grande domínio dos destinos individuais e familiares por dois motivos: um sistema de valores que endossou esta autonomia e as condições objetivas (emprego, ambiente democrático, Estado) que autorizaram tal domínio. O crescimento de mulheres no mercado de trabalho, o progresso científico, a contracepção, a liberalização dos costumes e o divórcio mudaram definitivamente a cara do casamento e da família. Acabou-se o tempo em que cada um dos parentes defendia um papel social fixo. Desde então, os valores individualistas miraram a liberdade, a autonomia. A autoridade pura e simples foi destronada em favor da negociação e da partilha de aspirações. Nasceu uma nova forma de amar. Entre os casais, a união entre dois indivíduos foi reivindicada como livre escolha, a do amor consentido, não ditada por imperativos morais ou sociais. Foi-se o tempo das certezas absolutas em questões de união de homens e mulheres.
Para a família, o aumento da participação feminina no mercado – ao fim do século passado, elas eram responsáveis por 45% da força de trabalho no Brasil – acarretou ao menos duas mudanças: o homem perdeu o status de único provedor; a mulher, a resignação. À medida que ela se tornou financeiramente mais independente, ficou também menos disposta a suportar a infelicidade. Com base em informações oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do então Ministério do Trabalho e do Ministério da Educação (MEC), o acesso das mulheres ao mercado de trabalho, na década de 1990, e sua manutenção nos mercados informal e formal se consolidaram, apesar das crises econômicas. A escolaridade feminina superou a masculina a partir do segundo grau: as jovens concluíam os cursos técnicos e profissionais, assim como o ensino médio, em maior número que os rapazes e constituíam cerca de 60% das pessoas que então cursavam o superior. As filhas nascidas nas últimas décadas do século 20 foram as grandes vencedoras dos últimos decênios. Sem importar a origem social, seus percursos escolares foram melhores que os da geração anterior. O modelo de mulher trabalhadora das mães, somado ao investimento escolar, foi fundamental para a ascensão dessa geração. Em outro âmbito, a intensa queda da fecundidade reduziu o número de filhos por mulher, sobretudo nas cidades e nas regiões mais desenvolvidas do País.
Transformações nos padrões culturais e nos valores relativos ao papel social da mulher, intensificadas pelo impacto dos movimentos feministas e pela presença mais atuante desta parcela da população nos espaços públicos, alteraram a constituição da identidade feminina, cada vez mais voltada ao trabalho produtivo. A expansão da escolaridade e o ingresso nas universidades viabilizaram o acesso às novas oportunidades de trabalho. Mesmo contra um pano de fundo em que algumas questões estavam para ser melhoradas (a segregação ocupacional por preconceito racial, as disparidades salariais, a menor participação feminina nas associações de categorias profissionais, entre outras), no fim do século passado, as mulheres obtinham progressivamente uma igualdade de reconhecimento com os homens, senão de direitos. A Constituição de 1988 os consagrou.
Na última década do século 20, elas participaram de outro movimento: a cisão entre sexualidade, casamento e amor. Foi um momento de transição entre a tradição dos avós e a sexualidade obrigatória dos netos. Ninguém mais queria se casar sem “se experimentar”. Frigidez, nem pensar. “Ficar e se mandar” se tornou a regra. E só se falava em sexualidade plural. Separada da procriação, desculpabilizada pela psicanálise e exaltada pela mídia, a sexualidade da mulher brasileira se tornou assunto obrigatório. Em meio a tantas mudanças, a temática das desigualdades ficou relegada a segundo plano, em benefício da temática das identidades. A questão maior foi a de recusar as identidades que se lhes atribuíam (mãe, esposa etc.), em benefício do reconhecimento da própria identidade e das próprias diferenças (eu sou quem eu sou). A construção de si e o desenvolvimento pessoal foram prioridade no princípio de século 21.
À sombra da história das mulheres, a história dos homens. Afinal, se tantas representações e normas modelaram os comportamentos femininos, é importante entender como os mitos da virilidade e da dominação modelaram os homens. E como, para dominar o sexo feminino, os homens teorizaram a sua superioridade postulando não só a inferioridade essencial da mulher, mas a do outro homem: o sub-homem, o gay. Historicamente, esse mito legitimou a opressão do homem pelo homem e sua violência contra a mulher. Há tempos, porém, o modelo do todo-poderoso guerreiro político e sexual começou a derreter, a ponto de nostálgicos deplorarem uma “crise de virilidade”. Os masculinistas acusaram as feministas de tê-los privado de sua soberania natural. O que responder? Que o mal-estar masculino é, sem dúvida, uma realidade massiva e dolorosa, mas a emancipação feminina não é sua causa. A virilidade foi a armadilha na qual o próprio homem caiu ao querer estendê-la à mulher. Ao fazer do mito da superioridade do macho o fundamento das ordens social, política, religiosa e econômica, e ao valorizar a força, o gosto pelo poder, o apetite pela conquista e o instinto guerreiro, ele justificou e organizou a submissão delas. Com isso, também o homem foi condenado a reprimir as próprias emoções, temer a impotência, odiar a feminização e cultivar o gosto pela violência e pela morte heroica. Ao proibir-se de chorar, substituiu a tristeza pela cólera. O dever de virilidade se tornou um fardo, e “tornar-se homem”, um processo difícil e, por vezes, cruel.
O declínio progressivo das sociedades patriarcais é fato, pelo menos no Ocidente, desde o fim do século 20. Assistimos, então, à lenta, mas, constante reconfiguração das relações entre os sexos e mesmo dos papéis e das representações de cada um deles. O mito da virilidade vem decaindo desde o fim dos grandes patriarcas fazendeiros e da decadência das casas-grandes no século 19, da chegada do voto feminino na República Velha, dos hábitos e comportamentos novos introduzidos pós-guerra, da pílula que corroeu as últimas correntes de submissão, do divórcio, da criação de Secretarias de Atendimento Especializado à Mulher, da Lei Maria da Penha, da escolarização e da graduação de tantas mulheres a partir da Nova República, de mudanças no direito da família.
O caminho a percorrer também é longo. Não atingiremos a igualdade sem enfrentar o que restou da cultura patriarcal, ou seja, sem colocar em discussão o masculino como critério de superioridade e medida do mundo. A masculinidade de dominação é trans-histórica: está em todas as partes e em todos os tempos. Por isso, o patriarcado não será abolido por decreto nem por grandes manifestações. Ele tem de perder a legitimidade pelos abandonos da agressividade, da violência, do sexismo e da dominação por parte de homens – que estão, eles também, vivendo intensas mudanças. Estas mudanças os convidam a construir novas identidades masculinas, que os estimulem a reinventar a heterossexualidade.
O sociólogo Manuel Castells confirma: a desintegração do patriarcado está diretamente ligada à escolarização de mulheres e sua entrada no mercado de trabalho; à contracepção que lhes permitiu a liberação sexual; e à força de movimentos sociais, como o feminismo e as reivindicações LGBTQIA+ – tudo amparado por um “mundo em redes”, no qual as estruturas piramidais e hierárquicas tendem a desaparecer. As reconfigurações familiares e os novos papéis femininos e a emergência de valores pós-modernos – mais centrados na negociação que na força, no diálogo que na violência, na solidariedade que na competição – questionam profundamente as novas identidades masculinas desde o fim do século passado. A virilidade ostensiva, o falocentrismo e toda a afirmação excessiva de masculinidade passaram a se tornar motivo de riso.
Não se pode negar que tantas mutações sociais e culturais solaparam a identidade masculina construída, entre nós, desde antes de 1822. As fronteiras entre os gêneros se esfumaçaram. As lições do tempo convidaram a reconhecer uma variedade de modelos, sem que nenhum tivesse predomínio sobre os outros. Na prática, porém, a igualdade, tão pensada por cientistas sociais, acabou esbarrando nas práticas, cujo progresso é, lamentavelmente, muito, muito lento – haja vista que, com tantos avanços, só vimos progredir as taxas de violência contra as mulheres. Para a nossa vergonha (e para nossa reflexão também), a cada 15 minutos, uma mulher ainda é estuprada, ao passo que a cada duas horas, outra é assassinada. Apesar das políticas públicas, houve um aumento de 3,2 vezes no número de feminicídios, além da incidência de 35 agressões por minuto, em 2022.
O Estado tem tido dificuldades em agir, porém, as mulheres vão seguir reagindo. E as primeiras lições já estavam claras, desde 1822: a valorização da educação, como pregava Nísia Floresta; a solidariedade entre mulheres, como demonstraram as signatárias dos pedidos de libertação de Portugal; a resistência contra o preconceito e o racismo, encarnada em Maria Felipa; a luta por mais direitos e respeito, como visto em Maria Quitéria; a valorização do exemplo das antepassadas, bem retratado em Maria Leopoldina; a autonomização da mulher, como encarnada em Domitila de Castro; e (por que não?) a escuta dos parceiros masculinos, como fez Maria Bárbara Pinho de França em sua correspondência com filhos e marido. Há milhares de outros exemplos presentes em ações idealizadas e conduzidas por nossas irmãs do passado. No presente, não precisamos de pena, mas de reconhecimento e coragem.