Vivemos um pesadelo democrático, mas não é a distopia realizada

11 de dezembro de 2020

Este ensaio foi publicado na edição impressa da PB em parceria com o canal UM BRASIL. Ao longo de dezembro de 2020 e janeiro de 2021, o conteúdo deste número especial será publicado no site da PB.

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A pandemia foi um teste duro para todas as nações. A gravidade local da doença, desconhecida e fatal, acompanhou a qualidade e a estabilidade dos governos. Os países que mais sofreram com o avanço descontrolado da doença foram os que têm governantes minoritários, despreparados, incapazes de equilibrar o processo político e agir prontamente nas crises. São líderes que desprezam os alertas da ciência para manter seus planos políticos. Os quatro piores casos que ilustram esta associação foram Itália, Espanha, Estados Unidos e Brasil. No outro polo, dos bons governos, de esquerda e direita, responsáveis e efetivos, estão os casos de maior sucesso, como Alemanha, Portugal e Nova Zelândia.

Um dos principais recursos no atendimento da emergência pandêmica foi o legado das políticas progressistas anteriores aos regimes de austeridade. Nos Estados Unidos, esse legado é incipiente, e  a provisão de saúde, majoritariamente privada. Só pouco tempo atrás, com o chamado “Obamacare” [aprovado em março de 2010, o programa tornou obrigatório aos americanos ter um plano de saúde. Aqueles que não podem pagar, têm acesso ao tradicional auxílio médico (Medicaid e Medicare), renovado e ampliado para dar cobertura a todos], que o seguro- saúde foi estendido à população de  renda mais baixa. O National Health System, ou NHS, no Reino Unido; o SUS brasileiro, ainda que muito maltratado; o seguro universal e compulsório de saúde da Alemanha e sua rede de hospitais públicos; o sistema de assistência médica universal de Portugal e a cobertura gratuita de acidentes e outras emergências da Nova Zelândia, todos decisivos para salvar vidas. O resgate do legado progressista deu um novo alento à vida comunitária, ao lado de uma onda de solidariedade e empatia, em que o valor do outro se ampliou na proporção do sentimento de solidão no isolamento. A emergência bem encaminhada social e politicamente revalorizou a responsabilidade pública com os comuns.

É muito provável que, no pós-pandemia, a opção pela austeridade deixe de ser politicamente viável. Isso não significa que haverá uma tendência a abandonar a saudável responsabilidade fiscal. Os limites ao gasto público, dados pelo capitalismo financeirizado e pela redução das fontes tradicionais de tributação, persistirão. Entretanto, as sociedades demandarão que os governos deem prioridade irreprimível ao investimento de natureza social e à eliminação de privilégios que ampliem a desigualdade e a desproteção.

As redes digitais foram os meios de contato social, suprimento e entretenimento nas longas e solitárias horas em isolamento domiciliar. As pessoas descobriram o valor da praça digital, do coreto virtual, dos encontros a distância. As redes vinham perdendo a credibilidade por terem se tornado canais de desinformação, mensagens de ódio e difamação. Parecia que o seu lado sombrio abafaria de vez as possibilidades positivas de democratização da informação e de criação de uma conversação aberta entre indivíduos. O isolamento reconciliou as pessoas com as redes e revelou o seu lado luminoso. Ainda estão lá a desinformação e os ataques das milícias digitais. Contudo, a quantidade de lives, posts e compartilhamentos com conteúdo positivo, de qualidade, e a explosão no uso de aplicativos (como o Zoom) para encontros virtuais de amigos e famílias superaram a carga tóxica das redes sociais. Este novo padrão talvez tenha se consolidado a ponto de evitar o regresso ao domínio da negatividade. O ensino a distância e o trabalho remoto que aumentaram exponencialmente, por necessidade, revelaram as virtudes e as possibilidades das atividades online e passarão a conviver com o ensino e o trabalho presenciais.

O solidarismo em rede salvou vidas, evitou a depressão do isolamento, rompeu a solidão. A cooperação de pessoas anônimas permitiu a proteção dos mais vulneráveis à doença. Um aniversário solitário, de repente, se transformou em um coral de parabéns saído das janelas de vizinhos. Idosos solitários encontraram ajuda voluntária de vizinhos. Em Paraisópolis, em São Paulo, a comunidade escolheu um responsável por rua para coordenar o encaminhamento dos doentes e administrar o isolamento possível. Na Maré, no Rio de Janeiro, a Frente de Mobilização Popular (FMP) levantou recursos para os mais carentes e buscou soluções coletivas, como o compartilhamento de água. Instalou-se um processo de autoproteção e autogoverno diante da ausência do Estado e da carência de serviços essenciais.

A pandemia interrompeu processos como o avanço da ultradireita nos países com tradição democrática. Acelerou mudanças. Revigorou o sentimento comunitário. Foi uma tragédia com muitos ensinamentos. A esperança é que as pessoas, em todo o mundo, aprendam com eles – até porque nasceram de muita dor, individual e coletiva. Ninguém deve se impressionar com o fato de as lições da pandemia serem provisórias. Ela não acabou, e, antes de termos certeza da eficácia de vacinas, podemos enfrentar novas ondas. Por isso, vamos usar o que aprendemos e aprender mais. Tudo, hoje, é mutável e transitório. Estamos todos em transição.

O sistema político tradicional e analógico não acompanha, nem poderia, as transformações sociais. Deixa faixas crescentes da população desprotegidas, despossuídas e sem representação

A metamorfose global

O mundo está em metamorfose. Uma transformação que mudará radicalmente nossas vidas e das gerações por vir. A velocidade da mudança é espantosa e atinge todas as partes do planeta e todas as dimensões da vida. Há muita imprevisibilidade no horizonte próximo da humanidade e crescem a incerteza, a insegurança e a imprecisão. A realidade nos escapa; os paradigmas de análise, de representação e de proteção social não funcionam mais com a eficácia necessária.

São processos disruptivos nas estruturas social, econômica e política das sociedades. O motor é uma radical revolução científica e tecnológica. A mecanização e a inteligência artificial transformarão profundamente o universo do trabalho. A financeirização, a economia digital e o mercado online mudarão o capitalismo e as relações entre capital e trabalho. A jornada laboral será mais flexível e menor, enquanto o ócio criativo ocupará espaço maior na vida das pessoas. O capitalismo, talvez, se transforme em algo irreconhecível. Abre-se espaço para o surgimento de modelos econômicos mais cooperativos e criativos. Uma nova dinâmica do relacionamento humano, da política e das relações econômicas se desenvolverá no encontro entre o mundo social e a esfera digital.

A crise climática e a grande extinção de espécies da biodiversidade, ambas determinadas pela ação humana, criam uma situação de risco existencial para a humanidade, que nos imporá limites e desafiará nossa criatividade. Temos pouco controle sobre o clima – podemos mitigar a mudança climática, mas não voltar ao estado anterior ao desequilíbrio que produzimos. Pelo menos não no horizonte tecnológico que descortinamos. Até agora, não levamos este risco a sério, nem como realidade, nem como ameaça. O ambiente construído mudará radicalmente com o fim dos ciclos do motor a combustão e das fábricas manufatureiras. O transporte será eletrificado, e as fábricas, robotizadas e controladas por especialistas.

A maior visibilidade e a voz mais audível dos segmentos, antes, invisíveis da sociedade provocam a reação extremada dos supervisíveis e dos hiperincluídos

Desencanto, desproteção e desrepresentação

No plano político, estas mudanças geram indignação e raiva, nascidas da insegurança e do medo, que turvam a consciência e espantam a esperança. A maior visibilidade e a voz mais audível dos segmentos, antes, invisíveis da sociedade provocam a reação extremada dos supervisíveis e dos hiperincluídos. O medo alimenta o desejo de eliminar o diferente, de devolvê-lo à invisibilidade e ao silêncio.

O sistema político tradicional e analógico não acompanha, nem poderia, as transformações sociais. Deixa faixas crescentes da população desprotegidas, despossuídas e sem representação. Daí o desencanto crescente com a democracia. Os governos se tornaram disfuncionais e perderam apoio e legitimidade. A qualidade das políticas públicas piorou muito, deixando à margem parcela crescente da população: no limite, atendem a uma minoria provisoriamente vitoriosa, em desfavor de uma maioria deixada por conta própria.

No quadro de frustrações, o povo se perde entre os desencontros da esquerda e o extremismo da direita. Há uma aguda perda de referências. As pessoas apegam-se mais ao que lhes reforça a autoestima e a segurança. Daí o fortalecimento das identidades socialmente baseadas na identificação com certas reações àquilo que as pessoas veem como ameaça. A fluidez e a volatilidade das situações e das relações de trabalho, de vizinhança e de convivência social induzem ao fortalecimento de laços com aqueles que reajam do mesmo modo. A ausência de novas lideranças engana o eleitor, pois ele vê no candidato desconhecido o ilusório novo e tem a esperança vã de que trará melhoras efetivas e rápidas. Logo, descobre que o que elegeu é o que há de mais retrógrado e deslocado deste tempo. Nascem, deste teatro de enganos, os governantes incidentais, como Donald Trump e Jair Bolsonaro. São escolhidos em eleições atípicas e que tendem a não se repetir. Saem da periferia ou de fora da política para o centro do poder, de forma imprevista. O pior legado desses governantes é o agravamento do desencanto com a democracia e da desproteção social.

Os progressistas não entenderam ainda as necessidades do mundo em transformação, que envelhece suas convicções e seus modelos de análise. O desafio da esquerda é atualizar-se e abandonar os dogmas do passado. A direita liberal perdeu espaço com a emergência da extrema-direita ultranacionalista e reacionária, que lhe retirou parte do apoio popular. Além disso, mostrou-se incapaz de imaginar políticas para mitigar o sofrimento social com a transição. A extrema-direita retira sua agenda do fígado dos eleitores, capitalizando os sentimentos à flor da pele para se eleger. Entretanto, ao governar com o fígado, não é capaz de responder às aflições de seus eleitores, só aos preconceitos de seus militantes extremistas. Além disso, vê a democracia como um meio para chegar ao poder, mas não a aceita, quando os meios legítimos para limitar legalmente suas decisões (ou para retirá-la do poder) são ativados. A frustração dos outros a elege, e a frustração com seu governo a demite. Desconforto econômico e tensão social são a marca desta comunhão entre a direita autoritária e o capital financeiro. É um período de crise recorrente, e governos incidentais em muitas partes do mundo. Maiorias instáveis vêm e vão de um polo a outro do espectro político, em busca de impossíveis soluções imediatas e duradouras.

Vivemos a ressaca do século. As ondas sucessivas de mudança desestabilizam as sociedades, sem revelar o novo. Os conflitos sociais têm explicações causais menos precisas, na fronteira entre as disfunções da ordem em colapso e a imaturidade das formas emergentes. Já teve início, há algum tempo, a redução dramática da base manufatureira e o crescimento exponencial de serviços em rede. Postos de trabalho são destruídos para sempre, enquanto as ocupações da nova economia, ainda poucas, demandam habilitações muito diferentes das tradicionais. O compartilhamento dos serviços, como Uber, Airbnb, Spotify, Netflix e Autolib’, além do coworking e outros arranjos, surge de forma dinâmica, em geral tratado genericamente por “uberização”, levando à diluição da propriedade e das relações de trabalho. Essas tendências reforçam o processo de pulverização dos capitais. A redução da importância socioeconômica do capital físico levou à hegemonia do capital financeiro.

Não importam os personagens – na França, na Espanha, na Grécia, na Itália, nos Estados Unidos ou no Brasil –, tampouco os detalhes em cada país. O que importa é o roteiro. É como se as sociedades vivessem ao sabor de uma série da Netflix, com o mesmo script básico global, mas personagens e cenas formatados para cada realidade local. As idas e vindas, os avanços e tropeços, são como que ditados pelos sentimentos e pelas reações de cada público regional que as redes amplificam. São sentimentos de insegurança, medo e raiva. Há muito ressentimento com as perdas acumuladas e com o descaso. As relações sociais e políticas passam a ser motivadas por estímulos de desafeição e afeição. Este estado de espírito produz as polarizações políticas radicalizadas de nossos dias, que dividem o mundo entre “nós” (que amamos) e “eles” (que odiamos). As agendas políticas são construídas pelos trending topics,as quais as pesquisas de opinião refletem apenas parcialmente. São reativas, não proativas. Improvisadas, não planejadas. O filtro oligárquico, em quase todos os partidos tradicionais, à esquerda e à direita, deixa camadas crescentes do povo sem representação. As mudanças no emprego e nas relações de trabalho, somadas aos ajustes que atingem gastos sociais, aumentam a desproteção de amplos setores. As redes de proteção social foram desenhadas para uma realidade que está se tornando passado. Ficam curtas, não cobrem número crescente de pessoas e não são capazes de compensar a desproteção. Os modelos previdenciários e de seguro-desemprego, mesmo quando reformados para adaptá-los à nova demografia, protegem apenas os indivíduos que estão na estrutura ocupacional e contratual em desaparecimento.

Os problemas daí derivados são reais, concretos e inevitáveis. Cresce a proporção dos jovens com mais qualificação que os pais, que não conseguem entrar no mercado de trabalho. O desemprego entre os que têm entre 17 e 30 anos é, em geral, o dobro da média em quase todo o mundo capitalista. Crescem, além disso, o desemprego e a desproteção na faixa de pessoas entre 50 e 70 anos, em um contexto de maior longevidade ativa. Esta situação precária de vida alimenta a aversão à política e aos políticos e o desencanto com a democracia representativa. Forma-se, deste modo, a base eleitoral da ultradireita entre os mais jovens e os de idade madura.

O desafio democrático, há muito, deixou de ser uma questão apenas política. Não há como revigorar a crença na democracia sem desenhar novas políticas de redistribuição e proteção sociais, compatíveis com as demandas e limitações da transição; sem que o País resolva seus velhos males, como o racismo estrutural, a discriminação das mulheres e o descaso com a educação, todos em direta correlação com a enorme desigualdade. Os progressistas têm a vocação redistributivista, mas não conseguem desenhar uma equação econômica viável. Os conservadores liberais entendem os limites da economia em transição, mas não a necessidade do redistributivismo. O dilema social que ameaça a democracia é complexo. Não pode ser resolvido com reformas pontuais. Ele pede um novo paradigma redistributivo, flexível, compatível com as novas realidades econômica e fiscal e com as novas demandas da sociedade. Por isso fala-se tanto, em todas as correntes de pensamento, da renda básica de sobrevivência.

Isso ocorre no momento mais desafiador da história nacional. O Brasil terá de enfrentar múltiplos desafios de enorme alcance. Terá de se recuperar do retrocesso com Bolsonaro, em todos os campos: da democracia à educação, à política climática e ambiental, pois foi vasto o desmanche institucional. Terá de enfrentar seus passivos que vêm de longe: o racismo estrutural, a discriminação das mulheres, a intolerância com o diverso. Simultaneamente, terá de encontrar seu espaço nas revoluções científica e tecnológica, olhar bem à frente para definir quem seremos e que país teremos na segunda metade do século 21.

Sergio Abranches Divulgação Paula Seco
Sergio Abranches Divulgação Paula Seco