“É muito positivo que se apoiem as instituições, o Judiciário, a Câmara, mas isso não basta para mobilizar um país a fim de tirá-lo dessa situação de corrosão acentuada da democracia.”
Historiador, professor aposentado do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Academia Brasileira de Ciências, Boris Fausto é autor, entre outros, de A Revolução de 1930, Negócios e ócios e O Crime do restaurante chinês. Ganhou três vezes o Prêmio Jabuti.
Em entrevista ao canal UM BRASIL, concedida a Humberto Dantas, Boris Fausto indica a ausência de lideranças de oposição como o fator mais preocupante no atual momento político brasileiro. Para ele, a defesa do funcionamento das instituições democráticas é importante, mas não o suficiente para resgatar o País da corrosão acentuada da democracia.
“É muito positivo que se apoiem as instituições, o Judiciário, a Câmara, mas isso não basta para mobilizar um país a fim de tirá-lo dessa situação de corrosão acentuada da democracia.”
O risco, obviamente, é contra a democracia. Considero este governo desastroso. Seria preciso que uma voz democrática conseguisse encarnar oposição, um programa com força e capacidade suficientes para transmitir suas ideias e “calar fundo” na grande massa popular e na classe média. Não temos este nome, acho que esse é o grande problema do momento. Existem nomes razoáveis, como Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que faz muito, mesmo que não tenha este carisma. Não temos nenhuma pessoa que pelo menos desenhe com esta força de uma liderança, que se anteponha a estas condições lamentáveis da política atual, das situações social e econômica. Esse é um drama muito sério do momento que estamos vivendo.
Sem dúvida, mas esse não é um problema apenas do Brasil. Em outros países mais avançados (social e economicamente), existe a procura do salvador, daquele que unifique a nação. Aliás, o personagem mais terrível da história, Hitler, surgiu em um país como a Alemanha, uma nação civilizada que, mesmo assim, vivia uma profunda crise. Este fenômeno é comum, mas se acentua em lugares como o Brasil. A percepção da importância das instituições [democráticas] atinge certas camadas [da sociedade], mas, além delas, nas camadas mais abaixo e mais acima, este tema não encanta muito.
A tentação de buscar por um homem que encarne isso é muito forte. Mesmo conhecendo os riscos, é uma necessidade, na conjuntura atual, personificar uma figura que dialogue com sinceridade e esteja acima de acusações de corrupção. É muito positivo que se apoiem as instituições, o Judiciário, a Câmara, todas funcionando legal e razoavelmente, mas isso não basta para mobilizar um país, tirá-lo desta situação de corrosão acentuada da democracia. Quando o deputado Rodrigo Maia busca a reeleição na presidência da Câmara, afrontando a Constituição Federal, que diz que não pode ter outro mandato de dois anos dentro do mesmo mandato, e a Justiça eleitoral quando interfere na divisão do fundo eleitoral por motivos étnicos ou raciais, não pode nos passar a impressão de que estamos contendo a corrosão da democracia com mais corrosão? Certamente não é o melhor caminho que devemos empreender. No caso de Rodrigo Maia, se não é permitida a sua reeleição, podemos lastimar, mas não se pode simplesmente apagar a lei, senão faríamos isso agora em nome do bem comum, porém, lá na frente, o bem comum pode ser entendido como sendo outra coisa. Então, acabamos acrescentando mais corrosão ao sistema já corroído. Quanto à questão do Tribunal Eleitoral, há uma invasão de atribuições. Agora, acredito que estas coisas fora da competência do tribunal, mas em favor de um setor tão discriminado da sociedade, como acontece com os negros, seria a maneira de fazer avançar o que não avança nunca no plano legislativo. É preciso seguir a legislação e interpretar sempre que possível, não se apegando à letra da lei para não cometer absurdos, mas também não violá-la, porque esta violação acaba se voltando contra nós.
Sim, é uma parcela do povo que segura este governo. O impeachment é essencialmente um instrumental jurídico político, com muita ênfase no “político”. A condição de um apoio popular forte pelo impeachment é quase essencial para que o pedido possa, ao menos, ir adiante. Hoje, não temos condições políticas, já condições jurídicas há inúmeras, é uma questão de escolher os itens e enquadrá-los, existem várias razões. A forma como a opinião pública se encontra dividida e os quase 35% [de popularidade] não são pouco. O presidente Bolsonaro está, neste momento, na melhor situação do seu mandato.
Precisamos pensar um pouco nas raízes deste personalismo e levarmos em consideração a morosidade das decisões de órgãos colegiados variados, como o Judiciário e o Congresso. [A decisão monocrática] impressionava muito bem nos tempos áureos da Lava Jato, pois podia-se fazer uma limpeza, sem criar gargalos para que indivíduos ultracomprometidos com corrupção fossem absolvidos – ou seus processos, prescritos. Por outro lado, existe o poder excessivo que se confere a determinados postos. No caso do Legislativo, é nítido isso com relação aos presidentes da Câmara e do Senado. O presidente Rodrigo Maia deixou arquivado, ou em “banho-maria”, muitos pedidos de impeachment contra o presidente da República. Ele pode dizer que é sua prerrogativa, que avalia a conjuntura e não acha conveniente, do ponto de vista político, levar estes processos para frente. Isso não é bom. Não é possível que ele [presidente da Câmara] tenha um número tão grande de atribuições.
“Considero esse governo desastroso. Seria preciso que uma voz democrática conseguisse encarnar oposição, com força e capacidade suficientes para transmitir suas ideias e ‘calar fundo’ na grande massa popular e na classe média. Não temos esse nome.”
Ele foi realmente usado por Bolsonaro, deixou-se levar. O presidente Bolsonaro pode ser rústico ou rude, mas é também hábil e esperto para os fins dele, que sabe manejar o jogo político, um “joguinho triste”, mas sabe manejar. O exemplo de Moro é bastante expressivo. Ninguém pode dizer quais foram suas intenções ao aceitar o Ministério da Justiça, mas me parece que era um juiz que estava em Curitiba há muito tempo, marcando passo na magistratura federal, o que já é muito estranho, porém, quis sair e teve muita coragem. Ele ganhou uma popularidade muito grande – e com razão, em princípio. Trabalhou com muita coragem e competência, mas também “arranhou” muitas coisas. Foi complicada a atitude que ele teve em relação ao caso Lula, estou absolutamente convencido que ele também estava a serviço da exclusão da figura do Lula do espectro político brasileiro. Quando ele aceita assumir o Ministério da Justiça, de um governo como este – que defende atos autoritários, incentiva seus partidários com faixas pela volta do AI-5 [Ato Institucional nº 5, baixado pela ditadura militar, em 1968], que já falou a favor da tortura –, quem aceita o Ministério da Justiça, já dá um passo errado. Parece-me que Moro era uma figura da direita, disposto a apagar muitas coisas, que tinha a expectativa de ser um ministro atuante, que o levaria, talvez, à presidência da República, ou, por meio de um acordo secreto, fosse ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mas a partir do momento que ele começou a traçar limites da sua atuação, “daqui eu não passo”, acabou perdendo, porque no momento que confrontou o bolsonarismo – uma crença muito volátil –, ele minguou. Agora, fora do governo, Moro vai perdendo cada vez mais apoio e, no fim das contas, acabou ficando sem nada ou com muito pouco daquela reputação que tinha como juiz.