O brasileiro não tem percebido ações efetivas de combate à corrupção. É o que mostra o Índice de Percepção da Corrupção (IPC) de 2020, publicado anualmente desde 1995 pela organização sem fins lucrativos Transparência Internacional. O levantamento registrou que o Brasil mantém o mesmo patamar ruim de 2015, ano marcado pelo início do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Roussef – que motivou a baixa pontuação naquele momento. No ranking de 2020, que incluiu mais de 180 países, o Brasil obteve apenas 38 pontos, em uma escala que vai de 0 a 100 – quanto mais perto de zero, maior a corrupção.
Mesmo com alguns avanços – com a criação da força-tarefa da Lava Jato –, o estabelecimento do dispositivo da delação premiada para esclarecer crimes contra o patrimônio público e a busca pela autonomia das instituições, a população não notou medidas efetivas contra práticas ilegais no setor público.
Para Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional Brasil, uma série de retrocessos institucionais e legais no combate à corrupção nos últimos anos levaram o País a “patinar”. Em entrevista exclusiva, Brandão aponta que enquanto o Brasil não “tratar as causas estruturais do nosso problema de corrupção, mediante reformas legais, aprimoramento institucional e, principalmente, fortalecimento da consciência e da participação cidadã, estaremos presos a este ciclo em que cada avanço é seguido de grandes retrocessos”.
Ele ainda avalia as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que tornaram o ex-juiz Sérgio Moro suspeito e absolveram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além da deterioração das instituições democráticas e o avanço dos ataques à imprensa nacional promovidas pelo governo Bolsonaro.
“Se não conseguirmos tratar das causas estruturais do nosso problema de corrupção, mediante reformas legais, aprimoramento institucional e, principalmente, fortalecimento da consciência e da participação cidadã, estaremos presos a este ciclo em que cada avanço é seguido de grandes retrocessos.”
O resultado do Brasil, no último Índice de Percepção da Corrupção, mostrou que o País se mantém estagnado em um patamar de resultados muito alarmantes sobre a percepção da corrupção. Este resultado mais recente pode ser interpretado com base em uma série de retrocessos institucionais e legais no combate à corrupção nos últimos anos, alertados constantemente pela Transparência Internacional. Além da corrosão das instituições e dos processos democráticos, que interferem negativamente no combate à corrupção, vimos a cooptação, a perda de independência e autonomia de órgãos fundamentais, como a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Polícia Federal. Se não conseguirmos tratar das causas estruturais do nosso problema de corrupção, mediante reformas legais, aprimoramento institucional e, principalmente, fortalecimento da consciência e da participação cidadã, estaremos presos a este ciclo em que cada avanço é seguido de grandes retrocessos. Situação semelhante ao que vivemos na economia, com os chamados “voos de galinha”.
A Operação Lava Jato foi a maior investigação de combate à corrupção na história do País, exercendo um papel importante de explicitar um sistema arraigado de relações corruptas entre os poderes político e econômico nacionais. Esta corrupção sistêmica foi por muito tempo preservada com absoluta impunidade e, até mesmo, normalizada. É, portanto, um avanço notável que o País finalmente traga à luz o problema em sua inteira dimensão, bem como logre responsabilizar, em alguma medida, os indivíduos e rompa o histórico de normalização da trapaça. É importante salientar, no entanto, que a Lava Jato não surgiu do vácuo. Ela resultou de uma longa evolução das leis, instituições e da própria sociedade brasileira. Ela tampouco operou no vácuo, desenvolvendo-se dentro de sistemas jurídico, político e social que, embora tenham evoluído, ainda convivem com problemas graves. Muitos destes problemas se refletiram nos trabalhos da operação, nos erros e excessos cometidos. O Brasil teria uma oportunidade valiosa de mudança de trajetória aprendendo com as lições deixadas pela Lava Jato – tanto da corrupção sistêmica que revelou, quanto da forma de enfrentá-la. Entretanto, em vez de correção de erros e aprendizado, o que vem prevalecendo é um processo de desmanche e revanchismo.
A colaboração premiada, assim como o acordo de leniência, é um instrumento muito importante para desvendar a atuação de organizações criminosas e garantir que as investigações consigam chegar até o topo da hierarquia do crime. Ela é usada em diversos países do mundo para quebrar a lei do silêncio que prevalece nas quadrilhas, a famosa omertà da máfia napolitana. Estes instrumentos também se revelaram extremamente úteis para desvendar esquemas de macrocorrupção que, por utilizar sofisticados mecanismos de ocultação de transações financeiras, tornam as investigações muito difíceis sem a colaboração de participantes. No Brasil, a inovação das colaborações se complementou muito bem com outra inovação, que foi a criação das forças-tarefa. Como as colaborações ampliam exponencialmente o alcance das investigações, seria impossível processar esta carga de trabalho com o modelo tradicional de procuradores trabalhando isoladamente. A nova forma de trabalho em equipe e em colaboração com outras instituições, como as polícias e a Receita Federal, permitiu que todo esse potencial fosse adequadamente explorado nas investigações. Ambas as inovações, no entanto, precisam de aprimoramentos para que funcionem com mais eficiência e, principalmente, mais transparência e controle. Entretanto, infelizmente o que está ocorrendo não é o aprimoramento destes mecanismos, mas o seu desmanche.
A Operação Lava Jato, pelo tamanho que assumiu, pelos esquemas que revelou e pelas figuras que implicou, tornou-se um tema com inevitável carga política no País. As paixões, os interesses e as disputas de poder que envolvem os eventos ligados à Lava Jato intoxicam o debate público e tornam a interpretação dos fatos extremamente complexa. O tempo talvez permita análises mais racionais e justas sobre estas decisões, mas, em qualquer circunstância, os princípios do Estado democrático de direito devem ser defendidos a todo custo. O devido processo legal, o respeito às instituições democráticas – aqui principalmente os tribunais e seus membros –, o respeito às garantias individuais e também o respeito ao princípio de igualdade de todos perante a lei, são nestes marcos que devemos caminhar. O personalismo que faz de juízes ou réus heróis, mártires ou vilões não nos levará adiante no processo civilizatório. Nem deveriam ser estas as grandes questões nacionais, mas a melhoria das leis, das instituições e, principalmente, da cidadania.
Sem dúvida, e isso é algo que temos denunciado desde 2019. A atuação do governo federal para interferir no Poder Judiciário, no Ministério Público (MPF) e em órgãos de investigação e controle, como a Polícia Federal e o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], prejudica enormemente o avanço do combate à corrupção. Todavia, não é só o combate à corrupção que é prejudicado, é o próprio regime democrático. A perda de autonomia destes órgãos tem causado sérios temores de que já não estejam sendo usados “somente” para a blindagem de aliados e que já estejam capturados para algo muito mais grave, que é a perseguição de opositores, inclusive com possível utilização de estruturas paralelas de inteligência e vigilância clandestina. É um caminho muito perigoso e de difícil reversão.
O jornalismo sempre foi um dos maiores aliados no combate à corrupção, no Brasil e no mundo. O jornalismo profissional e, principalmente, o jornalismo investigativo são responsáveis não apenas por desvendar e revelar esquemas de corrupção, mas também por fornecer aos cidadãos informações confiáveis para que acompanhem os diferentes governos e suas ações – e por serem meios de informação confiáveis para combater a desinformação e a disseminação de fake news. Contudo, para que o jornalismo cumpra efetivamente o papel de investigar e informar, é preciso que exista plena garantia de liberdade de imprensa e de respeito a seus profissionais. Atualmente, no Brasil, uma das faces do autoritarismo se mostra nos ataques sistemáticos aos veículos da imprensa e aos jornalistas, sobretudo às jornalistas mulheres. Estas tentativas de intimidar jornalistas alcançam outros setores cuja crítica independente também incomoda poderosos, como a academia e a sociedade civil organizada.
Primeiro, é preciso que o País reconquiste garantias básicas que foram deixadas de lado nos últimos anos, como a independência de órgãos de controle e investigação. Órgãos que desempenhem funções importantes no combate à corrupção, como a Polícia Federal, o MPF, a Controladoria-Geral da União (CGU), o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Receita Federal, além do próprio Poder Judiciário, precisam ser protegidos de interferências políticas, como nomeações e destituições de postos fundamentais. É necessário ainda que outros poderes da República se engajem e priorizem o combate à corrupção nas suas agendas. No Congresso Nacional e no Senado, por exemplo, ainda há pouca discussão legislativa e avanços sobre pautas que auxiliem a prevenção e o combate à corrupção, como a regulamentação do lobby, a proteção de denunciantes, a tipificação da corrupção privada, entre tantos outros. Ademais, é preciso que o Legislativo barre as recentes ameaças a algumas das principais leis para o combate à corrupção no País, como as mudanças excessivas propostas na Lei de Improbidade Administrativa. Por fim, é importante ressaltar que não há fórmula mágica para o combate à corrupção, mas existe algo em comum entre os países que conseguiram efetivamente avançar na construção de sociedades mais íntegras: uma cidadania consciente, livre e atuante.
O Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional indica que Dinamarca, Nova Zelândia e Finlândia têm ocupado as melhores posições nos últimos anos. Os países têm trajetórias e realidades muito distintas, portanto, é complexo tentar extrair soluções comuns. O que se percebe como padrão, no entanto, é que os países apontados como mais bem-sucedidos no combate à corrupção – ou, pelo menos, onde existe menor percepção de corrupção – são democracias sólidas, com leis e instituições respeitadas e, principalmente, uma cidadania consciente e atuante na defesa do interesse público. Por outro lado, as posições inferiores do ranking são ocupadas por países como Somália, Síria e Sudão, marcados por regimes autoritários, que normalmente limitam direitos fundamentais dos cidadãos.