entrevista

“Como nação, já nascemos grandes”

08 de setembro de 2022
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Arquiteto e urbanista por formação, Paulo Rezzutti se tornou um pesquisador histórico de respeito quando encontrou, em 2010, 94 cartas inéditas escritas pelo imperador Dom Pedro I para sua mais famosa amante, a Marquesa de Santos. O material estava no acervo da Hispanic Society of America, em Nova York, e acabou revelado em seu livro Titília e o Demonão, publicado em 2011.

De lá para cá, Rezzutti enveredou pelas minúcias da família imperial brasileira, lançando outros livros de sucesso, como as biografias de Dom Pedro I, de Leopoldina e de Dom Pedro II, entre outras obras. Acaba de chegar às livrarias Independência, a história não contada – a construção do Brasil: 1500-1825 (Leya), título de sua lavra que se aproveita do momento em que o Brasil celebra o Bicentenário da Independência.

Uma coincidência, aliás, faz com que o tema esteja ligado umbilicalmente com Rezzutti: ele nasceu em setembro de 1972, justamente quando o País vivia grande comoção pelas comemorações do sesquicentenário da independência.

No polarizado Brasil de 2022, o pesquisador deixa claro que seu interesse pelo tema é somente do ponto de vista histórico, distanciando-se, assim, dos conservadores monarquistas que idealizam uma volta ao arcaico regime. E, como um dos protagonistas — inclusive com um canal de sucesso no YouTube, mais de 260 mil seguidores —, analisa a onda de pesquisadores independentes que têm contribuído para a popularização de temas históricos.

Há mais de uma década você pesquisa a história da família imperial brasileira. Neste momento de Bicentenário da Independência, quais são as principais lições que a sociedade brasileira pode tirar do passado?

A história da Independência tem, obviamente, a ver com a futura família imperial do Brasil, o Dom Pedro, a Leopoldina [sua primeira mulher], que atuam como agentes desse primeiro movimento autonomista que a gente vai ter. E eles estão, obviamente, cercados pela elite brasileira do período. E uma coisa muito interessante é que, se a gente analisar o que era essa elite… Em 1823, antes da constituição outorgada por Dom Pedro em 1824, essa elite criou uma constituição para o Brasil, muito menos liberal do que a de Dom Pedro. Era uma constituição que só dizia respeito a essa elite e à proteção das propriedades dessa elite. Então, não há nenhum membro dessa elite, tirando José Bonifácio, nenhum outro deputado constituinte preocupado com a escravidão, por exemplo. Você tem uma elite hiperconservadora, que era, inclusive, contra os portugueses, contra os que ficaram aqui e lutaram pela independência do Brasil. Uma elite conservadora e xenófoba que ascendeu ao poder no início do processo de Independência do Brasil.

Mas quando olhamos para o período imperial, quais são os principais legados sociais que, de certa forma, ainda estão na sociedade?

Um dos mais importantes, a meu ver, é a educação gratuita para todos os brasileiros. Isso está previsto na constituição que Dom Pedro I outorgou ao Brasil em 1824. Outra questão, eu acho, é a unidade nacional, o tamanho do Brasil. A congregação das forças nacionais ao redor de um símbolo, que foi Dom Pedro I, facilitou essa unidade, inicialmente. Evitou que o território se desagregasse e, posteriormente, com Pedro II, houve interesse do império em manter essa unidade nacional. Iniciamos logo de cara, como nação, como um Estado enorme, perto do que existia na América do Sul. Já nascemos grandes, e com uma unidade linguística.

E quais os problemas herdados dessa época?

O problema maior, não só do império, mas do Brasil desde a época colonial, é a escravização. É o viver da escravização de outros seres humanos. Até hoje, há resquícios disso: o quarto da empregada, a entrada de serviço separada da social, coisas que na Europa não existem. Há discriminação, várias coisas que são um rescaldo disso tudo. Entretanto, a mesma constituição de 1824 não proibia os negros de ter acesso à educação. Os negros eram livres. Então, isso é uma coisa boa de certa maneira: nem todos conseguiam, porque uma coisa é a lei, outra é conseguir. Mas alguns conseguiam ser educados. Por isso, houve diversos negros em vários pontos do Brasil participando ativamente na sociedade. O Machado de Assis, o André Rebouças… Pessoas negras que se educaram e puderam votar, ser votadas. Nisso, tivemos um ganho enorme perto dos Estados Unidos, que, nos anos 1960, ainda estavam discutindo isso, do negro ter acesso ao voto. Ainda estamos longe de eliminarmos essa questão da escravidão, mas estamos a anos-luz do que os Estados Unidos sofreram e ainda sofrem por essa questão de quase apartheid que eles viveram. Temos preconceito, às vezes real e visível, às vezes não visível, mas não tão gritante como nos Estados Unidos.

No Brasil polarizado de hoje, você costuma ser visto como monarquista? O que responde nesses casos?

Eu costumo dizer a realidade: que eu não sou monarquista. Meu interesse pela história do Brasil é unicamente histórico, ele não é político, eu não tenho nada a ver com o movimento monarquista. Eu respeito, porque a gente está numa democracia. Mas eu não vejo o Brasil voltando a ser uma monarquia, acho que existe um idealismo, uma imagem muito idealizada do que foi o império brasileiro. Muito romantizada. E o movimento tenta cristalizar de alguma forma. Mas a gente está bem longe de ter pessoas do calibre de Dom Pedro I, de mente aberta e civilizada, como a de Dom Pedro II. Você tinha, na época do Dom Pedro II, um governante que nomeava republicanos para o ministério, porque não interessava o que a pessoa pensava politicamente, mas se a pessoa era boa o suficiente para aquele cargo ou não. Era isso que era levado em conta pelo imperador. Ele nomeou como professor de um dos netos dele um republicano, o Benjamin Constant, que, depois, participaria do golpe da República. Era uma pessoa que defendia a imprensa livre. Tinha outra mentalidade. Hoje, eu não vejo ninguém no movimento monarquista com o espírito tão republicano quanto foi o desse último imperador que nós tivemos.

O que explica, nos últimos anos, o aumento no número de defensores de uma volta da monarquia?

Houve um claro desenvolvimento de uma direita ultraconservadora, católica, ligada a símbolos e signos que acabam de alguma maneira se inclinando para essa lembrança da monarquia. E diversos políticos se aproveitaram dessa onda para se eleger com bandeirinhas da monarquia. Eles só se aproveitam do movimento, dos votos que essas pessoas possam dar. Não são pessoas que estão intrinsecamente ligadas ao movimento para fazer com que a monarquia volte. São populistas que acabaram se aproveitando do movimento.

E isso dialoga com livros, novelas e outras obras baseadas no tema?

No Brasil de hoje, existe uma questão curiosa: as modas dentro da pesquisa histórica. Por exemplo, quando eu estudei sobre Dom Pedro I, eu nadava de braçada na documentação do Arquivo Nacional. Porque o foco na época era a época da ditadura, havia todo um movimento de estudo sobre a ditadura, o pop era isso na época. Hoje em dia, você tem uma mistura da questão de gênero com a questão social, de estratos sociais da população brasileira. E a biografia em si desses personagens não acabam interessando se entra nesse caso, não pelas pessoas em si. Estudar a elite do império é, muitas vezes, uma forma malvista dentro da academia. Porque você está valorizando o que [no entendimento deles] não deve ser valorizado. Existe um preconceito acadêmico contra alguns dos personagens e contra determinados períodos de nossa história. Daí, quem estuda isso acaba sendo tachado de monarquista.

“O problema maior, não só do império, mas do Brasil, desde a época colonial, é a escravização. É o viver da escravização de outros seres humanos. Até hoje, há resquícios disso: o quarto da empregada, a entrada de serviço separada da social, coisas que na Europa não existem. Há discriminação, várias coisas que são um rescaldo disso tudo.”

Como o Brasil trata a sua memória, de forma geral?

Agora, no Bicentenário da Independência, a gente não vê um movimento coeso sobre o que fazer. Temos um movimento para desconstruir tudo. Muitas vezes, as pessoas querem desconstruir a história, e não há fundamentação suficiente para desconstruir essa história, porque realmente a história precisa ser desconstruída muitas vezes, mas não de maneira venal, política, atabalhoada. De qualquer maneira, além da reinauguração do Museu do Ipiranga [que estava fechado desde 2013 para obras de ampliação e restauro], não vemos nenhum projeto que mova toda a nação. Vemos algumas coisas esparsas. A memória é muito maltratada no Brasil. O Museu Nacional pegou fogo [em 2018] e muita gente lamenta um monte de perda que teve sem nem saber o que tinha lá dentro, porque nunca visitou, porque não tinha interesse.

O brasileiro não costuma ser levado desde cedo para a história, para gostar de história, querer saber mais sobre seu povo. Aparentemente, alguns acham que a gente não tem uma história digna de ser contada, que a Europa é melhor, que nós somos meio vira-latas. Aí, por não estudarmos a própria história e não protegermos o patrimônio histórico, acabamos sendo um país sem lembrança do que já foi; sempre cometendo os mesmos erros. Ficamos com essa síndrome do vira-lata, sempre achando que a história do vizinho é melhor. E isso não é verdade. A gente tem muita história, mas isso precisa ser mais publicizado, sair um pouco das cátedras e ir um pouco mais para o povo.

E por parte do público, acredita que existe um interesse maior por história?

Há um movimento, pelo menos desde o fim do século 20, em que grandes nomes [de autores especializados nesse nicho] surgiram, como Mary Del Priore, Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e outros, que ajudaram a tirar a história da academia, de livros mais duros. Eles levaram a história para o povão, e o povo acabou se apropriando das histórias do Brasil. Eu vim mesmo atrás, depois dessa gente, e peguei um público que já tinha interesse em história.

Como é a interação direta com os leitores, sobretudo em seu canal no YouTube?

Essa interação é muito satisfatória e me trouxe gratas surpresas. Eu comecei a me deter em algumas coisas que, antes, achava que já estavam claras, naturais. Muitas pessoas não tiveram acesso, e acho que isso faz parte do processo de popularizar a história: ouvir o que a pessoa não sabe. E alguns livros mesmo, como por exemplo a minha biografia sobre Dom Pedro II, foram construídos em cima de dúvidas dos meus leitores. Eram coisas sobre as quais eu via que não tinha abordagens em outras obras do gênero sobre Dom Pedro. Essa troca é muito gratificante e ajuda no meu trabalho. E ajuda também para que eu não fique em um pedestal. O Brasil é tão plural quanto a nossa educação. Então, não dá para pensar que todo mundo tem a mesma bagagem de história.

ESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #471 IMPRESSA DA PB. A VERSÃO DIGITAL DA REVISTA ENCONTRA-SE DISPONÍVEL INTEGRALMENTE NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

Edison Veiga Divulgação
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