O modo como o governo chinês utiliza a tecnologia para controlar os cidadãos, sem transparência e com enorme abrangência, preocupa Alexis Wichowski, PhD em Ciência da Informação e professora da Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos. Trabalhou no Departamento de Estado norte-americano, com atuação no uso diplomático de tecnologia, e na Organização das Nações Unidas (ONU).
ESTE TEXTO FOI PUBLICADO NA EDIÇÃO ESPECIAL DA PB EM PARCERIA COM O CANAL UM BRASIL. AO LONGO DO MÊS DE JANEIRO, O CONTEÚDO COMPLETO DA REVISTA SERÁ OFERECIDO NO SITE DA PB.
É interessante ver como os governos de rede vêm reagindo à pandemia. Quando o covid-19 atacou os Estados Unidos, em fevereiro e março de 2020, quem realmente tomou a iniciativa de proteger as pessoas não foi o governo ou o país, foram os “governos de rede”: Google, Microsoft, Amazon, Facebook. Essas empresas foram algumas das primeiras entidades a declarar que os funcionários trabalhariam em casa, para a própria proteção; a garantir que funcionários que trabalhem por hora não perderiam o emprego, mesmo incapazes de irem ao local de trabalho, bem como dariam licença parental àqueles cujos filhos não iriam mais à escola. O Google deu aos funcionários centenas de dólares de crédito para montar o home office, e as licenças parentais, em particular, foram importantíssimas, porque muitos pais têm sofrido dificuldades para educar as crianças em casa e trabalhar ao mesmo tempo. O fato de esses governos de rede terem sido capazes de fornecer licenças parentais possibilitou aos pais se ajustarem e tomarem providências. É o tipo de comportamento que se esperaria de um país – e é interessante perceber que a origem desse comportamento não vem de nenhum, mas dessas empresas.
Apenas ser uma grande empresa não significa ser um governo de rede. McDonald’s e Coca-Cola são grandes empresas, mas elas têm qualidades bem diferentes dos “governos de rede”, os quais trabalham com produtos e serviços tecnológicos, e uma das coisas que os diferencia é que tratam os clientes quase como cidadãos de seus produtos e serviços. O Facebook tem uma equipe antiterrorista que é maior que a equipe antiterrorista do governo norte- -americano. Dado o que vem acontecendo no Facebook com ataques sendo transmitidos ao vivo, como os atentados às mesquitas na Nova Zelândia alguns anos atrás, não surpreende que a empresa tenha uma equipe para tal. Mas imagine se a Coca-Cola tivesse uma, seria absurdo. Os governos de rede trabalham com atividades diferentes e fazem parecer que seus clientes são cidadãos que precisam proteger.
Sei que boa parte dos Estados Unidos possui plataformas centrais. Por exemplo, o Facebook está investindo forte na África, com conexões submarinas a cabo, que deve ter lhes custado cerca de US$ 6 bilhões – para oferecer conectividade a 28 países africanos –, e abrirão um escritório no continente que será majoritariamente composto por funcionários locais em adição a funcionários de outros países. Creio que, ao quererem expandir mercados, empresas precisarão se engajar mais a um nível local e adaptar seus conteúdos à cultura com a qual trabalharão.
Dito isso, as grandes empresas atuam com base nos Estados Unidos, e não acho que isso seja uma coincidência arbitrária. Acredito que tenha relação com a forma como o sistema regulatório daquele país é configurado como uma “terra sem lei” para a tecnologia, onde pode se fazer de tudo. Então, enquanto esse for o caso, acho que será uma forma de impor ideias e culturas norte-americanas sobre outros países – adaptadas às culturas locais, mas ainda dominadas por uma sensibilidade estadunidense
Com a chegada do computador, deixamos de ser recipientes passivos de conteúdo e passamos a escolher o conteúdo a ser consumido. À medida que os computadores se proliferaram e ficaram mais baratos, a família não se revezava em um só computador ou consumiam o seu conteúdo com todos juntos. Passamos a ter uma relação individual com o conteúdo que consumíamos. Uma relação solitária. Por fim, no estágio em que estamos agora, somos grupos de usuários. Estamos ligados em redes, tendo conversas em grupo em redes sociais com pessoas que não necessariamente conhecemos, e isso está evoluindo em tempo real. O modo como essas empresas estão nos tratando mais como cidadãos do que como usuários me levou a concluir que somos algo no meio-termo. Somos como um “usuário-cidadão” da tecnologia de internet com a qual interagimos.
Quando entramos no Facebook ou usamos o Google, normalmente só pensamos nos serviços que oferecem, como contatar amigos e achar informações, mas não sobre os efeitos secundários, o que acontece com os dados que coletam sobre nós. Pessoalmente, acho que esses dados coletados já estão perdidos. Jamais os recuperaremos. Não podemos “desdisponibilizar” os dados que disponibilizamos, mas acredito que exista a oportunidade de criar mecanismos que restrinjam a quantidade de dados que compartilhamos daqui para a frente, ou que nos compensem por isso, com mais segurança e proteção, mais informações sobre como os dados são usados. Mas não vejo um futuro no qual não usaremos esses produtos tecnológicos, tampouco que nossos dados não serão vendidos. Só acho que será feito de forma diferente.
Acho que as pessoas que trabalham em empresas tecnológicas detêm o enorme poder, especialmente como grupo, de dirigir a atividade ética da empresa. Vou dar um exemplo: alguns anos atrás, o Google decidiu firmar um contrato com o Departamento de Defesa. Um contrato minúsculo para os padrões do Google: US$ 10 milhões. Eles nomearam dez pessoas para o projeto, o “Projeto Maven”. Sua missão era melhorar o processamento de vídeo da tecnologia drone. Não era um contrato de armas, mas de qualidade de imagem. Quando os funcionários do Google aprenderam sobre o contrato, eles protestaram. Várias pessoas se demitiram por princípios, e todos mandaram uma carta a Sundar Pichai, o presidente do Google, dizendo que o Google não devia entrar no mercado da guerra, e o Google desistiu do contrato. Essa foi uma ação efetiva pelos funcionários em conjunto. Logo, se organizado e com as bases certas, acho que há enormes oportunidades para os funcionários de empresas tecnológicas direcionarem os tipos de atividades que as empresas praticam.
“Estamos começando a ver a China negociar com países africanos a tecnologia de vigilância. Isso está sendo compartilhado com outros países que queiram essa vigilância abrangente e autoritária sobre os cidadãos.”
Acho bem preocupante o modo como o governo de tecnologia se desenvolveu na China por três motivos. O primeiro é a falta de transparência. Não está claro sobre o que estão fazendo com as atividades de vigilância. Há muitos relatos sobre estarem sendo usadas para atacar indivíduos e minorias. O segundo é a espantosa abrangência. O simples fato de ela existir em todo espaço público das grandes áreas metropolitanas indica que cidadãos comuns não podem mais ter privacidade, somente em suas casas, talvez. Um terceiro fator que me preocupa é que a China criou um sistema integral que está pronto para ser exportado para outros países. Estamos começando a ver a China negociar com países africanos a tecnologia de vigilância. Isso está sendo compartilhado com outros países que queiram essa vigilância abrangente e autoritária sobre os cidadãos. Então, creio que seja algo a que devemos ficar atentos. Devemos empoderar os delatores chineses que sabem como a tecnologia está sendo usada, porque o uso dela é muito opaco daqui de fora – e até mesmo da perspectiva dos cidadãos da China.
Houve um estudo recente norte-americano sobre fake news acerca do coronavírus que determinou que a principal figura a espalhar inverdades sobre o vírus não foram grupos de atores “alienígenas”, mas o presidente. Então, as redes sociais permitem acelerar a proliferação de notícias falsas e exacerbar a tendência, mas devemos focar no fato de que são as pessoas que as criam. Acho que vemos, agora, todos ficando mais atentos ao que é (e o que não é) fake news. Acabamos de viver uma situação nos Estados Unidos em que o presidente incentivou os seguidores a “liberar Michigan” [Estado do centro-oeste do país], e o FBI deteve um plano de sequestrar a governadora. Houve uma forte correlação entre esse encorajamento para “salvar” Michigan e o plano de sequestrar a governadora de lá.
A questão é: esta informação só pôde se espalhar graças às redes sociais, mas foram pessoas quem a espalharam, então, temos de abordar essas pessoas. Essa é uma das coisas que veio à tona ao observarmos o ciclo e percebermos de onde a mentira vem. Sim, ainda temos problemas com atores estrangeiros injetando fake news nas redes sociais, mas também temos uma quebra do discurso democrático em nossos próprios países, e acho que precisamos empoderar jornalistas, organizações sem fins lucrativos e entidades terceiras que possam validar e confirmar fatos. Por exemplo, quando descobrimos que o presidente [Donald] Trump estava infectado com covid-19, isso não foi publicamente anunciado pela Casa Branca.
Foi descoberto por jornalistas, e se não fossem por eles – que fizeram uma investigação constante, trabalhando dia e noite para descobrir a verdade –, jamais saberíamos. Não tenho confiança de que a Casa Branca teria liberado a informação de forma espontânea. Acredito que o antídoto para fake news seja notícias reais dadas por fontes confiáveis, e elas vêm de pessoas que são treinadas para este trabalho. A falta de investimentos no jornalismo é preocupante em uma democracia, especialmente em relação às notícias locais. Temos Estados norte-americanos inteiros que não têm jornais locais, porque foram desfeitos, e é muito difícil viver como jornalista. Então, acho que esta seja a cura para o fenômeno das notícias falsas: mais notícias verdadeiras – e confirmadas.