Ao refletir sobre desigualdade, lembra que o Brasil foi criado sob os signos “em que poucos mandam e muitos obedecem”. Ela analisa ainda a crise democrática que vivemos. O País precisa olhar e refletir sobre o seu passado e as injustiças cometidas por fatos como a escravidão, cujas consequências são sentidas até hoje na sociedade. Essa reflexão pode se dar pela História documental ou por meio da arte. “Nenhuma arte é desprovida de política. É inevitável, pois todos somos seres políticos. Até a neutralidade é uma posição política”, afirma o vencedor do Prêmio Jabuti 2020, por Torto Arado, Itamar Vieira Junior. O autor baiano foi abraçado pelo público ao abordar o racismo estrutural que persiste no Brasil e o papel da cultura na conscientização das pessoas.
Eu tive uma formação que transita entre a Geografia e a Antropologia. Passei quase 17 anos na universidade e a proximidade com a Antropologia me ensinou a contar História a partir de uma perspectiva que não era a minha. Quando pegamos um livro para ler, somos as personagens durante o tempo da leitura. Conseguimos adentrar até a mente da personagem, entender suas sensações e os seus sentimentos. Eu acho que não há maneira melhor para exercermos essa alteridade. E a literatura é esse terreno da liberdade, fértil, onde podemos ser qualquer coisa. Podemos nos reinventar, podemos ser uma árvore ou um cachorro. A literatura já nos deu muitas provas disso. Podemos ser homens, mulheres, almas, espíritos, qualquer coisa. Daí esse meu deslocamento sempre para o lugar do outro, quando estou nessas narrativas. Talvez seja a minha curiosidade de relatar e conhecer o mundo, a partir de outros olhares e outras perspectivas. E contar essa história de Torto Arado só seria para mim uma história muito honesta se ela fosse contada a partir da perspectiva das mulheres. A sociedade convencionou tratar os pais como heróis, mas no meu contexto familiar, por exemplo, foi diferente: as mulheres eram as heroínas da história. Talvez isso tenha adoçado a minha sensibilidade para contar histórias a partir dessa perspectiva.
Essa é uma questão que se impõe, não só para mim, mas para todos que escrevem. Eu imagino que a literatura nos oferece um ângulo muito diferente da História factual. A História tem acesso a documentos, relatos e cartas. É ancorada em muitos documentos e revisões bibliográficas sobre o tema. A literatura é mais livre, embora seja baseada, muitas vezes, em documentos históricos. A História nos dá os fatos, os relatos daquilo que a gente não viveu. Mas a literatura permite que a gente tangencie ou mergulhe nos sentimentos daquelas personagens. É o foco na experiência humana que faz da literatura essa arte diferenciada e que a diferencia, por exemplo, da História.
Nenhuma arte é desprovida de política. Apesar de tentarmos manter essa distância, o rigor crítico exige isso de nós. É inevitável, pois todos somos seres políticos. Até a neutralidade é uma posição política. Tenho uma relação muito bem resolvida com essas questões. Eu preciso escrever e preciso falar sobre o que é relevante acima de tudo. Se não fosse relevante para mim eu escolheria outro tema para falar. E é inevitável não apresentar a nossa visão de mundo, o que nos move como artista e cidadão. Eu poderia contar a história de Torto Arado pela perspectiva do fazendeiro. Talvez ele se sentisse ferido, traído pelo seu direito de propriedade. Que o que vale é o direito de propriedade daquele senhor, o documento que ele tinha e não a história de todos que estavam ali. Tem gente que acredita nisso. Mas, para mim, era relevante mergulhar naquilo que fazia sentido para a minha história. Afinal de contas, era a história dos meus ancestrais que estava em jogo e eu precisava falar sobre ela.
Esse caminho foi aberto com muita foice, machado, muita pena e tinta de caneta. Todos nós temos que agradecer autores do passado que abriram caminho, como Maria Firmina dos Reis, Lima Barreto, Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus que, passados 60 anos da publicação de seu Quarto de Despejo, ainda é muito lida e discutida no Brasil e no exterior. Eles têm o mérito de terem aberto todos esses caminhos para nós. Mas vivemos, sim, um momento diferente da história. Cada vez mais pessoas negras e indígenas têm publicado em nosso país. Acho que isso é consequência, também, de lutas e conquistas da sociedade civil organizada, a partir do Movimento Negro, da Constituição de 1988 e todas as políticas públicas que vieram para tentar mitigar, minimamente, a desigualdade, o abismo social e o racismo estrutural, que ainda é muito marcante em nosso país. Espero que seja apenas o começo, pois esse mercado ainda é muito desigual. Estamos falando de um país em que 50% da população se declara negra ou parda.