entrevista

Cultura de resistência

25 de março de 2022
A

Ao refletir sobre desigualdade, lembra que o Brasil foi criado sob os signos “em que poucos mandam e muitos obedecem”. Ela analisa ainda a crise democrática que vivemos. O País precisa olhar e refletir sobre o seu passado e as injustiças cometidas por fatos como a escravidão, cujas consequências são sentidas até hoje na sociedade. Essa reflexão pode se dar pela História documental ou por meio da arte. “Nenhuma arte é desprovida de política. É inevitável, pois todos somos seres políticos. Até a neutralidade é uma posição política”, afirma o vencedor do Prêmio Jabuti 2020, por Torto Arado, Itamar Vieira Junior. O autor baiano foi abraçado pelo público ao abordar o racismo estrutural que persiste no Brasil e o papel da cultura na conscientização das pessoas.

ESTE CONTEÚDO ESTÁ PUBLICADO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO #468 IMPRESSA DA REVISTA PB. A VERSÃO DIGITAL ENCONTRA-SE DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH e REVISTARIAS.

Em seu livro Torto Arado, você escreve sobre uma comunidade quilombola a partir da perspectiva de duas irmãs. De onde vem essa segurança para narrar uma história incorporando a sensibilidade feminina?

Eu tive uma formação que transita entre a Geografia e a Antropologia. Passei quase 17 anos na universidade e a proximidade com a Antropologia me ensinou a contar História a partir de uma perspectiva que não era a minha. Quando pegamos um livro para ler, somos as personagens durante o tempo da leitura. Conseguimos adentrar até a mente da personagem, entender suas sensações e os seus sentimentos. Eu acho que não há maneira melhor para exercermos essa alteridade. E a literatura é esse terreno da liberdade, fértil, onde podemos ser qualquer coisa. Podemos nos reinventar, podemos ser uma árvore ou um cachorro. A literatura já nos deu muitas provas disso. Podemos ser homens, mulheres, almas, espíritos, qualquer coisa. Daí esse meu deslocamento sempre para o lugar do outro, quando estou nessas narrativas. Talvez seja a minha curiosidade de relatar e conhecer o mundo, a partir de outros olhares e outras perspectivas. E contar essa história de Torto Arado só seria para mim uma história muito honesta se ela fosse contada a partir da perspectiva das mulheres. A sociedade convencionou tratar os pais como heróis, mas no meu contexto familiar, por exemplo, foi diferente: as mulheres eram as heroínas da história. Talvez isso tenha adoçado a minha sensibilidade para contar histórias a partir dessa perspectiva.

Você fala de questões difíceis, como violência, busca de justiça social e marcas da escravidão. Como não romantizar esses temas?

Essa é uma questão que se impõe, não só para mim, mas para todos que escrevem. Eu imagino que a literatura nos oferece um ângulo muito diferente da História factual. A História tem acesso a documentos, relatos e cartas. É ancorada em muitos documentos e revisões bibliográficas sobre o tema. A literatura é mais livre, embora seja baseada, muitas vezes, em documentos históricos. A História nos dá os fatos, os relatos daquilo que a gente não viveu. Mas a literatura permite que a gente tangencie ou mergulhe nos sentimentos daquelas personagens. É o foco na experiência humana que faz da literatura essa arte diferenciada e que a diferencia, por exemplo, da História.

“Eu poderia contar Torto Arado pela perspectiva do fazendeiro. Talvez ele se sentisse traído pelo seu direito de propriedade. Mas era relevante mergulhar naquilo que fazia sentido para a minha história.”

A sua escrita é de alguma forma uma militância?

Nenhuma arte é desprovida de política. Apesar de tentarmos manter essa distância, o rigor crítico exige isso de nós. É inevitável, pois todos somos seres políticos. Até a neutralidade é uma posição política. Tenho uma relação muito bem resolvida com essas questões. Eu preciso escrever e preciso falar sobre o que é relevante acima de tudo. Se não fosse relevante para mim eu escolheria outro tema para falar. E é inevitável não apresentar a nossa visão de mundo, o que nos move como artista e cidadão. Eu poderia contar a história de Torto Arado pela perspectiva do fazendeiro. Talvez ele se sentisse ferido, traído pelo seu direito de propriedade. Que o que vale é o direito de propriedade daquele senhor, o documento que ele tinha e não a história de todos que estavam ali. Tem gente que acredita nisso. Mas, para mim, era relevante mergulhar naquilo que fazia sentido para a minha história. Afinal de contas, era a história dos meus ancestrais que estava em jogo e eu precisava falar sobre ela.

As histórias contadas por autores negros têm sido crescentes no país. Como vê esse momento?

Esse caminho foi aberto com muita foice, machado, muita pena e tinta de caneta. Todos nós temos que agradecer autores do passado que abriram caminho, como Maria Firmina dos Reis, Lima Barreto, Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus que, passados 60 anos da publicação de seu Quarto de Despejo, ainda é muito lida e discutida no Brasil e no exterior. Eles têm o mérito de terem aberto todos esses caminhos para nós. Mas vivemos, sim, um momento diferente da história. Cada vez mais pessoas negras e indígenas têm publicado em nosso país. Acho que isso é consequência, também, de lutas e conquistas da sociedade civil organizada, a partir do Movimento Negro, da Constituição de 1988 e todas as políticas públicas que vieram para tentar mitigar, minimamente, a desigualdade, o abismo social e o racismo estrutural, que ainda é muito marcante em nosso país. Espero que seja apenas o começo, pois esse mercado ainda é muito desigual. Estamos falando de um país em que 50% da população se declara negra ou parda.

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Edição: Redação PB I Entrevista: Joyce Ribeiro Adenor Gondim
Edição: Redação PB I Entrevista: Joyce Ribeiro Adenor Gondim
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