entrevista

“Depois de Bolsonaro, o bolsonarismo permanecerá”

23 de fevereiro de 2022
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Há quatro anos, quando Jair Bolsonaro ainda era mais uma piada do que um possível presidente do Brasil, pouquíssimas vozes dissonantes se opunham ao consenso de que ele não teria nenhuma chance de se sentar na cadeira mais importante da República. Uma dessas vozes era a da antropóloga Rosana Pinheiro Machado.

À época, enquanto os analistas políticos se valiam de elementos próprios das campanhas eleitorais – como o tempo de televisão dos candidatos, por exemplo – para rechaçar as possibilidades de Bolsonaro, ela usava outro material para analisar o contexto: as diversas perspectivas de mundo que tinha ouvido, ao lado da também antropóloga Lucia Scalco, dos moradores das periferias de Porto Alegre (RS) em seus estudos nos anos anteriores. Eram elas que a faziam perceber como o “fenômeno” do bolsonarismo era anterior e maior do que o próprio Bolsonaro.

Hoje, com a confirmação factual daquela hipótese, Rosana se debruça sobre a continuidade. A professora da Universidade de Bath (Inglaterra) e autora de Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual (Ed. Planeta, 2019) quer saber como esse bolsonarismo permanecerá depois que o atual presidente deixar o cargo. Para ela, a resposta é óbvia.

“Ele vai continuar por décadas, porque o bolsonarismo é a conjunção de muitas forças reacionárias”, explica ela, para então se referir não apenas ao modo bolsonarista de fazer política – que envolve desde escrachos nas redes sociais até mobilizações de setores-chave, como as Polícias –, como também ao pensamento encrustado em parte das elites e no “Brasil popular”.

Este “novo” bolsonarismo, porém, tem uma cara muito diferente da que já é conhecida. É sobre isso que Rosana tem se interessado nos últimos tempos – e é sobre isso que ela conversou com a Problemas Brasileiros.

“Ele vai continuar por décadas, porque o bolsonarismo é a conjunção de muitas forças reacionárias”

Depois de quatro anos de governo Bolsonaro, o que sobrou do bolsonarismo?

Sobrou o chamado núcleo duro — que permanece muito forte, pensando nesse contingente de 30% de eleitores mesmo depois de um dos governos mais desastrosos da história. Essa base é diversa: inclui desde parte das elites que ainda apoiam o Paulo Guedes — e, para elas, Bolsonaro pode até ser esquecido desde que a agenda do ministro se mantenha — até, no âmbito popular, o trabalhador precarizado, homem, de 30 a 40 anos, que, na eleição de 2018, passava horas lendo e reproduzindo notícias bolsonaristas e votou no Bolsonaro por paixão. Esse sujeito não é sequer o mais pobre dentro do contexto social brasileiro. Na verdade, ele odeia a pobreza justamente porque quer sair do que experimenta dela. Esse homem continuará votando no Bolsonaro e é, aliás, um perfil comum entre os apoiadores de governos autoritários no mundo inteiro.

É um perfil político, portanto?

Sim. A linha política do Brasil popular é esse setor precarizado e masculino, sobretudo, que encontra no Bolsonaro a conjunção de muitas de suas perspectivas: um discurso hiperindividualista — em que o Estado não deve interferir em nada, porque é ele que se faz como trabalhador, que é a fronteira da lei, que defende sua propriedade privada — e uma postura conservadora — da autoridade que protege a moral da família e não quer perder esse lugar.

O bolsonarismo como fenômeno social permanecerá por muito tempo no horizonte brasileiro?

Vai continuar por décadas, porque o bolsonarismo é a conjunção de muitas forças reacionárias. Além disso, vai permanecer o modo de fazer política e, com isso, muitos políticos serão eleitos debaixo do guarda-chuva bolsonarista. Isso, porque ele se vale, muitas vezes, de métodos democráticos para atuar por meios muito específicos, como as denúncias ao Ministério Público, por exemplo, mas também de perseguições, que são muito fortes nas redes e suficientes para manter este ambiente de escrachos e de violência. Mas o bolsonarismo continuará, principalmente, porque ele é muito maior do que o Bolsonaro: é um movimento molecular, pulverizado, que age como milícias do presidente e tem capacidade de chegar a boa parte dos corações e das mentes da população, transformando muita gente em soldado.

As redes sociais ajudam nesta continuidade?

Com certeza. A extrema direita tem a hegemonia das redes sociais, mas também consegue passar sua mensagem via gamers, influencers e religiosos, por exemplo. É por isso que, enquanto movimento que aglutina hiperindividualismo com hiperconservadorismo, o bolsonarismo vai continuar formando milhões de jovens nesses ambientes digitais. Não há nada na esquerda que seja comparável.

Nestes anos de governo, um debate que permaneceu aberto é se o bolsonarismo refletiria, de certa forma, o que é o “brasileiro médio” ou se esta é uma metáfora muito pobre e superficial do País. Qual é a sua posição nesta discussão?

Concordo e não concordo. De um lado, eu entendo o que se quer dizer com o perfil sociológico de um cidadão médio, que vai à igreja, é um bom vizinho, trabalhador, mas, ao mesmo tempo, é preconceituoso, machista, homofóbico, muitas vezes, fundamentalista e, claro, autoritário. Além disso, como não conhece a história do Brasil, acredita que a solução é votar em um homem que apareça como a solução para todos os problemas. É um sujeito que incorpora o neoliberalismo nas vísceras, sobretudo. Por outro lado, também acho que esse perfil é muito contraditório, porque é o mesmo sujeito que votou muitas vezes no Lula no passado e, neste ano, até pode retornar ao lulismo. Ele se revolta,  mas também é generoso. A contradição da questão do cidadão médio é que ele pode ser muitas coisas. Sociologicamente falando, este dilema se resolve não nesse perfil, mas na própria história do Brasil. É um país que dizimou suas populações indígenas, campeão de mortes de jovens negros no mundo, o quarto com mais registros de feminicídio e o lugar onde mais morrem pessoas trans. É um país intrinsicamente e extremamente violento. Neste sentido, o bolsonarismo representa mais o Brasil colonial do que o “brasileiro médio”, já que sua ambição é dizimar tudo o que não é a família branca, ocidental e cristã. 

Há espaço para um novo bolsonarismo — isto é, que o fenômeno se atualize de alguma forma?

Não apenas há como é possível dizer que ele já está se renovando. O primeiro bolsonarismo era mais tosco, digamos assim: produzia fake news óbvias, usava muito WhatsApp, ia ao programa da Luciana Gimenez vestido de verde e amarelo etc. Isso tinha muito a ver com a liderança daquele momento, que era o próprio Bolsonaro — um homem mais velho e capitão do Exército. Mas com a saída dele, não apenas as novas lideranças conservadoras, mas, principalmente, os filhos dele adquirem um grande poder. O Eduardo Bolsonaro, por exemplo, circula por ambientes muito mais descolados, tem uma vida burguesa e viaja aos Estados Unidos. Já o Renan tem muita influência no mundo gamer e no marketing digital. Então, se Bolsonaro representa a extrema direita saudosista, que mostrou a cara, os novos movimentos estão presentes em coisas descoladíssimas. É aí que nós estamos “ferrados”.

Por quê?

Porque esses novos influencers têm muito alcance. Cada conta no Instagram tem cinco, seis milhões de seguidores. São gamers, investidores que querem ensinar como fazer o “primeiro milhão”, o cara do marketing digital, o do bitcoin ou os novos pastores, por exemplo. Todos eles aparecem ali, de repente, lendo e indicando um livro da extrema direita. O fenômeno dos novos pastores é especialmente marcante: não é mais o Marco Feliciano, o Magno Malta, mas são homens jovens, dentro do padrão estético masculino, assim como as mulheres. Ou seja, são fenômenos midiáticos, dão um banho no Instagram — e muitos deles são declaradamente bolsonaristas. A existência deles reforça o que compõe a base do bolsonarismo, porque eles difundem as mensagens do hiperindividualismo e do hiperconservadorismo. Esta é uma face da extrema direita que nem precisa ser tosca como era antes, porque virou a norma.

“A crise econômica de agora é também a crise de pessoas que tinham recém-saído da linha da pobreza. Foi ela que fez o nível de frustração ser tão grande em paralelo ao aumento do desemprego.”

Por que esse hiper individualismo ganhou tanta força agora?

O Brasil sempre foi isso. Nas últimas décadas, por exemplo, tem sido um país onde mais da metade da população está na informalidade. O próprio pacto democrático é uma exceção histórica: tivemos duas décadas de governos que, embora seguissem a cartilha neoliberal, também fortaleceram a sociedade civil de forma incontestável. Não é suficiente para mudar a história de um país, muito menos para transformar a vida de uma parte grande da população, que sempre esteve à deriva. Não à toa, a crise econômica de agora é também a crise de pessoas que tinham recém-saído da linha da pobreza. Foi ela que fez o nível de frustração ser tão grande em paralelo ao aumento do desemprego. Em um cenário assim, discursos de que é melhor você empreender, tomar seu caminho, soam muito positivos: eles dão a possibilidade de ganhar dinheiro e, melhor do que isso, prometem a autonomia de não ter patrão. Como tudo isso depende só de você, tudo o que vem de fora quer apenas atrapalhar. Isso é muito empoderador, do ponto de vista individual, em um contexto de crise, porque a culpa passa a ser de todo o resto, não sua. 

As redes sociais ainda são mais bem usadas pelos movimentos de direita e pelos bolsonaristas — como aconteceu em 2018?

Acredito que sim, principalmente para o perfil de homens que ganham entre R$ 2 mil e R$ 4 mil, ou seja, não estão na miséria, mas são precarizados. Para eles, Bolsonaro é cada vez mais a imagem ideal, porque, ao contrário da interpretação crítica comum de que o presidente não governa, o que eles querem é justamente que ele não faça nada – que os deixe trabalhar. Como acreditam piamente no mérito individual, Bolsonaro é a representação cabal. Por outro lado, há os mais jovens e as mulheres – que, mesmo precarizadas, não compraram o discurso bolsonarista da mesma forma. Esse perfil de homem precarizado, como eu já disse, é presente no mundo todo. É um fenômeno de pessoas que saem da miséria ou, pior, estão flertando com a miséria, e têm horror a ela e, consequentemente, aos pobres. 

Como o lulismo aparece nestas disputas narrativas?

Duas coisas estão se delineando: uma é a aposta no lulismo e em um tipo de desenvolvimento industrial menos ligado às questões do meio ambiente, que é o lulismo clássico. Ele se vê também na conciliação das alianças que estão sendo feitas. Outra, porém, é a abertura e a aglutinação de novos movimentos sociais no lulismo. Eles nunca foram lulistas ou estavam em oposição naquele período final, marcado por junho de 2013. Isso é fundamental para uma possível renovação do lulismo, porque, do contrário, ele não se sustentaria. Em outras palavras, ele só pode permanecer em um contexto das lutas das novas esquerdas.

Há novas esquerdas e novos centros para polarizar o cenário com esta nova direita?

Sim. É o modelo do Chile. A Argentina tem um meio termo, com um presidente de uma geração, mas o movimento feminista mais pujante do mundo, com um papel absurdo na sociedade. No Chile, o próprio líder estudantil, que era contra um tipo de modelo econômico, virou presidente. Poderiam ser os secundaristas brasileiros, do início de julho de 2013 ou dos movimentos de ocupação, por exemplo. Em ambos os casos, as novas lutas das mulheres e dos indígenas são transversais. No Brasil, ainda é preciso ver como isso vai se desenvolver. Hoje, diversos movimentos estão querendo eleger o Lula porque querem tirar o Bolsonaro do poder de qualquer jeito.

Esses novos movimentos cabem dentro do lulismo?

A grande questão é como o PT vai deixar as novas gerações crescerem dentro do partido, caso volte ao poder. Trata-se da formação de novas lideranças que, até então, estavam se vinculando ao PSOL. Vai chegar um ponto, porém, que as oposições vão voltar, mesmo ao lulismo – e é então que veremos se ele vai se comportar como uma patrulha desses novos movimentos, que não estão sob suas asas, ou se vai saber incorporá-los. Mas há muito pouco espaço para o centro. Nós vamos viver as próximas décadas entre as lutas – de mulheres, de indígenas, por modos de vida – e a extrema direita. Elas vão permanecer em ascensão juntas.

Fake news ainda darão a tônica das eleições deste ano ou elas perderam força de lá para cá?

A desinformação certamente não vai diminuir. Todos os softwares que monitoram redes bolsonaristas nas mídias sociais demonstram que esse ecossistema ainda é muito forte, principalmente entre grupos de mobilização, por exemplo. Por outro lado, as pessoas estão mais conscientes sobre fake news. Estão mais céticas. Antes, elas ficavam muito intrigadas com essas informações. Mas a questão das fake news está muito no fato de as pessoas lerem o que querem. É um meio de reafirmar seus valores e, principalmente, a comunidade. Por essa ótica, não vai diminuir.

Então, o perigo não está apenas nas fake news?

O ecossistema por onde o bolsonarismo e a extrema direita se espalham é muito maior. As redes de desinformação que existiam antes, como o chamado “gabinete do ódio”, por exemplo, não dão mais conta hoje de explicar essas redes mais pulverizadas e descentralizadas. É o caso, novamente, dos influencers. Eles falam muito com a juventude e estão em diálogo com ela,  no TikTok, no Instagram ou no mundo gamer. Assim como os personagens que eu chamo de pastores pop, que vêm de igrejas tradicionais, mas com uma nova roupagem. Tem muita gente que não chega a ser bolsonarista, mas reafirma diariamente valores próprios do bolsonarismo, tem uma mensagem alinhada ao discurso da extrema direita e, portanto, representa uma faceta muito perversa do Brasil. O buraco da disputa digital é complexo, porque uma parte da população vive do encantamento por essas figuras.

Ano que vem, o “junho de 2013” fará 10 anos. A situação social, econômica e política ali era melhor do que hoje. Você vislumbra uma repetição daquele acontecimento?

Não vai se repetir tão cedo. Aquele momento foi excepcional – e de várias formas. Globalmente, havia uma crise econômica que transformou o mundo em uma onda de ocupações que contagiou vários países. No Brasil, houve o reajuste da tarifa do transporte público, mas fazia dois anos que havia uma fervura do período pré-Copa do Mundo, também em sintonia com movimentos globais. É curioso que, no contexto brasileiro, ainda não havia crise econômica. Ao contrário, era o auge da redemocratização, em que as coisas estavam caminhando e, justamente por isso, gerou uma demanda por mais. Isso é muito comum em processos democráticos: sociedades com mobilizações crescentes também são aquelas em que sujeitos críticos irrompem querendo mais. Acredito ainda que 2013 não vai acontecer nas próximas décadas porque é impossível que esquerdas e direitas voltem a marchar juntas, como foi, pelo menos, até o dia 20 daquele mês de junho. Dali em diante, houve um claro processo de polarização de ideias que não permite mais que tudo seja feito sem esses dois polos diferentes.

E o que pode soar parecido ao que houve naquele ano?

Dentro desses polos, há as feministas. Eu vislumbro novos protestos como o #EleNão, por exemplo. Vão acontecer grandes marchas indígenas, assim como manifestações de insatisfação, nos próximos meses e anos. Toda a onda latino-americana certamente vai influenciar o Brasil, principalmente depois da pandemia. As pessoas voltarão às ruas, mas, ainda assim, muito longe de repetirem aquele junho de 2013, porque aquele Brasil acabou.

Vinicius Mendes Divulgação
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