A decadência econômica da Argentina mostra que boas leis, por si só, não impedem governos de adotar políticas ruins. Sendo assim, banco central independente e metas de inflação não bastam. O poder político precisa estar majoritariamente de acordo com as regras fiscais e monetárias. Ao analisar o país vizinho e o Brasil, o economista Fabio Giambiagi, filho de argentinos e criado no país portenho, constata que ambos têm lideranças presas no passado.
“Uma boa lei não impedirá políticas econômicas ruins se o poder político em peso não estiver de acordo com ela”, ressalta o pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e funcionário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Se vale a velha frase de que ‘o político pensa no presente, e o estadista, no futuro’, nos últimos tempos estamos até regredindo: só pensamos no passado”, acrescenta.
Lei a seguir a entrevista que ele deu à PB por escrito.
A resposta é mais complexa. Creio que seja um reducionismo simplista considerar que a decadência argentina é fruto da falta de leis. Na época da conversibilidade (paridade dólar/peso que vigorou de 1991a 2002 na Argentina), o país tinha uma lei de independência do banco central muito moderna, o que não impediu vários governos de se desfazerem do presidente da autoridade monetária quando o poder político assim quis.
Metas de inflação houve no governo [do ex-presidente Mauricio] Macri (2015-2019) e, na prática, foram inicialmente mudadas e, depois, abandonadas. A instituição do banco central autônomo foi desmoralizada quando [a ex-presidente e atual vice] Cristina Kirchner (2007-2015) exonerou [em 2010] Martín Redrado da presidência do banco central no governo dela. Reforma da Previdência e arcabouço fiscal talvez façam parte do cardápio de um eventual novo governo de quem hoje está na oposição, mas não são temas previamente instalados no debate público argentino atualmente.
Essa discussão lembra a frase do [economista e ex-ministro] Roberto Campos, que dizia que “o importante não é que a lei seja forte, mas que a carne não seja fraca”. Um país precisa de uma combinação de boas leis e boas práticas. Uma boa lei não impedirá políticas econômicas ruins se o poder político em peso não estiver de acordo com a lei. E uma lei, por si só, pouco vale quando “uma andorinha só não faz verão”. Precisamos ter legislação adequada e governo comprometido com as boas práticas.
Não é algo que possa ser resumido numa simples resposta. A decadência argentina tem mais de 70 anos e se origina nas políticas adotadas no pós-guerra. No caso da crise atual, há que se remontar à situação deixada como herança por Cristina Kirchner quando saiu do governo em 2015, problemas esses que Macri não conseguiu enfrentar a contento e que acabaram se agravando no governo atual. Há uma combinação de desequilíbrio completo de preços relativos, déficit público alto e ausência total e absoluta de crédito pela desconfiança associada às ações do governo argentino. Resolver a crise exige, em primeiro lugar, confiança na solidez e na manutenção das políticas, coisa impossível atualmente.
A Argentina tem um esquema protecionista que vigora há décadas, com escassa inovação da indústria. Resolver isso implica um movimento combinado de incentivos à inovação e redução gradual da proteção, visando a uma modernização do seu parque produtivo.
Em câmara lenta, sim. Claro que, na Argentina, a decadência se deu com mais intensidade, até pela dimensão maior das crises.
Pouco, porque os laços entre as duas economias são muito mais tênues hoje que 20 anos atrás.
Se a gente quer pensar nos obstáculos para as reformas, não precisamos olhar para os “hermanos” como espantalhos. Basta pensar em quanto tempo faz que o Brasil discute a Reforma Tributária sem que tenhamos conseguido nos colocar de acordo acerca do que aprovar.
Certamente. Se vale a velha frase de que “o político pensa no presente, e o estadista, no futuro”, nos últimos tempos estamos até regredindo: só pensamos no passado. [O ex-presidente Jair] Bolsonaro estava com a cabeça em 1964, ano do golpe militar, e o presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva], em 2003, início do seu primeiro mandato.
Precisamos entender que, sem competição, é muito difícil sobreviver adequadamente no mundo de hoje. E o que vemos é autoridades muito presas a um modelo mental ultrapassado, em que é o Estado que resolve todos os problemas, seja dos indivíduos, seja das empresas, seja do país. Não há muita discussão acerca de uma integração maior com o mundo e uma preparação melhor da nossa mão de obra para os desafios do mundo moderno. O mundo está discutindo a inteligência artificial e nós estamos tratando de isenção de Imposto de Renda e aumento do salário mínimo.
A ausência de percepção, por parte da liderança política de ambos os países, durante muito tempo, de que o caminho da prosperidade implica fazer reformas que não tendem a gerar resultados expressivos no curto prazo. Esse equilíbrio entre a moderação dos resultados no curto prazo e as melhoras no longo exige uma rara habilidade política para superar eventuais problemas de impopularidade temporária, fenômenos certamente agravados por todo o fenômeno das mídias sociais, que torna os governantes prisioneiros do número de curtidas, por assim dizer.
Vejo como interessante o fato de o crescimento do gasto ser uma proporção do crescimento da receita e de ter um teto de 2,5 % para o crescimento do gasto, mas tenho fortes críticas a três elementos: 1) o ponto de partida, ou seja, contas com resultados muito ruins em 2023, em parte pela gastança propiciada pelo próprio governo, com a chamada PEC da Transição; 2) a incompatibilidade entre a regra e outras medidas de política econômica, notadamente o aumento do salário mínimo, que contribuirá para novo achatamento das despesas discricionárias; e 3) o fato de que é possível termos o arcabouço aprovado e respeitado e, mesmo assim, ficarmos muito longe das metas de superávit primário, que requerem um aumento da receita que não é possível vislumbrar hoje.