entrevista

Derrocada argentina

05 de maio de 2023
A

A decadência econômica da Argentina mostra que boas leis, por si só, não impedem governos de adotar políticas ruins. Sendo assim, banco central independente e metas de inflação não bastam. O poder político precisa estar majoritariamente de acordo com as regras fiscais e monetárias. Ao analisar o país vizinho e o Brasil, o economista Fabio Giambiagi, filho de argentinos e criado no país portenho, constata que ambos têm lideranças presas no passado. 

“Uma boa lei não impedirá políticas econômicas ruins se o poder político em peso não estiver de acordo com ela”, ressalta o pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e funcionário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Se vale a velha frase de que ‘o político pensa no presente, e o estadista, no futuro’, nos últimos tempos estamos até regredindo: só pensamos no passado”, acrescenta.

Lei a seguir a entrevista que ele deu à PB por escrito.

É POSSÍVEL DIZER QUE A ARGENTINA SERVE DE EXEMPLO PRÁTICO SOBRE COMO METAS PARA A INFLAÇÃO, BANCO CENTRAL AUTÔNOMO, LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL, REFORMAS (COMO A DA PREVIDÊNCIA) E, AGORA, UM NOVO ARCABOUÇO FISCAL FORAM (E SÃO) FUNDAMENTAIS PARA EVITAR QUE GOVERNOS AFETEM PROGRESSIVAMENTE AS CONDIÇÕES DE VIDA DE UMA SOCIEDADE?

A resposta é mais complexa. Creio que seja um reducionismo simplista considerar que a decadência argentina é fruto da falta de leis. Na época da conversibilidade (paridade dólar/peso que vigorou de 1991a 2002 na Argentina), o país tinha uma lei de independência do banco central muito moderna, o que não impediu vários governos de se desfazerem do presidente da autoridade monetária quando o poder político assim quis.

O SENHOR TEM NOTÍCIA DA EXISTÊNCIA DE INSTRUMENTOS ASSIM NA ARGENTINA?

Metas de inflação houve no governo [do ex-presidente Mauricio] Macri (2015-2019) e, na prática, foram inicialmente mudadas e, depois, abandonadas. A instituição do banco central autônomo foi desmoralizada quando [a ex-presidente e atual vice] Cristina Kirchner (2007-2015) exonerou [em 2010] Martín Redrado da presidência do banco central no governo dela. Reforma da Previdência e arcabouço fiscal talvez façam parte do cardápio de um eventual novo governo de quem hoje está na oposição, mas não são temas previamente instalados no debate público argentino atualmente.

E NO BRASIL, ESSE MODELO EVITA QUE GOVERNOS TOMEM DECISÕES DANOSAS ÀS CONDIÇÕES DE VIDA DA UMA SOCIEDADE? O PAÍS PRECISA DE OUTRAS SOLUÇÕES?

Essa discussão lembra a frase do [economista e ex-ministro] Roberto Campos, que dizia que “o importante não é que a lei seja forte, mas que a carne não seja fraca”. Um país precisa de uma combinação de boas leis e boas práticas. Uma boa lei não impedirá políticas econômicas ruins se o poder político em peso não estiver de acordo com a lei. E uma lei, por si só, pouco vale quando “uma andorinha só não faz verão”. Precisamos ter legislação adequada e governo comprometido com as boas práticas.

NA SUA AVALIAÇÃO, QUAIS SÃO AS CAUSAS DA DERROCADA ECONÔMICA DA ARGENTINA?

Não é algo que possa ser resumido numa simples resposta. A decadência argentina tem mais de 70 anos e se origina nas políticas adotadas no pós-guerra. No caso da crise atual, há que se remontar à situação deixada como herança por Cristina Kirchner quando saiu do governo em 2015, problemas esses que Macri não conseguiu enfrentar a contento e que acabaram se agravando no governo atual. Há uma combinação de desequilíbrio completo de preços relativos, déficit público alto e ausência total e absoluta de crédito pela desconfiança associada às ações do governo argentino. Resolver a crise exige, em primeiro lugar, confiança na solidez e na manutenção das políticas, coisa impossível atualmente.

O SUCATEAMENTO DA INDÚSTRIA ARGENTINA É UMA DAS CAUSAS DESSA DECADÊNCIA OU É UMA CONSEQUÊNCIA?

A Argentina tem um esquema protecionista que vigora há décadas, com escassa inovação da indústria. Resolver isso implica um movimento combinado de incentivos à inovação e redução gradual da proteção, visando a uma modernização do seu parque produtivo.

ALGO SEMELHANTE PODE ESTAR OCORRENDO NO BRASIL, COM A INDÚSTRIA?

Em câmara lenta, sim. Claro que, na Argentina, a decadência se deu com mais intensidade, até pela dimensão maior das crises.

ATÉ QUE PONTO A CRISE NA ARGENTINA PODE AFETAR O BRASIL ECONOMICA E POLITICAMENTE?

Pouco, porque os laços entre as duas economias são muito mais tênues hoje que 20 anos atrás.

A ARGENTINA ERA RICA E FICOU POBRE, E O BRASIL NÃO CONSEGUIU FICAR RICO. EM QUE MEDIDA O FRACASSO DO GOVERNO ARGENTINO EM IMPLEMENTAR REFORMAS ECONÔMICAS ESTRUTURANTES RONDA O BRASIL?

Se a gente quer pensar nos obstáculos para as reformas, não precisamos olhar para os “hermanos” como espantalhos. Basta pensar em quanto tempo faz que o Brasil discute a Reforma Tributária sem que tenhamos conseguido nos colocar de acordo acerca do que aprovar.

A AUSÊNCIA DE LÍDERES COMPROMETIDOS COM UM HORIZONTE DE LONGO PRAZO AJUDA A ENTENDER AS DIFICULDADES DE AMBOS OS PAÍSES PARA SAIR DA PRESENTE ESTAGNAÇÃO ECONÔMICA E RESOLVER PROBLEMAS COMO POBREZA E DESIGUALDADE?

Certamente. Se vale a velha frase de que “o político pensa no presente, e o estadista, no futuro”, nos últimos tempos estamos até regredindo: só pensamos no passado. [O ex-presidente Jair] Bolsonaro estava com a cabeça em 1964, ano do golpe militar, e o presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva], em 2003, início do seu primeiro mandato.

“Um país precisa de uma combinação de boas leis e boas práticas.”

DO PONTO DE VISTA DA CONDUÇÃO DA POLÍTICA ECONÔMICA, QUAL SERIA A ABORDAGEM MAIS CORRETA PARA O MUNDO ATUAL?

Precisamos entender que, sem competição, é muito difícil sobreviver adequadamente no mundo de hoje. E o que vemos é autoridades muito presas a um modelo mental ultrapassado, em que é o Estado que resolve todos os problemas, seja dos indivíduos, seja das empresas, seja do país. Não há muita discussão acerca de uma integração maior com o mundo e uma preparação melhor da nossa mão de obra para os desafios do mundo moderno. O mundo está discutindo a inteligência artificial e nós estamos tratando de isenção de Imposto de Renda e aumento do salário mínimo.

QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS DIFICULDADES DOS DOIS GIGANTES SUL-AMERICANOS —  AINDA QUE DOTADOS DE ABUNDÂNCIA DE RECURSOS NATURAIS E EM CONFORTÁVEL POSIÇÃO GEOGRÁFICA — EM DRIBLAR A CHAMADA FALTA DE CONVERGÊNCIA [INCAPACIDADE DE ECONOMIAS DE RENDA MÉDIA DE REDUZIR A DIFERENÇA QUE AS SEPARA DO RENDIMENTO PER CAPITA] EM RELAÇÃO AOS PAÍSES MAIS AVANÇADOS?

A ausência de percepção, por parte da liderança política de ambos os países, durante muito tempo, de que o caminho da prosperidade implica fazer reformas que não tendem a gerar resultados expressivos no curto prazo. Esse equilíbrio entre a moderação dos resultados no curto prazo e as melhoras no longo exige uma rara habilidade política para superar eventuais problemas de impopularidade temporária, fenômenos certamente agravados por todo o fenômeno das mídias sociais, que torna os governantes prisioneiros do número de curtidas, por assim dizer.

COMO O SENHOR AVALIA O PROJETO DE NOVO MARCO FISCAL ENVIADO PELO GOVERNO AO CONGRESSO?

Vejo como interessante o fato de o crescimento do gasto ser uma proporção do crescimento da receita e de ter um teto de 2,5 % para o crescimento do gasto, mas tenho fortes críticas a três elementos: 1) o ponto de partida, ou seja, contas com resultados muito ruins em 2023, em parte pela gastança propiciada pelo próprio governo, com a chamada PEC da Transição; 2) a incompatibilidade entre a regra e outras medidas de política econômica, notadamente o aumento do salário mínimo, que contribuirá para novo achatamento das despesas discricionárias; e 3) o fato de que é possível termos o arcabouço aprovado e respeitado e, mesmo assim, ficarmos muito longe das metas de superávit primário, que requerem um aumento da receita que não é possível vislumbrar hoje.

Alexandre Rocha Divulgação
Alexandre Rocha Divulgação
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