No movimento de retomada econômica, uma maior interação entre as escolas e o mundo do trabalho será essencial para o País. Não só a fim de suprir a demanda das empresas, mas também para trazer a chance de uma mudança benéfica principalmente a estudantes de baixa renda. As novas diretrizes do ensino médio, que passam a valorizar a educação profissionalizante ao incluí-la como uma das opções de itinerário, podem impulsionar essa mudança.
Em entrevista à PB, Daniel Barros, mestre em Administração Pública pela Universidade Columbia, Nova York, e subsecretário de ensino profissionalizante da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, fala, entre outros tópicos que circundam o tema, sobre como a garantia de acesso ao emprego permitirá aos alunos ter mobilidade social —um dos principais objetivos da busca pelo diploma. Acompanhe.
“Precisamos ter, do lado do setor produtivo, um conhecimento maior de pessoas formadas no ensino técnico como profissionais capazes de exercer funções que, hoje, muitas vezes, são direcionadas para profissionais de ensino superior sem necessidade. Estou falando de cargos de entrada. No setor de tecnologia da informação, isso é cada vez mais comum.”
São Paulo é o Estado que tem a instituição de ensino técnico e tecnológico mais reconhecida da América Latina, não só do Brasil, que é o Centro Paula Souza. É uma instituição de excelência, com310 mil matrículas e reconhecida pelos resultados no Enem dos alunos do ensino técnico integrado. Oferece mais de 120 mil vagas nos cursos técnicos subsequentes ou concomitantes, que geralmente acontecem à noite. Além disso, tem uma rede de 73 faculdades de tecnologia, algo incomum para os Estados. Nenhuma outra rede possui uma estrutura assim, cujo modelo é o mesmo das communitycolleges americanas. Então, acho que São Paulo é uma referência em qualidade, com um patamar, um padrão, estabelecido pelo Centro Paula Souza (CPS).
Agora, acho que não é uma referência, ainda, em penetração do ensino profissionalizante no percentual da rede de ensino médio. Quando assumimos o CPS, havia pouco mais de 60 mil matrículas do ensino técnico integrado ao médio. É um número, na minha visão, muito pequeno, pois estamos falando de uma rede de ensino médio público do Estado de São Paulo, que, naquela época, em 2018, estava com 1,3 milhão de alunos. É um percentual muito baixo, do total, e, portanto, entendo que tem muita margem para avançar. Quando olhamos para os Estados nordestinos, como Ceará e Pernambuco, o percentual de alunos do ensino médio matriculados na educação profissionalizante é muito maior. Mas trabalhamos duramente para ampliar essa penetração.
Neste ano, por exemplo, vamos chegar a cerca de 116 mil matriculados no técnico com o ensino médio, com uma boa parte desses alunos oriundos de escolas estaduais. Faz parte do programa Novotec, na modalidade integrada. Esse número, 116 mil, é quase o dobro das matrículas que a gente tinha de técnico integrado ao ensino médio em 2018, quando começou o mandato atual. É um avanço substancial. Acho que São Paulo é o Estado mais avançado na implementação do 5º itinerário do novo ensino médio, o profissionalizante, e acredito que isso vá causar um impacto muito grande nos números do Censo Escolar ao longo dos próximos anos. Especialmente, nos indicadores de aprendizagem, pois acredito fortemente que o curso técnico integrado ao ensino médio ajuda no aprendizado dos conteúdos propedêuticos, porque o aluno consegue vê-los no contexto prático. Por exemplo, enquanto faz o curso de administração, o aluno certamente vai aprender conceitos matemáticos mais facilmente, aqueles vistos de forma muito teórica e descolada da realidade, como juros simples, juros compostos, funções, probabilidade, porcentagem etc.
“Na Alemanha, o aluno decide muito cedo se vai para uma trilha técnica ou acadêmica, e depois tem dificuldade de mudar. Gosto muito mais do modelo britânico, em que o ensino técnico é visto como degraus: você faz qualificações profissionais, um curso técnico, um superior, uma pós-graduação, você vai construindo conhecimento em cima dessas etapas.”
Acho que há uma série de fatores aqui. Um dos principais, e acho que já estamos fazendo, é criar um marco legal para estimularas redes públicas a investir no ensino médio integrado ao técnico. A reforma do ensino médio, Lei 13.415, foi o primeiro passo para isso. Depois, tivemos a Base Nacional Comum do Ensino Médio, publicada em dezembro de 2018, que, de alguma maneira, preenche o espaço criado pela Lei 3.415, quase como uma regulamentação., E, agora, com o Fundeb, demos um passo importante também com as matrículas de ensino médio integrado ao técnico. Com isso, as redes estaduais podem receber dupla matrícula, ou seja, vão receber o dobro do recurso que receberiam, e isso vai estimulá-las muito a investir na construção de instituições de ensino técnico, como o Centro Paula Souza. Ademais, dentro da própria Secretaria de Educação, vai estimular a contratação de professores de ensino profissionalizante, o desenvolvimento de currículos e de cursos da área. Então, aqui há um incentivo muito grande para crescer o número de matrículas do ensino técnico integrado ao médio.
No entanto, há alguns desafios. Um deles é a necessidade de contratar profissionais para dar aulas nessas turmas com conexão clara com o mercado de trabalho, idealmente, que continuem ativos na sua área, por exemplo, administradores, para o curso de Administração; profissionais de RH, para o curso de Recursos Humanos; de logística, para o curso de logística, e assim por diante, como vemos em vários países. Outro desafio é envolver as empresas na formação, na construção dos currículos, na oferta de problemas para os alunos poderem tratar. Eventualmente, ainda, envolver as empresas nos estágios de nível médio, para os alunos aprenderem na prática. E, quem sabe, chegarmos a um modelo de ensino dual, em que uma parte do tempo é passada nas escolas. Embora isso me pareça relativamente utópico, pois requer uma maturidade muito maior do que temos aqui na relação do setor privado com os fornecedores do ensino profissionalizante. Acho que esse pode ser um caminho para o médio e o longo prazo aqui no Brasil.
E, finalmente, acho que precisamos ter, também do lado do setor produtivo, um conhecimento maior de pessoas formadas no ensino técnico como profissionais capazes de exercer funções que, hoje, muitas vezes, são direcionadas para profissionais de ensino superior sem necessidade. Estou falando de cargos de entrada. No setor de tecnologia da informação, isso é cada vez mais comum, porque avalia-se se o indivíduo consegue programar em uma determinada linguagem, se ele consegue dominar o uso de determinado software, em vez de saber se ele tem um diploma de ensino superior. Acho que esse é um salto que vai ser importante para o ensino técnico. Finalmente, tem um item muito relevante, que é acabar com essa ideia de ou o indivíduo faz o ensino técnico ou o superior. Não há nada mais comum do que o aluno fazer o técnico, começar a trabalhar e, depois, fazer o superior enquanto já está inserido no mercado. Oitenta por cento dos alunos que fazem o superior estão na iniciativa privada; e, a esmagadora maioria, trabalha ao mesmo tempo que estuda, por isso, é natural que o aluno possa migrar do técnico para o superior. Precisamos criar mecanismos para aproveitar parte do conteúdo dos cursos técnicos nos superiores da mesma área. Por exemplo, se o aluno faz o técnico em Desenvolvimento de Sistemas, no superior, em Engenharia da Computação, ele deveria ser capaz de eliminar uma parte das disciplinas, como forma de estimular a conexão entre os dois ensinos. Estamos fazendo isso, inclusive, com o curso de tecnologia aqui no CPS, estimulando essa transição das Etecs para as Fatecs.
A última edição do relatório Educationat a Glance, da OCDE, tinha como foco a educação vocacionada. Nele, há um gráfico que mostra a situação do Brasil: entre jovens no ensino médio e nos primeiros anos do pós-médio, logo depois de terminar o médio, após os 18 anos, 8% fazem ensino técnico/profissionalizante. Desse grupo, mais ou menos a metade faz o técnico integrado ao médio; a outra metade faz cursos subsequentes ou concomitantes, e não tão integrados com essa etapa da educação básica. Esses números são muito ruins. Estão muito abaixo, por exemplo, dos números do Chile e da Colômbia; além de substancialmente abaixo da média da OCDE, que beira os 30%, e muito abaixo de países como Portugal e Reino Unido. Isso sem mencionar os tradicionais, gigantes do ensino técnico, mundialmente famosos, como a Alemanha e a Suíça, com os quais nem gosto de comparar o Brasil, pois possuem realidades completamente diferentes. Acho até um pouco utópico pensar que, no curto prazo, vamos chegar ao nível desses países, à forma como lidam com o ensino técnico.
E tenho até alguma crítica, em alguns casos. Na Alemanha, por exemplo, o aluno decide muito cedo se vai para uma trilha técnica ou acadêmica. Depois, tem dificuldade de mudar de uma para a outra. Gosto muito mais do modelo britânico, em que o ensino técnico é visto como degraus de uma escada: você faz qualificações profissionais, um curso técnico, um superior, uma pós-graduação, você vai construindo conhecimento em cima dessas etapas da educação. Com base nesses números, a gente consegue dizer que o Brasil, embora tenha muitos alunos matriculados no ensino técnico/profissionalizante em números absolutos, em números relativos, está muito distante de outras referências mundo afora. Acho que este cenário vai mudar com o novo ensino médio, com a reforma. Temos uma janela de oportunidade muito grande. Isso pode mudar em três anos ou em 20, depende da disposição das redes públicas em trabalhar para ampliar as matrículas nessa área.
“Temos dois pilares de atuação: ampliar o acesso a cursos de qualificação profissional, tanto para alunos do ensino médio como para adultos desempregados em busca de requalificação; e facilitara conexão com os empregadores. Temos trabalhado duramente para construir parcerias com as empresas.”
Temos dois pilares de atuação: ampliar o acesso a cursos de qualificação profissional, tanto para alunos do ensino médio como para adultos desempregados em busca de requalificação; e facilitara conexão com os empregadores. Temos trabalhado duramente para construir parcerias com as empresas. Trabalhamos duramente para construir parcerias com as empresas. Temos um programa chamado Minha Chance, em que desenvolvemos cursos customizados com as empresas ou direcionamos cursos do nosso catálogo, de qualificação profissional, para atender à demanda de empregadores localmente, no Estado de São Paulo. Para o primeiro ponto, temos, por exemplo, a parceria com a SAP. Fizemos um curso de suporte a sistemas de gestão empresarial de pequenas e médias empresas, o Business 1.Fechamos também uma parceria semelhante com a Totvs, seu principal concorrente, e para o Protheus; além de uma parceria de segurança digital com a Sisco e um curso de Mecânico de Patinetes Elétricos para a antiga Yellow.
Produzimos, por exemplo, agora, um curso de Gasista para a Comgás, que é aquele profissional que vai até a casa dos clientes para identificar problemas no fornecimento de gás. Estamos desenvolvendo cursos de Instalador de Antenas de Telecomunicações; cursos na área de CRM, com a Salesforce; de Inteligência Artificial em Nuvem, com a Microsoft; de Computação na Nuvem, com a AWS; de Java e Banco de Dados, com a Oracle. Temos uma gama de parceiros, boa parte deles do setor de TI, com quem construímos cursos customizados, alinhados à demanda dos empregadores. Acho que esse é um pouco o caminho para o futuro. Além disso, precisamos engajar mais os empregadores na definição de onde cada curso vai ser oferecido pelo Brasil. Dessa forma, criar mecanismos para que as empresas possam solicitar cursos, como temos com o Minha Chance, solicitar a capacitação de profissionais em suas regiões. O que fazemos hoje é: uma empresa abre um supermercado numa cidade do interior de São Paulo e entra em contato conosco para solicitar cursos de Operador de Caixa, Açougueiro, Padeiro, entre outros. E nós tentamos levar cursos com esses conteúdos para localidades próximas de onde eles vão contratar.
Esse é o futuro, este trabalho não é fácil, é um grande desafio, um dos maiores: implementar a educação profissionalizante no mundo. Toda a literatura mostra que a conexão com o mercado de trabalho é difícil, mas existem algumas dicas, por exemplo, o acesso a associações, o engajamento delas. As empresas veem muito mais legitimidade nas associações do que no Poder Público ou nos fornecedores, mesmo que privados, quando elas mobilizam os executivos, os técnicos, para construir currículos, cursos. Esse é um caminho importante para nós. Outro é aumentar o número de casos exemplares, como os que citei aqui, com alta taxa de empregabilidade, para podermos estimular mais empresas a participar e, naturalmente, garantir que elas possam dedicar uma parte do seu tempo, dos seus executivos e técnicos para auxiliar na formação de capital humano. Isso, porque existe uma tendência, de parte do empresariado, de achar que as pessoas precisam vir prontas, formadas exatamente naquilo que eles precisam, sem que tenham necessariamente que colocar o dedo ali. Nós precisamos de mais compromisso, mais engajamento, mais interesse em qualificação por parte das empresas, para que nós, fornecedores de cursos, tenhamos a capacidade de formar gente para atender a essa demanda, e garantir a mobilidade social desses alunos, em boa parte, de baixa renda.