entrevista

É hora de Reforma Tributária?

15 de janeiro de 2021
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A discussão de um sistema tributário mais justo cabe na atual crise econômica, provocada pela pandemia? “Nenhum País do mundo está discutindo ou implementando Reforma Tributária. Pelo contrário, estão tentando dar uma linha de vida para a economia”, defende Ana Carolina Monguilod, coordenadora do grupo de estudos de políticas tributárias (GEP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Partindo do pressuposto de que não vai haver aumento de carga, acredito que poderia até ser um meio para facilitar a saída das empresas da crise”, rebate Melina Lukic, diretora de cursos na Universidade Iorque (Canadá). No debate, as tributaristas falam das distorções do sistema brasileiro e discutem o que poderia torná-lo mais funcional.

ESTE TEXTO FOI PUBLICADO NA EDIÇÃO ESPECIAL DA PB EM PARCERIA COM O CANAL UM BRASIL. AO LONGO DO MÊS DE JANEIRO, O CONTEÚDO COMPLETO DA REVISTA SERÁ OFERECIDO NO SITE DA PB.

Quando apontamos que a carga tributária é alta no Brasil, falamos de um valor absoluto ou de uma falta de proporcionalidade entre o pago e o oferecido à população?

Ana Carolina Monguilod – Falamos dos dois aspectos. Nossa carga é meio exagerada, na minha opinião, tanto em relação ao porcentual do PIB [Produto Interno Bruto], ao redor de 34%, como em relação aos serviços que o Estado devolve para a população. Temos de levar em conta que países num nível de desenvolvimento similar ao nosso têm carga muito menor. A nossa é de país desenvolvido. Em relação ao retorno do Estado, é até desnecessário comentar: nossa carga tributária é gasta de maneira muito ineficiente. Temos a impressão de que gastamos pouco com educação. Não, gastamos muito com educação, só que gastamos mal.
Melina Lukic – É alta em termos absolutos e proporcionalmente. A carga tributária deve ser vista de acordo com o tamanho do Estado que temos no Brasil – muito ineficiente em termos de gasto público.

“Como fazer reforma tributária numa hora em que se precisa de receita, sendo que reformas tributárias podem, sem querer, resultar em aumento de carga?” Ana Carolina Monguilod.

Outra crítica é quanto à forma como se arrecada, o “caos tributário”. Qual a razão para a burocracia?

Melina – Nossa complexidade vem não só das obrigações acessórias, mas, principalmente, porque temos uma variedade de tributos que não precisava existir. Por isso, as discussões sobre reforma se centram em extinguir impostos ou reuni-los em um só. Nós temos muitas contribuições sobre o consumo, e nossa competência para tributá-lo foi repartida entre os vários entes. Uma empresa que presta serviço a todos os municípios terá de conhecer a legislação de cada um, e isso é irreal. Por isso que as reformas tributárias têm de centrar na reformulação dos tributos sobre o consumo, que, a meu ver, são os que mais causam problemas.
Ana Carolina – Além de termos esta “salada”, este “cardápio” de tributos, temos tanta exceção que, para qualquer contribuinte, é difícil saber como se enquadrar. Segundo, isso causa muita distorção concorrencial, a multiplicidade de tributos foi crescendo nos últimos 30 anos, e temos um sistema no qual alguns pagam muito mais do que outros. As pessoas tentam se ajustar, fazer planejamento tributário, mas o Fisco reage fiscalizando e autuando de maneira extremamente agressiva, porque se sente prejudicado, sente que os contribuintes estão buscando planejamento tributário. Isso faz com que, infelizmente, tenhamos um relacionamento entre Fisco e contribuinte muito ruim, tem que ser melhorado.

É correto arrecadar sem antes equacionar os gastos públicos, ou seja, e se fosse realizada a Reforma Administrativa e, depois, a Reforma Tributária?

Melina – Claro que o ideal é reduzir o tamanho estatal e melhorar a eficiência nos gastos, mas acredito que uma reforma que remodele o Estado vai demorar. E se ficarmos esperando a Reforma Tributária após a reforma do Estado, vamos continuar com este caos de mais de 30 anos. Acredito que ambas possam ser feitas paralelamente, ou a Tributária primeiro. Com ela, acredito que ficaria tudo mais transparente.
Ana Carolina – Entendo os argumentos da Melina e os respeito, mas confesso que acho que deveriam ser feitas paralelamente – ou até a reforma repensando o Estado deveria vir antes. Historicamente, as grandes alterações que tivemos na legislação tributária provocaram aumento de carga. Estamos nesta situação caótica de pandemia discutindo a Reforma Tributária num momento em que o Estado precisa de recursos, no momento em que temos um déficit histórico. Sei que Melina discorda, mas tenho muito medo de fazermos reforma neste momento e acho que o que confirma esse medo são todos estes movimentos que temos visto por grupos de pressão pedindo aumentos de benefícios e de gastos. Estamos numa situação em que deveríamos, na verdade, cortar “na carne”, e não ter aumento de custos. Então, como fazer a Reforma Tributária numa hora em que se precisa de receita, sendo que reformas tributárias podem, sem querer, resultar em aumento de carga?

É razoável discutir, ou implementar, a Reforma Tributária num momento como este, sem clareza de como será o mundo depois da pandemia?

Ana Carolina – Discutir é sempre saudável. Temos de continuar discutindo, porque estas ideias vão amadurecendo. Votar, aprovar e implementar, já tenho dúvidas, pois não sabemos ainda muito bem quem vai sobreviver, como a nova economia vai vir; poderia ser precipitado fazer qualquer mudança radical. Acho que, necessariamente, teremos de aceitar realocação de carga, porque alguns setores pagam menos e deveriam pagar mais. Essa realocação será necessária, mas isso deve ser feito com cuidado, não neste momento. Nenhum país do mundo está discutindo tributar, Reforma Tributária para implementar agora; nenhum país do mundo está falando em aumento de carga tributária. Ao contrário, os países estão, na verdade, tentando dar uma linha de vida para as empresas e para a economia.
Melina –– Não deve haver, em hipótese alguma, aumento de carga tributária. Se partir desta premissa, sou bem favorável que se faça, sim, a Reforma Tributária. Pode até ser um meio para facilitar a saída das empresas da crise. Vivemos um momento único, com Congresso e governo reformistas. Eles estão muito otimistas com o futuro da Reforma Tributária. Vimos, nos últimos 30 anos, ao menos três tentativas de reforma. Temos, a cada dez anos, esta discussão, e temo que se não aproveitarmos o momento para acertar algum tipo de reforma, nem que seja pequena, vamos passar mais dez anos sem esta janela de oportunidade política.

Hoje, no Brasil, são discutidas três diferentes propostas de Reforma Tributária. Quais as principais semelhanças entre elas?

Melina – A primeira apresentada foi a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, desenvolvida pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCif) e proposta pela Câmara. Logo em seguida, tivemos a PEC 110, do Senado. As duas são baseadas na implementação de Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Acredito que a PEC 45 seja tecnicamente melhor, porque de fato implementa todos os padrões de IVA internacionalmente reconhecidos. A PEC 110 tem uma série de exceções, acomodações políticas. Paralelamente, há uma questão muito importante: o fato de o governo federal, principalmente o ministro da Economia, Paulo Guedes, sempre ter apoiado um IVA dual, de Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica do governo, divergindo da proposta da PEC 45. Por isso, vejo a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) como um primeiro passo. A CBS foi a proposta que o governo apresentou, que reúne, basicamente, PIS [Programa de Integração Social] e Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social] e tenta aliar ambos ao modelo de padrão IVA tradicional. O governo veio com a discussão de que a CBS seria o IVA federal, uma primeira etapa, e acredito que seja dentro deste contexto de IVA dual.

Ana Carolina – A PEC 45 é muito parecida com a 110, mas tecnicamente acho que a 45 é mais pura, com menos penduricalhos. A CBS, que seria a união de PIS/Cofins – duas contribuições que incidem sobre a receita –, seria um passo para se pensar num IVA, num IBS [Imposto sobre Bens e Serviços]. Conceitualmente, o ideal seria uma reforma ampla, mas se não for possível, o ideal é dar um passo de cada vez e, quem sabe, preparar o sistema tributário para essa reforma ampla mais à frente, pensando- -se num IVA dual, que é muito interessante.

E as diferenças?

Melina – As duas propostas são muito próximas, mas têm diferenças na questão administrativa. A PEC 45 une tributos em entidades diferentes e faz uma administração compartilhada. Na PEC 110, não está claro como será, mas, pelo que entendi, os Estados vão administrar e repassar à União a sua parte. O grande entrave é a discussão dos fundos de equalização e de compensação que os Estados reivindicam, que querem que a União financie em contrapartida à aprovação da PEC 45. É a condição dos Estados a criação desses fundos a serem financiados pela União. Outro entrave é justamente a administração conjunta dos tributos mediante uma agência tributária nacional. Por fim, a questão da alíquota. Se pensarmos que o ICMS é o tributo que mais arrecada, e colocar na conta a alíquota de Estados e municípios num IVA único, do IBS único, chegaremos a uma alíquota de 30% a 32%, que seria a maior de IVA do mundo. Por isso, precisamos pensar se a CBS seria um caminho. A meu ver, sim.

Como você vê a criação de taxas para a economia digital?

Ana Carolina – Queria explicar brevemente o contexto no qual esta preocupação nasceu. Resumindo bastante, surgiu lá fora – porque a economia digitalizada acaba se desenvolvendo sem presença física. Antigamente, precisávamos de uma livraria na cidade para comprar livros. A Amazon afastou esta necessidade, porque vende para diversos países. No mundo inteiro, há um certo consenso, em termos de tributação internacional, de que os lucros devem ser tributados pelo país onde a empresa que aufere esses lucros está localizada. Quando se tem uma economia digitalizada, que prescinde de presença física, por um lado, os países não conseguem cobrar tributos e se irritam; por outro, as empresas se alocam em países que vão proporcionar uma tributação melhor. Na Europa, os gigantes da economia digital acabaram se estruturando na Irlanda, que, em certa medida, é quase um paraíso fiscal. No Brasil, não temos muito este problema, porque a economia digitalizada tem presença física no País, em função das características peculiares dele. Só que o Brasil tem de acompanhar com muito cuidado o que está acontecendo lá fora, porque estes critérios estão sendo todos redesenhados, e a tendência é que eles acabem favorecendo quem tenha mais força política, que são os países desenvolvidos e com mais peso político.

Entrevista concedida ao UM BRASIL – uma realização da FecomercioSP. UM BRASIL é uma plataforma multimídia composta por entrevistas, debates e documentários com nomes dos meios acadêmico, intelectual e empresarial. O conteúdo desses encontros aborda questões importantes sobre os quadros econômico, político e social do Brasil. Confira aqui a entrevista completa.

Leda Rosa Christian Parente
Leda Rosa Christian Parente
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