Há pouco mais de dois meses, o mundo acompanhou atônito as buscas pelo indigenista Bruno Pereira e pelo jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari, no Amazonas. Um atuava na proteção indígena dos territórios e o outro escrevia um livro sobre a floresta. Foram cerca de 15 dias em que a floresta amazônica esteve nas manchetes dos principais jornais do mundo e pautou debates no Brasil. Em paralelo, se reestabeleceu uma imagem antiga, ainda da época colonial, da Amazônia como uma região perigosa e selvagem. A forma como ambos foram assassinados – esquartejados e queimados –, colaborou com esse imaginário.
Menos se falou, no entanto, da estrutura criminosa com que Bruno e Dom se depararam. Descortiná-la tem sido um trabalho constante do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Fundado há três décadas, é uma das entidades que têm enfrentado o desmatamento da floresta e tentado conhecer os contextos e os mercados que fazem essa engrenagem permanecer ativa.
Os dados do Imazon sustentam que a destruição da mata amazônica voltou a crescer significativamente depois de 2012, atingindo o seu auge nos últimos dois anos. Só em 2021, uma área equivalente à metade do tamanho do Sergipe foi desmatada e, neste ano, considerando o primeiro semestre, cerca de 4,7 mil km² foram arrebatados por grileiros, madeireiros e pecuaristas – o que já representa 20% a mais do que no mesmo período do ano passado, o pior semestre em 15 anos.
Segundo Ritaumaria Pereira, diretora-executiva do instituto, o desmonte de políticas públicas de controle e fiscalização das ações destruidoras na floresta é a causa principal de tudo isso. Sem elas, os grileiros invadem terras públicas livremente, derrubam árvores para transformá-las em madeira vendável em mercados legais e ilegais e colocam gado nos pastos artificiais para, então, solicitar títulos fundiários ao Estado. Depois, com os documentos em mãos, ainda podem vender os terrenos outrora invadidos no mercado imobiliário.
“Em outras palavras, estão desmatando o nosso patrimônio público para a especulação imobiliária. O pior é que tanto leis federais e estaduais quanto as práticas dos governos em relação à privatização dessas áreas públicas desmatadas ilegalmente incentivam a grilagem”, diz ela.
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No ano passado, a Amazônia teve sua maior devastação em 14 anos – pelo menos desde que o Imazon implantou seu Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), baseado em imagens de satélite. Em um ano, exatos 10.362 km² de mata nativa foram derrubados. É a metade do território do Estado do Sergipe. É também um número maior do que a soma de todas as áreas derrubadas entre 2008 e 2013 (9.956 km²). Mesmo na comparação com 2020, que já tinha sido um recorde de desmatamento (8.069 km²), o que se perdeu em 2021 foi 29% superior. Neste ano, a situação pode piorar, já que só no primeiro semestre já foram derrubados quase 5 mil km² de mata.
Por causa dos desmontes nas políticas de combate ao desmatamento que foram sucessos no Brasil entre os anos de 2005 e 2012. Elas precisam ser restabelecidas urgentemente. Algumas das medidas que necessitam ser retomadas é o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e o Fundo Amazônia, que funciona como fonte de financiamento para projetos que ajudam a manter a floresta em pé. A continuidade dessas ações está prevista inclusive na chamada “Pauta Verde” do Supremo Tribunal Federal (STF). Tudo isso sem contar a relevância de fortalecer órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Sem eles, fica mais difícil fiscalizar. Uma pesquisa da rede MapBiomas mostrou, há pouco tempo, que apenas 2% dos alertas de desmatamento foram fiscalizados ao longo dos últimos três anos.
Tem muita relação com grileiros, ladrões de terras públicas não destinadas e invasores de áreas protegidas, que invadem e desmatam a floresta para tirar e vender madeira, colocando gado nas áreas destruídas como forma de indicar ao Estado que estão fazendo “uso produtivo” delas. Então, eles requerem, posteriormente, o título da terra perante os governos dos Estados ou a instância federal. Para se ter uma ideia, estima-se que cerca de 90% do território já desmatado na Amazônia tenha sido convertido em pasto.
As análises da rede MapBiomas mostram que realmente as áreas privadas concentraram a maior parte do desmatamento na Amazônia em 2021, somando aproximadamente 67% entre territórios particulares e assentamentos. Porém, precisamos chamar a atenção para o fato de que um terço (33%) da destruição da floresta ocorreu em áreas públicas ou vazios fundiários, sendo quase metade disso (15%) apenas em áreas públicas não destinadas. Elas são as preferidas dos grileiros, que as invadem e desmatam com o objetivo de obter a posse posteriormente. Depois, ainda procuram lucrar vendendo essas terras. Em outras palavras, estão desmatando o nosso patrimônio público para a especulação imobiliária. O pior é que tanto leis federais e estaduais como as práticas dos governos em relação à privatização dessas áreas públicas desmatadas ilegalmente incentivam a grilagem.
Não. Na verdade, há um grande problema de desvalorização das terras públicas: elas são vendidas a preços muito abaixo do mercado. No Tocantins, por exemplo, o valor médio cobrado para a venda delas é de R$ 3,95 por hectare – apenas 0,5% do valor médio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e meros 0,04% do valor médio praticado neste mercado no Estado. É a cobrança mais baixa entre os Estados da Amazônia Legal para regularização fundiária.
Por um lado, contamos com tecnologias robustas no monitoramento da Amazônia, que unem imagens de satélite e algoritmos de Inteligência Artificial. Por outro, a falta de acesso a dados públicos tem impedido o cruzamento de informações que nos permita identificar ilegalidades. No caso da exploração madeireira, por exemplo, nenhum dos nove Estados que compõem a Amazônia Legal libera devidamente seus documentos públicos sobre essa cadeia, conforme mostramos em parceria com o ICV, o Idesam e o Imaflora. Isso mesmo após uma década da implementação da Lei de Acesso à Informação (LAI). Os dados que deveriam ser divulgados são as autorizações para exploração florestal, que permitem a retirada de árvores por meio do manejo sustentável, e o Documento de Origem Florestal (DOF) ou o Guia Florestal (GF), obrigatórios para o transporte e o armazenamento de matérias-primas, produtos e subprodutos florestais desde o local de extração ou beneficiamento até os destinos. Se essas informações estivessem públicas como deveriam, nós poderíamos cruzá-las com os dados da exploração madeireira na Amazônia e, então, identificar em quais áreas a atividade foi feita de forma ilegal.
Podem ser todos nós. Isto, porque fatores como fiscalização precária, acesso restrito a dados públicos e falta de rastreabilidade dos produtos extraídos ou produzidos na Amazônia fazem com que não seja possível diferenciar devidamente o que é legal do que é ilegal. Ou seja: em cadeias como a madeireira, a da carne e a do ouro, por exemplo, não dá para saber se o produto está relacionado com o desmatamento ou qualquer outro tipo de ilegalidade. Na prática, todos nós, que consumimos esses produtos e seus derivados ou investimos em empresas que os comercializam, podemos estar dando lucro para negócios oriundos do crime ambiental. Mas o problema não é descobrir quem são os clientes finais, e sim quais negócios e investimentos estão livres dessa relação com o desmatamento.
É preciso retirar e punir os invasores. Também é necessário destinar florestas públicas ainda sem uso definido para a criação de novas áreas protegidas, como terras indígenas, territórios quilombolas ou unidades de conservação. Hoje, cerca de 30% da Amazônia é formada por áreas sem informações fundiárias, segundo um estudo que fizemos no Imazon. Entre elas, 43% já possuem prioridade para se tornarem áreas de conservação ambiental, mas, enquanto continuarem sem destinação, seguirão sendo alvo dos grileiros.
Combater ilegalidades e, em paralelo, aumentar a produtividade – que é muito baixa na Amazônia. Ela é, em média, de um animal por hectare, criado de forma extensiva e em pastos de baixa qualidade. A solução envolve várias ações: rastrear e fiscalizar efetivamente o gado, dar incentivos para recuperação de pastagens degradadas e para o aumento da produtividade, cobrar impostos adequadamente (propriedades grandes e pouco produtivas devem pagar mais tributos, embora os governos não cobrem devidamente os valores previstos), fornecer amplo acesso à assistência técnica continuada, condicionar o crédito rural ao aumento da produtividade de forma sustentável e, por fim, investir em infraestrutura nas áreas prioritárias. Tudo isso com transparência nos dados, para ser possível entender a complexa cadeia da carne – já que hoje não há nenhuma garantia de origem desse produto sem desmatamento.
Algumas soluções para manter a floresta em pé são justamente impulsionar a bioeconomia e regenerar áreas desmatadas. Um estudo do projeto Amazônia 2030, integrado pelo Imazon, mostrou que a Amazônia só produz 0,2% em produtos compatíveis com a floresta, em um mercado mundial que gira em torno de US$ 200 bilhões (R$ 1,03 trilhão). O mesmo projeto mostrou que 7,2 milhões de hectares – uma área do tamanho da Irlanda – já estão em regeneração natural. Ou seja: temos um grande potencial para dar escala à restauração florestal do bioma, gerando possibilidades de renda e ajudando o Brasil a cumprir acordos internacionais sobre a Amazônia.
A Amazônia já tem cerca de 20% de sua área total desmatados e outros 20% degradados por causa dos incêndios ou da extração ilegal de madeira. Não é preciso mais desmatar nenhum hectare para desenvolver a região, já que essas áreas destruídas podem ser usadas tanto para o aumento da produção agropecuária quanto para a restauração florestal e, assim, para a obtenção de lucro a partir da floresta em pé. A política pública ideal é a de desmatamento zero. E isso é possível, mas precisamos voltar a adotar estratégias que deram certo no passado, criando políticas que desenvolvam a região de forma sustentável. Entre 2005 e 2012, por exemplo, as ações governamentais e do setor privado conseguiram reduzir em 83% a taxa de desmatamento, que passou de 27,8 mil km², em 2004, para 4,6 mil km², em 2012.
Um relatório feito por parlamentares mostrou que o custo das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) das Forças Armadas na Amazônia aumentou 178% de 2019 (R$ 140 milhões) a 2020 (R$ 389 milhões) sem, contudo, conseguir conter a derrubada da floresta. Na verdade, segundo o nosso sistema, a destruição passou de 6,2 mil km², em 2019, para 8 mil km², em 2020 – uma alta de 30%. Ou seja: a militarização da proteção da Amazônia não foi efetiva no combate ao desmatamento. Inclusive, esse argumento é usado em uma das ações do chamado “Pacote Verde”, do Supremo Tribunal Federal (STF), que questiona o decreto presidencial que retira a autonomia do Ibama na fiscalização de crimes ambientais e a transfere para as Forças Armadas.