Vinte anos após o surgimento da sigla ESG — em artigo do Banco Mundial chamado “Quem se importa, vence” (“Who Cares Wins”) —, as empresas brasileiras parecem estar familiarizadas com as três letras que significam sustentabilidades ambiental, social e de governança corporativa (ou environmental, social and governance, no inglês).
Durante a pandemia de covid-19, falar sobre esses três pilares se tornou regra no ambiente de negócios, às voltas com as próprias responsabilidades no contexto da crise sanitária global. No entanto, para um dos nomes mais respeitados do mundo corporativo brasileiro, a socióloga Maria Alice Setúbal, a agenda só foi adotada parcialmente.
De acordo com ela, além de o ESG se restringir às grandes empresas, ainda parece dizer respeito, no Brasil, apenas aos aspectos ambientais e de governança. “No quesito social, tem muita coisa para ser feita ainda”, afirma. “[É o] aspecto mais difícil. Basta olhar para a questão da diversidade, por exemplo”, continua, afirmando que “pessoas brancas vão ter de dar lugar para não brancas. É muito revolucionário, mas muito difícil, porque, para quem já está lá, significa renunciar a privilégios.”
Maria Alice, também conhecida como Neca, foi entrevistada no Ethos 360, evento realizado pelo Instituto Ethos, em São Paulo, no fim de 2023, para discutir o papel das empresas na redução das desigualdades brasileiras.
A seguir, trechos da conversa da socióloga com a PB após palestrar no encontro.
Tenho falado bastante sobre como os grandes negócios estão avançando na agenda ESG, mas apenas nas letras “E” e “G”, referentes ao ambiental e à governança. No quesito social, as pequenas e médias empresas ainda têm uma lição de casa grande por fazer, pois têm dificuldades para entender esse lugar. Muitas acreditam que o assunto seja responsabilidade do governo ou da filantropia. Mais do que isso, não entendem que, como negócio, também são responsáveis por combater a desigualdade. Precisamos passar por uma grande jornada de conscientização.
Porque o aspecto social é o mais difícil. Basta olhar para a questão da diversidade, por exemplo, que entraria entre o “S” e o “G”. Isso significa que as empresas precisam trazer para dentro toda a discussão sobre gênero e raça e, mais que isso, devem ter mulheres e negros em posições de liderança. Em alguns setores, como a Indústria, ou o segmento da moda, por exemplo, há muita gente negra ou mulheres, mas sempre na base da pirâmide. Levá-las à liderança ou aos conselhos representa mudar a cultura da empresa. Há um desafio evidente.
O de que, para trazer mulheres, negros e pessoas LGBT para dentro de uma empresa, não dá para manter mesma cultura. Seria a mesma coisa que embranquecer pessoas negras. O desafio é alargar o ambiente, fazer com que elas se sintam bem ali, entender a cultura. Para fazer isso, é preciso abrir espaço na cultura empresarial. Pessoas brancas terão de dar lugar para não brancas, deixá-las chegar às posições de direção, aos conselhos. É muito revolucionário, mas muito difícil, porque, para quem já está, lá significa renunciar a privilégios.
Depende da empresa, do setor etc. O combate às desigualdades é muito complexo que levará anos. Nós precisamos de muita coisa. Uma delas é educação, embora não resolva tudo sozinha. Tributar as fortunas dos ricos também é fundamental, mas não muda nada isoladamente. Crescimento econômico é tão importante quanto, mas não basta por si só, depende de quem se apropria da riqueza. O Brasil cresceu bastante economicamente nos anos 1970, por exemplo, mas para quem? Para o 1% mais rico. Então, eu diria que se trata de uma união entre a iniciativa privada, as organizações da sociedade civil e o governo com as políticas públicas orientadas. Essa mobilização não é tão simples, já que mexe com interesses arraigados na nossa sociedade.
Eu acho que não precisamos ter nem um Estado mínimo, com tudo privatizado, nem um Estado pesado, enorme, totalitário. O Brasil necessita de um Estado forte, capaz de desenvolver políticas públicas que combatam desigualdades, ágil e contemporâneo. Acho que a palavra correta é “mobilizador”. Um Estado mobilizador, no sentido de estimular a sociedade civil. É um novo Estado.
A democracia que está aí tem sido bastante questionada pelos jovens, assim como os partidos, as instituições, tudo. Esse é um enorme desafio do mundo contemporâneo, porque estamos vivemos em sociedades de transição. É preciso uma força para recriar essa democracia, recriar esse mundo. Mas é muito difícil. Temos de fazer aos poucos. Recriar as instituições, a democracia, o Estado, e tocar tudo isso ao mesmo tempo em que estamos vivendo, vivenciando as mudanças climáticas, a chegada da Inteligência Artificial (IA), tudo neste instante, agora. Mas é isso que nos cabe fazer num momento histórico.
Difícil, mas com esperanças. O atual governo está buscando escutar a sociedade. Recriou o “conselhão” [Neca é um dos membros do grupo, com outras 200 pessoas], que está operacionalizando tudo isso, trouxe pessoas negras e mulheres para a administração pública — mesmo longe do ideal —, está buscando uma política de transição ecológica, numa dobradinha do Ministério da Fazenda com o Meio Ambiente. Eu estou apostando muito nisso. O desmatamento zero, a transição energética, a visão das pessoas negras de dentro do governo. Acho que estamos caminhando. Tenho esperança, embora não ande na velocidade que gostaria, mas na que a sociedade brasileira permite. Nosso país é mais conservador do que parece.
Não dá para falar do mercado. As empresas são diversas. Mesmo a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] não consegue mais representar todas, porque a diversificação é grande. As pessoas querem falar e querem ser escutadas, sem representantes intermediando. O Centrão, os partidos, tudo é cheio de nuances. O ministro vai para o governo, mas ele não representa o partido. É uma relação muito difícil. O mercado também não se sente representado. Acho que o fato de estarmos vivendo nesta transição faz com que as singularidades sejam cada vez mais complexas.
A desigualdade se reflete muito fortemente na educação, mesmo com os avanços dos últimos tempos. O buraco era bem mais fundo alguns anos atrás. Avançamos no acesso, mas não tanto na qualidade. O quartil mais pobre das escolas públicas, normalmente alunos e alunas negras, tem um aprendizado, em geral, mais baixo. São crianças e adolescentes que ficam para trás. Elas são das periferias, estudam em escolas cujos professores não são concursados, muitos docentes faltam, os próprios alunos faltam. Isso vai se repetindo. Deveria ser justamente o contrário: esse tipo de escola deveria ter os melhores professores, alunos por mais tempo no contexto escolar, trabalhando com bons materiais etc. Mas, daí, o custo seria maior, os resultados demorariam a aparecer — e, por causa disso tudo, não há vontade política.
Cerca de 30%. É muita gente. Enquanto tivermos um terço de alunos ficando no mesmo lugar no aprendizado, não vamos dar o salto qualitativo, apenas melhorar quem está da média para cima. A consequência é que, daqui a dez anos, teremos a mesma quantidade de gente ficando para trás.
Pensar os ensinos profissionalizante e técnico. Temos uma avenida diante de nós nesse assunto. É preciso construir uma escola atrativa para esses jovens que estão saindo do ensino médio. Não só: deve ser um ensino profissionalizante para o contexto em que esse jovem está inserido, porque não adianta formar uma pessoa sem ter um mercado para trabalhar. Então, essa escola deve ser atraente e contemporânea, além de ter mercado de trabalho. O Brasil precisa disso.