entrevista

Espaço de transformação

20 de abril de 2023
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Em vez de apenas esperar por um professor que dê a aula, numa postura passiva, os estudantes precisam agir dentro da escola: pesquisar, ler, discutir, experimentar, escrever. Esta é a visão para o presente e o futuro da educação de António Nóvoa, professor catedrático da Universidade de Lisboa, referência em pesquisas de educação e formação docente. Autor de mais de 150 publicações entre livros e artigos, editados em 12 países, Nóvoa defende que a instituição escolar precisa de melhorias, como dar mais espaço tanto para o “trabalho” dos estudantes e melhorar as relações com a sociedade para além de seus muros. Contudo, independentemente dos avanços tecnológicos, acredita que o valor social da escola e dos professores continuam inabalados. “A única instituição onde ainda se combate a fragmentação do mundo mediante o diálogo, o respeito pelo outro e a ciência é a escola”, afirma.

O senhor defende que a escola precisa ser reinventada, mas é possível pensar uma mudança profunda se os professores não têm bons salários, carreira, condições de trabalho?

Sim, porque não há alternativa. A situação precária, a falta de estrutura, tudo isso é verdade. Entretanto, os desafios para o futuro estão aí e são iguais para todos, países ricos ou pobres. Eu vi, quando fui embaixador da Unesco, práticas interessantes e capacidade de inventar de novo a educação em todo o lado. Temos de ter esperança que mesmo em situações precárias podem surgir coisas muito importantes para pensar e construir o futuro da educação. Obviamente, isso não dispensa ninguém de continuar a pleitear boas condições, bons salários. Estas lutas continuam a ser centrais, mas não devem servir de justificativa para que não se pense o futuro.

Em vez de mudar, muita gente gostaria que a escola voltasse ao que era antes da pandemia?

Existe uma tentação muito grande, depois de um período tão tenso, de tentar voltar ao que era antes. Só que, na educação, não há nenhuma maneira de voltar. A pandemia mostrou  problemas que estavam lá, que a escola já não respondia a muitas demandas da sociedade e das crianças. É impossível imaginar que a gente vai conseguir voltar a “colocar as crianças dentro de uma caixa”. O caminho possível é necessariamente o caminho da transformação.

Tem também quem defenda o fim da escola?

Muitos discursos pós-pandemia anunciam o fim da escola, preveem que os professores vão ser substituídos pela Inteligência Artificial (IA). Esses discursos são perigosíssimos, porque a escola é uma instituição absolutamente indispensável. Tenho citado Darcy Ribeiro, que dizia que a escola pública é a maior invenção do mundo. A escola pública é uma invenção absolutamente extraordinária, e se ela resistiu tão bem durante tantos séculos, é porque há qualquer coisa de ali de extraordinário – e nós não podemos perder isso. Temos de transformar a escola, mas não substituir a escola.

E substituir os professores?

Hoje em dia, em muitos círculos [de debate], a palavra “professor” parece que queima a boca. Por isso falam “tutores”, “organizadores”, “gestores”, “facilitadores”, “educadores”, “conciliadores”. Mas eu digo que é preciso marcar a importância do professor, que ele é mesmo insubstituível no trabalho educativo.

Como deveria ser a mudança?

Vou usar aqui com um jogo de palavras: o mais importante é que as escolas se transformem em um lugar onde as crianças trabalhem. Nós, hoje, pensamos em escola como lugar onde o professor é que está a dar aulas, que trabalha. O aluno está ali sentado, a ouvir. Quero que seja o contrário, que o trabalho principal da escola seja dos alunos. O trabalho é ler, pesquisar, fazer uma experiência, escrever algo, conversar com um colega, negociar, é um trabalho. Isso muda o ambiente da escola, a maneira como se organizam os espaços, como se organiza o currículo, a pedagogia.

Não se parece com o modelo da educação infantil?

Sim. Muitos dizem que o modelo da educação infantil é provavelmente o que vai prevalecer. Quando vou buscar a minha neta na escola, é isto que eu vejo: uns estão a fazer uma coisa, outros a brincar com outra etc. Este ambiente, depois, se perde na estrutura da escola mais tradicional.

A relação entre professor e aluno continua relevante?

A escola foi inventada como uma instituição intergeracional. Uma geração, a dos professores, ensina e educa os seus alunos. Esta relação intergeracional é absolutamente central; uma geração não se educa sem ter contato com a anterior. Contudo, outra coisa tão importante como esta é o intrageracional: alunos aprendem uns com os outros. Disso vem a famosa ideia da cooperação com a escola. A escola dita tradicional se assentou muito no intergeracional, mas esqueceu o intrageracional. É este o desafio que temos pela frente.

“Se eu retirar as crianças da escola para educar dentro de outros ambientes, estou a diminuir de uma forma brutal as dimensões do diálogo, do convívio, da empatia, da compaixão.”

Há outros desafios importantes além desse?

A escola foi concebida como uma coisa intramuros, como uma instituição separada da sociedade num espaço e com um tempo. Continuar a ser uma instituição intramuros é importante, porque a escola não é igual à sociedade. Ela tem um tempo diferente, podemos fazer coisas que não podemos fazer na sociedade. Na escola, temos a possibilidade de errar. Na sociedade, se eu erro ao atravessar a estrada com minha neta, ela pode morrer. Se errar na empresa, ela pode ir à falência. Se um médico erra, o paciente pode morrer. Mas devemos ter o direito de errar na escola, porque estamos protegidos.

E o que deve mudar nisso?

A ideia de ser intramuros é importante, mas a escola perdeu a ideia de que é também uma instituição extramuros, que vive de uma capilaridade com o exterior. A cidade também educa – e esta é a dimensão extramuros, que existe do ponto de vista físico, mas pode ser também do ponto de vista digital.

A pandemia mostrou para mais gente a possibilidade de estudar em casa. Seria uma boa mudança para a escola?

O homeschooling é uma tendência internacional de muitas décadas. Começou sobretudo nos Estados Unidos em meios muito conservadores, que não queriam que as suas crianças fossem expostas a outras religiões ou outros valores. Foi promovida por medo das sexualidades, de as meninas de 12 e 13 anos terem contato com rapazes e por certos grupos religiosos que não queriam que as crianças conhecessem certas leis científicas, a teoria da evolução. Depois, o curioso é que o movimento do homeschooling atravessou para grupos radicais de esquerda. Há grupos, sobretudo de tendência anarquista, que não querem os filhos educados por uma instituição do Estado; ou grupos de feição ambientalista, de ligação à natureza, que não querem os filhos fechados numa escola.

Mas há algum problema nestas visões?

Eles vêm de lugares muito diferentes, mas todos têm o mesmo erro de base. A escola é diferente da família, a escola não é a continuação da família. Já disse muitas vezes que eu, um pai católico, formo o meu filho na religião católica, porque faz sentido para mim, é o que eu acredito. Mas eu, pai, quero que, na escola, o meu filho conheça todas as religiões e crenças, os valores de outras culturas. Quero que a escola seja esta abertura ao mundo, à ciência, à cultura, aos conhecimentos, porque o meu filho é uma pessoa humana, tem direitos. Um dos direitos principais que o meu filho tem é o direito de conhecer o mundo. Não posso, em nome da minha tutela familiar, anular um direito do meu filho.

Então é um grande erro não ir à escola?

Quem não vai não aprende o diálogo, não aprende a conviver com os outros, com o diferente. Isso é uma função extraordinária da escola; a escola é insubstituível, dentre outras razões, porque é, hoje, a única instituição nas nossas sociedades na qual ainda se pode combater a fragmentação do mundo, repleto de intolerâncias, ódios e confrontos permanentes. A única instituição em que ainda se pode tentar combater isso por meio do diálogo, do respeito pelo outro, da ciência, é a escola. Se eu retirar as crianças da escola para educar dentro de outros ambientes, estou a diminuir de uma forma brutal as dimensões do diálogo, do convívio, da empatia, da compaixão. Crianças podem aprender matemática e física no homeschooling, mas não podem apreender todas as outras coisas que fazem parte da educação. A escola precisa ser defendida como instituição. Não quero inventar algo novo; quero transformar a escola. É uma invenção extraordinária, mas que precisa ser reinventada.

O senhor defende que a escola não pode ser igual à sociedade. Entretanto, a escola não reproduz os modelos que temos na sociedade?

O sociólogo Pierre Bourdieu escreveu, na década de 1960, um livro chamado A reprodução, em que mostrava que a escola reproduzia a sociedade. As mesmas desigualdades de nascimento são encontradas no fim da escola, com os mais ricos obtendo melhores resultados. O autor teve um impacto impressionante nas correntes pedagógicas brasileiras. Bourdieu escreveu do ponto de vista analítico, no fundo, para denunciar um problema. As correntes pedagógicas do Brasil transformaram isso num fatalismo, disseram que não havia nada a fazer, numa espécie de demissão em relação à ideia de que a escola pode (e deve) combater esta reprodução. A escola deve ser diferente, senão, não vale a pena.

“A escola dita tradicional se assentou muito no intergeracional, mas esqueceu o intrageracional [entre alunos]. É este o desafio que temos pela frente.”

Mesmo quando se trata de violência?

A violência é uma coisa que não pode ter lugar na escola. Digo isso muitas vezes aos professores: não pode haver um ato de violência dentro da escola. Num momento em que haja, tem que parar a escola e passar um dia a refletir sobre isso, até as crianças perceberem que não pode haver violência. “Ah, mas a violência está na sociedade”. Eu sei que ela está, mas a escola tem de ser um lugar onde todos tenham o próprio lugar. Muitas crianças estão na escola, ou melhor, o corpo das crianças está na escola, mas elas nunca entraram. Estão na última fila, a gente sabe que não estão atentas a nada, mas o professor continua a sua aula da melhor maneira que sabe. Esta não presença das crianças explica, mais tarde, muitos fenômenos de fracasso escolar e até de violência. Se o estudante está numa situação de trabalho, é impossível não estar lá. Por isso que o trabalho é uma forma de marcar a presença de todas as crianças.

Como se pode promover a transformação da escola quando há resistências?

O processo de transformação precisa ser voluntário. O que vou fazer é apoiar aqueles que queiram – os quais acredito serem muitos e que criarão um movimento imparável. Nas escolas, há professores que não querem mudar; nós temos poucos instrumentos contra essa resistência. Não quero gastar as minhas energias com estas pessoas. Quero gastar as minhas energias com as que querem mudar. Os movimentos que estão a surgir em tantas escolas, em tantos professores, vão levar a uma dinâmica inevitável de transformação.

O senhor já tem presenciado essa mudança?

Cada vez que dou uma entrevista (ou faço uma live) e deixo o meu e-mail, recebo muitas mensagens. Tipicamente, alguns dizem: “Gostava muito que o senhor conhecesse a minha escola, porque já estamos a fazer isso”. No fundo, estão a dizer, de uma maneira elegante, que tudo aquilo que eu disse não é novidade nenhuma. E é a coisa que me deixa mais feliz.

LUCIANA ALVAREZ E LUCAS MOTA Divulgação
LUCIANA ALVAREZ E LUCAS MOTA Divulgação
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