entrevista

Fome cresce no Brasil e no mundo

16 de setembro de 2022
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Os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) apontam que cerca de 811 milhões de pessoas passam fome todos os dias no mundo – sendo que, destas, 50 milhões estão em situação emergencial. Segundo a organização, houve um aumento de 155% no número de famintos entre 2019 e 2022, por causa da covid-19, da inflação global, dos impactos climáticos e, mais recentemente, do conflito na Ucrânia. “Estamos vivendo o que a FAO chama de ‘tempestade perfeita’ para a segurança alimentar”, atesta Rafael Zavala, representante brasileiro da entidade.

Se a amplitude da problemática no Brasil já é grave por si só – com cerca de 33,1 milhões de brasileiros vivendo em situação de fome, 14 milhões a mais que em 2020, de acordo com números do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) –, o contexto global exacerba o pessimismo. Um dos maiores produtores de alimentos, o País também é um dos principais clientes do mercado russo de fertilizantes – cerca de um quarto de tudo o que utilizamos na produção vem de lá.

Em entrevista à PB, Zavala analisa como a dependência de fertilizantes pode aprofundar a crise alimentar na América Latina e sugere medidas de enfrentamento da crise nutricional.

Por que a fome tem se alastrado no Brasil e no mundo?

Estamos vivendo o que a FAO chama de “tempestade perfeita” para a segurança alimentar. Ainda sofremos os impactos da pandemia de covid-19, mas se somaram a eles o aumento da inflação e dos preços dos alimentos, a guerra da Ucrânia e a alta nos custos de energia, petróleo, gás e fertilizantes – sem contar as mudanças climáticas. São fatores que impactam diretamente a segurança alimentar das populações, principalmente aquelas parcelas que os sentem de forma mais severa no bolso.

O que pode ser feito a curto prazo para mudar este cenário?

Temos que discutir uma proteção social vigorosa que ajude as famílias mais vulneráveis a aumentar a sua capacidade de adquirir alimentos, não apenas em quantidade, mas também em qualidade nutricional. A fome no Brasil não acontece por falta de alimentos, mas sim pela falta de renda para adquiri-los. Sob a perspectiva da produção agrícola, existe o desafio de produzir alimentos saudáveis a um custo mais baixo, ao contrário de hoje, em que somente menos de 40% da população consegue comprá-los.

Qual o papel de programas de transferência de renda nesta crise?

O auxílio emergencial foi, sem dúvida, uma ajuda importante às famílias que tiveram seus rendimentos comprometidos pelas medidas de prevenção à pandemia. Mas só isso não é suficiente: programas como o atual Auxílio Brasil precisam ser ampliados, porque eles aumentam a capacidade das famílias de adquirir alimentos.

Que políticas públicas de combate à fome devem ser ativadas agora?

Além do Auxílio Brasil e de outras políticas de proteção social, o País conta com políticas regionais que promovem sistemas agroalimentares de circuito curto. Os restaurantes comunitários são um bom exemplo, como o modelo bem-sucedido do Distrito Federal, onde as pessoas podem consumir um prato saudável por apenas R$ 2 em pelo menos dez estabelecimentos desse tipo. Em São José do Rio Preto, em São Paulo, me impressionou a política de compras para alimentação escolar da agricultura familiar. A secretaria local luta não somente contra a fome, mas também contra a má nutrição.


Qual tem sido o impacto da inflação e dos combustíveis nessa realidade? 

A inflação dos preços dos alimentos se explica pelos problemas na logística internacional, além da alta dos custos da energia, derivados da guerra da Rússia contra a Ucrânia, que impactam diretamente a agricultura. Esses dois países são responsáveis por 30% das exportações mundiais de trigo, por exemplo. Não se sabe ainda se haverá colheita na Ucrânia, enquanto os russos enfrentam sanções econômicas. Com tudo isso, no curto prazo, haverá um choque na segurança alimentar, cujo cenário será ainda mais grave em caso de danos à infraestrutura dos portos desses dois países no Mar Negro, de onde saem essas exportações. Mas não é só isso: a Bielorrússia, assim como os russos e os ucranianos, está entre os principais produtores globais de fertilizantes. Sem eles, é quase impossível manter a produção de alimentos. A questão é que os preços dispararam. Considerando a dependência que muitos países da América Latina possuem desses produtos, inclusive o Brasil, podemos chegar a uma situação de grave crise alimentar na região.

“Não há solução a curto prazo: os alimentos continuarão caros. O que pode ser feito são investimentos em sistemas agroalimentares territoriais que reduzam a distância entre o produtor e o consumidor. A médio prazo, é necessária uma estratégia para reduzir a dependência da América do Sul de fertilizantes produzidos na Europa Central.”


Quais são as perspectivas sobre o mercado de alimentos?

Não há solução a curto prazo: os alimentos continuarão caros. O que pode ser feito são investimentos em sistemas agroalimentares territoriais de circuito curto, que reduzam a distância entre o produtor e o consumidor – o que chamamos de “pegada de carbono”. Há uma filosofia na Europa chamada “From Farm to Fork” (algo como “Da Fazenda à Mesa”) que eu gosto muito, por exemplo. A médio prazo, é necessária uma estratégia para reduzir a dependência da América do Sul dos fertilizantes produzidos na Europa Central.

Enquanto isso não acontece, como serão os próximos anos na região?

A FAO mostra que os países da América Latina e do Caribe crescerão apenas 2,5%, em 2022 e em 2023. Esse crescimento menor fará com que a região reduza sua participação na economia global para 7% já no ano que vem. Em 2019, essa taxa era de 7,6%. Há ainda a inflação de 5,7% estimada para as economias avançadas, como a do Brasil, e de 8% para as emergentes. Neste ano, a inflação latino-americana será de 11,2%. Esses números indicam um aumento adicional dos níveis de má nutrição na América Latina e no Caribe. O que precisamos fazer, neste contexto, é manter medidas, como o auxílio emergencial, e programas, como o Auxílio Brasil.

Vinícius Mendes Divulgação
Vinícius Mendes Divulgação
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