Pouco mais de três décadas após a constituinte, origem da Nova República, uma nova transformação nos espectros ideológico e político do País está prestes a acontecer. Ela já começou, mas vai se efetivar com a eleição presidencial em outubro – colocando frente a frente uma tentativa de salvar o pacto de 1988 e o projeto que pretende justamente sabotá-lo. Assim, se o acordo que deu forma à Constituição moveu as peças do tabuleiro político para a centro-esquerda, o contexto atual faz o movimento inverso: desloca todo mundo mais para o centro e, de certa maneira, para a direita. “Alckmin está no mesmo lugar. É o Lula que está indo para o centro.”
Segundo o historiador e cientista político Christian Lynch, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), da Unirio e da Universidade Veiga de Almeida (UVA), a eleição também marca um momento de ascensão do Legislativo e do seu ator principal, o “Centrão”, que almeja estabelecer um novo regime de governabilidade no País, por meio do semipresidencialismo. Se isso se efetivar, será mais uma vitória do conservadorismo, desta vez, dentro do jogo dos poderes.
Lynch ainda fala sobre os precedentes do bolsonarismo, os conflitos institucionais e os demais candidatos da eleição deste ano.
Há dois momentos semelhantes: um deles é o movimento integralista da década de 1930, um fascismo à brasileira que tentou juntar militarismo com a defesa da família e da religião. Bolsonaro repete sempre o lema integralista, aliás. Nele, o Estado atuaria como uma espécie de “leão de chácara” responsável por manter a autoridade da Igreja e da família. Esse movimento fascista foi liquidado pelo Estado Novo. O outro momento parecido ocorreu quando se formou a coalizão que depôs o presidente João Goulart e assumiu o poder em 1964. Era integrada também por militares, Igreja e setores reacionários da sociedade, mas tinha uma plataforma econômica neoliberal. São os dois precedentes históricos do bolsonarismo. Se a história não acontece do mesmo jeito, suas estruturas eventualmente se repetem – ou, em outras palavras, é dizer que o bolsonarismo é, agora, um terceiro movimento deste mesmo processo histórico.
É difícil mensurar. A população que votava nos anos de 1930 era muito pequena e, no golpe militar de 1964, havia forte apoio das classes médias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ao mesmo tempo, o governo de João Goulart tinha uma aprovação relativamente boa das classes trabalhadoras. Como o Brasil estava em processo de democratização, com apenas 16% da população podendo votar, é difícil dizer se o golpe foi mesmo popular. Seja como for, o bolsonarismo é o primeiro movimento conservador da história brasileira em um contexto de democracia eleitoral. Daí alguns dos seus aspectos diferentes.
O primeiro é que os católicos dos dois primeiros momentos foram substituídos pelos evangélicos pentecostais. Além disso, ao contrário do regime militar, não é o exército hoje que dá o tom hegemônico: este autoritarismo vem identificado com uma liderança única. No entanto, o que há de novo é que o bolsonarismo mobiliza o mito da possibilidade permanente de um golpe militar encabeçado por uma figura supostamente antissistema (Jair Bolsonaro) que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, joga o jogo eleitoral. Além disso, esse conservadorismo não é do tipo daquele tradicional, aristocrático, de base liberal, como o britânico. É, antes, um populismo reacionário copiado do fenômeno em torno do [ex-presidente dos Estados Unidos] Donald Trump. O bolsonarismo também é um movimento profundamente antirrepublicano, porque não se posiciona apenas contra as instituições, mas contra os valores da civilização moderna. Tanto integralistas como militares se colocavam como portadores da modernidade, como alternativas que disputavam imaginários de futuro. O bolsonarismo, não. Ele é o nosso primeiro movimento de massas abertamente reacionário, e este mito do golpe mobiliza justamente a ideia de um retorno no tempo.
O discurso bolsonarista combate tudo o que faz parte da modernidade política, como o princípio da laicidade, da separação de poderes, da moralidade administrativa, a igualdade perante lei, os direitos das minorias, a distinção entre público e privado, a diferença entre Estado e governo etc. É uma retórica de violência e ignorância baseada na confrontação, na intimidação e no desrespeito institucional, de jogo sujo permanente, o qual se expressa na chamada “guerra cultural”. O culto à boçalidade difundido por Bolsonaro também é inédito na história brasileira. Plínio Salgado, líder dos integralistas, era um homem cultíssimo. Miguel Reale, outro membro do grupo, foi um dos maiores juristas do século 20. A mesma coisa com o regime militar, sustentado por intelectuais conservadores como Gilberto Freyre e Gustavo Corção. O bolsonarismo não tem ninguém. Ele vê qualquer cultura como um elitismo de esquerda.
Não houve nenhum movimento de extrema-direita expressivo ao longo da Nova República. Eles sempre foram residuais. O bolsonarismo é, nesse sentido, o movimento que aglutinou os derrotados de 1988 – isto é, aqueles que não se enquadraram no arco democrático que se construiu dali em diante. São os neoliberais, os militares admiradores da ditadura e uma parcela da população, predominantemente masculina e ressentida, para a qual este fetiche da violência teve eco. Jair Bolsonaro era a única figura que representava estas perspectivas. Quando houve a ascensão e a posterior mobilização dos evangélicos no campo político, Bolsonaro fez um esforço imenso para fidelizá-los e convertê-los à sua liderança, assim como com o conjunto do aparato repressivo identificado com as Forças Armadas as polícias militares. Mais recentemente, o núcleo conservador do Centrão no Congresso entrou para esse grupo. É um miolo parlamentar de políticos profissionais de direita sem escrúpulos éticos que tendem ao conservadorismo menos por ideologia e mais por cinismo.
A ressignificação do passado se tornou possível por dois motivos. Em primeiro lugar, pela distância temporal. À medida que o tempo vai eliminando as figuras do passado, e este vai se distanciando como realidade, torna-se possível idealizá-lo. Em segundo lugar, pela longa dominância de governos progressistas – do [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso à [ex-presidente] Dilma [Rousseff] –, que chafurdaram nos escândalos de corrupção. A desmoralização das instituições desses governos acabou potencializada pela Lava Jato, que, por sua vez, pavimentou o caminho para esse conservadorismo, ao associar a experiência democrática à corrupção. Contudo, esta idealização do regime militar como um acontecimento honesto, másculo, heroico, começou a acontecer logo depois que os militares deixaram o poder. O próprio Bolsonaro fez isso quando era parlamentar.
Ela servirá de termômetro para medir, de um lado, a força da República, e, de outro, o fôlego deste movimento autoritário e antissistema que está no poder. O bolsonarismo provavelmente chegará desgastado e com chances reduzidas de ganhar. A direita radical em torno de Bolsonaro, porém, parece muito mais organizada do que estava em 2018. Se desaparecerá como novidade, nós ainda não sabemos se o fenômeno permanecerá como rotina na vida brasileira, se se organizará em um partido próprio etc. Todavia, a eleição, por estar acontecendo em um momento de suspensão, também pode apontar para um novo sistema de polarização político-ideológica muito mais intensa do que aquela que existiu entre PT e PSDB. Tem acontecido uma rearticulação do sistema partidário e uma tentativa de criar um modelo novo de governabilidade que substitua o presidencialismo de coalizão. É um semipresidencialismo bancado pelo Centrão. Isso, porque há uma coisa nova na mesa: o fortalecimento do Legislativo, depois de um longo período enfraquecido. Como o governo Bolsonaro mostrou como um presidente pode não fazer nada e deixar o poder nas mãos desses políticos, sem uma direção clara que não seja reelegê-los eternamente, esta é uma possibilidade.
As forças progressistas estão sendo obrigadas a fazer o movimento contrário ao de 1985. Naquele período, houve um deslocamento da direita, que apoiava o regime militar, para o centro, permitindo, assim, a eleição de Tancredo Neves. A própria Constituição é uma carta progressista. O que a gente vê agora é o oposto: como o eixo político se deslocou para a direita, a esquerda está sendo obrigada a ir para o centro. Neste sentido, o [ex-governador de São Paulo] Geraldo Alckmin está no mesmo lugar. É Lula que está indo para o centro, buscando se reposicionar mais à direita do espectro político.
Uma coalizão “nova-republicana” que busca agregar o tanto quanto possível um PT mais moderado com os elementos do PSDB histórico, além dos tradicionais aliados da centro-direita, como o MDB e o PSD. Uma coalizão democrática que saia em defesa das instituições democráticas e da Constituição. Nesta chave, a coalizão Lula-Alckmin tem paradoxalmente um papel conservador de defesa de 1988. Não é mais uma disputa entre esquerda e direita no interior da Constituição, mas entre os constitucionais e os golpistas, entre aqueles que defendem os valores da democracia liberal de 1988 – erguida sobre alguns ideais de civilização, de desenvolvimento, de superação da pobreza etc. – e aqueles que querem esvaziá-la. A Constituição não comporta o conservadorismo do Bolsonaro porque foi confeccionada para resistir justamente a gente como ele. Por isso que ele não pode conviver com ela e ser o elemento disruptivo do jogo.
Está chegando com quatro anos de atraso. A eleição do lavajatismo, esta ideia de um liberal republicano que encarne o combate à corrupção, foi em 2018. Moro “perdeu o bonde”. Hoje, como não tem traquejo político, é um juiz de vara criminal imbuído de uma espécie de messianismo que foi usado por um conjunto de forças muito superiores a ele, o qual estava interessado em derrubar o PT e a Nova República. Tanto que, depois que Dilma caiu, Moro começou a perder força e se autocombustou ao se tornar ministro do governo Bolsonaro, movido pela ambição de chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF). O movimento foi péssimo do ponto de vista político, porque fez com que ele perdesse apoio dos liberais quando virou ministro e dos bolsonaristas quando deixou de sê-lo. Quem está com ele hoje é uma lasca muito pequena de liberais conservadores, que faz com que ele dispute o campo da direita com o próprio Bolsonaro.
Ciro tenta galvanizar a tradição trabalhista do getulismo, do brizolismo, do janguismo e de uma esquerda que foi hegemônica até os anos de 1980, quando superada pelo PT. A candidatura de Ciro Gomes não pode ser dissociada da tentativa de reaparecimento do PDT em meio à recuperação de suas raízes históricas – e reeditando aquele socialismo de fundo nacionalista. O problema é que o PT não foi fiel às suas origens e incorporou muito do repertório nacionalista ao longo destes anos. O segundo mandato de Lula e o primeiro de Dilma tiveram caras de governos getulistas e janguistas. O problema de Ciro é que a parte progressista da sociedade vê no bolsonarismo uma ameaça muito maior, e entende que só Lula pode livrá-la.
Os poderes políticos que sempre organizaram modelos de governabilidade do Brasil foram o Executivo e o Legislativo. O Judiciário era um apêndice, não um poder autônomo com expressão política. No começo da democratização do sistema político, nas décadas de 1950 e 1960, isso foi ainda mais forte. Tivemos vários golpes de Estado, e o Supremo nunca barrou nenhum. No entanto, a partir da Nova República, houve um movimento para afastar, para sempre, a ameaça do autoritarismo no País. A Constituição de 1988 criou o Judiciário mais forte do mundo, com um STF que concentra a jurisdição constitucional, emite súmula vinculante, forma o núcleo duro do topo da Justiça Eleitoral, julga senadores e deputados e ainda centraliza a corregedoria de todo o sistema pelo Conselho Nacional da Justiça (CNJ). Tudo isso sem contar o Ministério Público, que se emancipou do Poder Executivo. Este aparato se expandiu monumentalmente na Nova República, com base em uma filosofia neoconstitucionalista. Durante um tempo, duas coisas andaram juntas: o presidencialismo de coalizão e esse ativismo progressista por parte dos juízes. As desmoralizações do Executivo e do Legislativo na esteira dos escândalos de corrupção, porém, acabou legitimando a tutela do Judiciário sobre a política. O que explodiu em 2013 foi a ideia de que, diante de políticos corruptos, cabe ao Poder Judiciário efetivar os valores constitucionais, sobretudo o da moralidade administrativa.
Todo este discurso foi dando origem a uma aristocracia togada. Muitos juízes passaram a mandar ou desmandar. Até outro dia, era melhor ser ministro do STF do que presidente: tem mais poder, é mais cômodo e dá menos trabalho. O Judiciário, infelizmente, também contribuiu, com seus excessos, para o atual estado de coisas.
Em 2013, essa “revolução judiciarista” já estava ideologicamente preparada. O Judiciário fez o diabo: prendeu presidente da Câmara dos Deputados, senadores, impediu ministros nomeados de assumirem os cargos. Tudo isso teve repercussões políticas monstruosas. A mais grave delas foi a decisão monocrática de Gilmar Mendes impedindo a posse de Lula como ministro-chefe da Casa Civil do governo Dilma – um movimento que teria inviabilizado o impeachment. A história do Brasil seria provavelmente outra se aquela decisão não tivesse sido tomada. A politização do Judiciário, por fim, legitimou um movimento contra ele próprio: não foi à toa que um comandante do Exército resolveu intimidar o Supremo, incitando-o a impedir Lula de concorrer à Presidência da República em 2018. Bolsonaro lhe deve a eleição.
Não mais. O STF não destitui presidente da Câmara, não prende senador por decisões monocráticas. Essa revolução judiciarista foi a aspiração do Judiciário, em nome da efetivação de valores republicanos, de tutelar o sistema político em um momento de desmoralização do Legislativo e, depois, com o impeachmentdo Executivo. Teve uma hora que o Judiciário estava mandando no País.
Porque eles não prepararam um candidato para 2018. Eu imaginava que seria Joaquim Barbosa. Contudo, como a soberba do judiciarismo foi muito grande, não previram que os ventos mudariam e que os excessos do lavajatismo bancados pelo STF e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) provocariam uma reação da classe política. Isso aconteceu exatamente quando da ascensão de forças reacionárias antirrepublicanas, que serviram de base para Bolsonaro. O surgimento dele fez aparecer uma reação antijudiciarista também, que serviu de cimento para a aliança entre o bolsonarismo e o Centrão.
Como o Legislativo estava desmoralizado, todas as plataformas eleitorais dos candidatos às presidências da Câmara e do Senado passaram a ter o objetivo de recuperar o poder e o prestígio perdidos. Era um movimento de defesa das prerrogativas do Congresso tanto contra o Judiciário quanto o Executivo. Entretanto, a incompetência do governo Bolsonaro permitiu ao Legislativo, dominado pelo Centrão, ganhar dos dois lados: de um, ficou com as verbas do orçamento do Executivo. De outro, conseguiu obter do Judiciário um comportamento de autocontenção. O Congresso tem, hoje, um protagonismo que não tinha desde o governo Itamar Franco. Não à toa o presidente da Câmara, Arthur Lira, se sente forte o bastante para colocar à força a discussão do semipresidencialismo no Brasil.