entrevista

Histórias indígenas

13 de setembro de 2021
I

Indígena da etnia Guarani-Ñhandeva, Sandra Benites é curadora-adjunta de arte brasileira no Museu de Arte de São Paulo (Masp) desde 2019. Antes disso, foi professora de arte em uma escola de ensino fundamental em Aracruz, Espírito Santo, e coordenadora pedagógica na Secretaria de Educação em Maricá, no Rio de Janeiro. É também doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Primeira curadora indígena contratada por um museu brasileiro, à frente da pesquisa para o projeto Histórias Indígenas no Masp, programado para 2023, a pesquisadora acredita que a sua experiência possa contribuir para que os povos originários sejam, enfim, escutados e reconhecidos.

Entre os Guarani-Ñhandeva, há quem diga que Sandra Benites se tornou juruá, como são chamados por eles os não indígenas. O motivo da afirmação é o fato de ela falar muito, diferentemente do povo ao qual pertence – que tem o costume de escutar mais. A sua escolha pela academia, conforme explica, foi motivada pela vontade de não ser uma mera informante, mas estar em posição de analisar e criticar as teses que abordam o povo Guarani. Nesta inversão de papéis, inclusive, Sandra vem conseguindo impor sua voz.

“Quando nós, mulheres, não falamos, a atenção se volta à voz masculina, e esta nem sempre entende as especificidades das mulheres”, argumenta. “É importante se posicionar para que não sejamos apagados.” Ela garante, no entanto, que argumentar mais – e ocupar espaços antes destinados apenas aos brancos – não a distancia de seus costumes, pois são os ensinamentos da aldeia que a ajudam a se fortalecer. É recorrendo a eles, ainda, que Sandra pretende desconstruir, dentro de uma das principais instituições culturais do Brasil, uma narrativa centrada no discurso colonizador.

“Embora eu tenha esta preocupação de manter alguns costumes, precisamos avançar em espaços que não são nossos, como a academia.”

Você já mencionou que as mulheres guaranis têm voz, mas só se impõem quando ficam mais velhas. Pode contar como conseguiu impor a sua voz e quais foram os obstáculos para isso?

Foi com 25, 27 anos que comecei a participar de cursos, encontros de professores, e, a partir daí, tive que aprender a me posicionar em determinadas situações. Fiz o curso de magistério em 2003, e quem dava aula para a gente não eram só indígenas, a maioria era não indígena. Às vezes, apresentavam propostas, e sentia que a gente tinha que se posicionar e falar como gostaria que fosse. Lembro que minha avó falava para as meninas que elas tinham de ter coragem, e o empoderamento da mulher guarani é ter coragem de falar. Carreguei muito isso comigo e comecei a falar do meu jeitinho, mesmo não sabendo muito bem o português. Para nós, existem os tekos dos homens, das mulheres, dos adolescentes. É a forma de se colocar no mundo, de ser, e percebi que quando nós, mulheres, não falamos, a atenção se volta à voz masculina, e esta nem sempre entende as especificidades das mulheres. Então, muitas vezes eu queria falar sobre o teko das mulheres, porque quando não se olha para essa especificidade de forma mais profunda, ela se torna generalizada. É importante se posicionar para que a não sejamos apagados.

Você foi educada pela sua avó e chegou a dizer que, ao acompanhá-la, se construiu como kunhã py’a guasu (“mulher com sentimento de coragem”). Quais foram os principais ensinamentos dela? 

Ela é uma referência para mim e me ensinava rigidamente como chegar à casa do outro. Lembro-me de que as pessoas a procuravam, de noite, de dia, quando uma mulher estava em trabalho de parto. Gostava de acompanhá-la, as comadres ofereciam coisas, mas ela não ganhava dinheiro, ganhava cuidado, e eu carregava até o meu potinho de água. Como a gente não tinha água encanada, as famílias tinham de buscar água longe, e ela me ensinava a levar a minha para não ter de pedir para os outros. Eu fazia tudo direitinho, e ela me ensinava muito sobre como se comportar diante do outro. Acho que esta rigidez eu aprendi, mas quando cheguei à cidade, comecei a observar esse outro e, aos poucos, tive que aprender a falar muito. Participava de eventos, passeatas, marchas, as manifestações que apareciam, e tudo isso foi me encorajando, pensando no ensinamento da minha avó, de encorajamento. Hoje, acham que me tornei juruá [não indígena] porque falo muito, mas foi porque houve necessidade. E não acho que me tornei branca, pelo contrário, somei esta força e diria que eu sou mais guarani do que se estivesse só na aldeia. Por estar fora, comecei a buscar mais profundamente o que achava importante dentro da comunidade – e, hoje, estes ensinamentos me ajudam. 

Antes de você trabalhar com educação, trabalhou como agente de saúde e teve um papel importante, por exemplo, para que as mulheres pudessem ter acesso a anticoncepcionais. Como foi este processo?

Eu sou de Mato Grosso do Sul, da aldeia Porto Lindo, que é onde estou agora, mas em 2000 fui para o Espírito Santo e, quando cheguei lá, me convidaram para me tornar agente de saúde da comunidade, no município de Aracruz. Comecei a trabalhar grávida, mas, quando o meu filho nasceu, fiquei preocupada porque já tinha quatro e não queria mais. Ter filhos na aldeia era diferente, porque era um cuidado coletivo, mas, pensando na lógica de que vou trabalhar, estudar – e fora da aldeia não era assim –, não poderia ter mais filhos. Na época, fui pedir para tomar remédio, mas foi negado, porque os médicos eram orientados a não distribuir anticoncepcionais, e foi quando começou minha luta como agente de saúde, porque sabia que outras mulheres também queriam. Acredito que havia a questão de preservar a cultura, mas a gente tem de olhar para a devastação do próprio espaço e a ausência de remédios naturais. Lá não tinha nem eucalipto, nem pássaro, e eu consegui tomar remédio natural somente porque minha mãe me mandava da aldeia Porto Lindo – mas também optei pelo uso do anticoncepcional porque tinha urgência.

Dos seus quatro filhos, todos optaram pela universidade. Você os incentivou a seguir? 

Embora tenha esta preocupação de manter alguns costumes, precisamos avançar em espaços que não são nossos, como a academia. Casei-me aos 16 anos, tive minha primeira filha aos 18, e as minhas filhas tiveram filhos aos 23 anos. Elas já avançaram um pouco diante do costume guarani, e isso não é ruim. Na universidade, você não pode ter um monte de filhos; se você vai morar na cidade, o espaço é pequeno e é difícil morar com uma criança num apartamento: elas precisam brincar, pisar no chão, ter autonomia. Entretanto, para se discutir a autonomia das crianças, é preciso chegar à universidade. É assim que entendo a política dos juruás, a universidade como lugar para discutir os nossos silenciamentos. Minhas filhas já terminaram o estudo, mas meus dois filhos estão na graduação, enfrentando dificuldades, mas enfrentando. Conseguiram acessar estes espaços por causa das cotas, mas é um lugar de elite e eles têm dificuldade de acompanhar o processo e a rigidez dos próprios conteúdos que não levam em consideração os costumes. Um deles pensou até em desistir. Ele é muito calado, tem o costume de escutar, não rebater, e na universidade você precisa mostrar e comprovar. 

Quando decidiu cursar Antropologia, você disse que foi motivada pela vontade de não ser mais uma mera informante, mas poder analisar, refletir e criticar as teses que abordam o povo guarani. Qual é a importância de ocupar este lugar? 

É um desafio se tornar uma pesquisadora do próprio povo, do próprio entendimento, do próprio corpo, porque é diferente de um pesquisador que olha de fora para dentro. Hoje, vejo-me entre a aldeia e a cidade, e meu corpo é como se fosse ponte entre estes dois mundos. Neste sentido, acho muito importante a nossa sabedoria enquanto mulher. Quando cheguei à universidade, a primeira coisa que observei é que as mulheres não são vistas como tal, a universidade foi arquitetada para o corpo masculino. Quando nós, mulheres guaranis, estamos no período menstrual, respeitamos nosso corpo porque é a base fundamental da nossa saúde como mulher. A gente se coloca onde se sente bem acolhida, não tem esta pressão de ter de fazer alguma coisa nesse período. Agora, nas universidades, vai falar isso para os professores e achar que eles vão dar ponto… Não dão. Acho que é uma violência contra a mulher, e pensei isso a partir da minha perspectiva. Comecei a observar que esses lugares não foram feitos para as mulheres, que não estão sendo respeitadas. Estou com 47 anos, já estou parando de menstruar, mas não significa que não vou lutar pelas mulheres que menstruam. Não posso ser considerada como minha avó, uma parteira, sábia e conselheira, mas me considero uma mulher fortalecida e parceira de outras mulheres, indígenas ou não.           

“Aceitei o convite [do Masp] e veio uma chuva de perguntas sobre o que vou fazer, o que vai mudar. Hoje, diria que não vou mudar nada, estou ali para somar. Vou somar enquanto mulher indígena, e isso ninguém vai tirar de mim.”

Antes de assumir o cargo no Masp, você foi curadora da exposição DjaGuata Porã: Rio de Janeiro Indígena,no Museu de Arte do Rio (MAR). Como se deu o seu encontro com o trabalho de curadoria?

Foi o professor José Ribamar Bessa que me convidou. Quando lecionava na aldeia, ele me chamava às vezes para dar palestras, e foi assim que aprendi a falar português também. Quando ele recebeu a proposta para fazer a exposição no MAR, me convidou para a gente discutir a proposta. Não sabia muito bem o que era aquilo, o que estava fazendo – e costumo dizer que ainda bem que não sabia. Fui enquanto mulher, indígena, professora, e já estava com a ideia do que me incomodava, que era a invisibilização dos indígenas. Foi só depois das reuniões que comecei a entender o que seria a curadoria de uma exposição e fui aprendendo junto. O professor me mandava vários artigos, textos de autores que falavam sobre arte indígena. Algumas coisas olhei, em algumas não quis mergulhar para ir com a minha própria ideia. Foi quando comecei a caminhar junto, e durante este processo fomos chamados pelo Masp para o primeiro seminário organizado pelo museu sobre as histórias indígenas. A própria equipe disse que quem deveria falar era eu. Não sabia muito bem o que estava falando sobre arte, nem se estava falando sobre arte, estava falando sobre luta mesmo. Depois, fui chamada uma segunda vez, uma terceira vez… De todos os seminários participei. 

A princípio, você pensou em recusar o convite feito pelo Masp. Por qual motivo?

O próprio diretor do Masp [Adriano Pedrosa] me ligou, conversou comigo e fiquei pensando que, na verdade, não sabia lidar com isso. A minha questão era: como vou representar todos os indígenas brasileiros? Este é meu desafio, e, por isso, fiquei confusa, com medo de não dar conta dos anseios dos parentes. Comuniquei alguns amigos não indígenas, artistas indígenas e me falaram que eu poderia, sim, ocupar aquele espaço, que isso já era alguma coisa e que já deveria ter sido ocupado há muito tempo. Então, aceitei o convite e, daí, veio uma chuva de perguntas sobre o que vou fazer, o que vai mudar. Hoje, diria que não vou mudar nada, estou ali para somar, e a soma de experiências é importante. Vou somar enquanto indígena, enquanto mulher indígena, e isso ninguém vai tirar de mim. Não conseguiria mudar, até porque é uma instituição que já tem um próprio sistema, e, para mudar, precisa ter a soma do diferente. Essa diferença eu vou fazer. Essa diferença, na verdade, sou eu.

“Não posso ser considerada como minha avó, uma parteira, sábia e conselheira, mas me considerar uma mulher fortalecida e parceira de outras mulheres, indígenas ou não.”

Você diz que um dos aspectos que precisa ser discutido dentro do projeto Histórias Indígenas é a cosmologia que todos estas pessoas carregam nas 305 etnias indígenas consideradas aldeadas. Como será a sua abordagem?  

Pensei em abordar como os indígenas contam suas histórias, que é a cosmologia. Todos passaram por vários processos de colonização, mas ainda continuam falando do tema e por ele que estão lutando. Esta narrativa da cosmovisão indígena se remete diretamente sobre a questão dos espaços territoriais, do entendimento da sabedoria, da reprodução. Outro aspecto importante é a questão do processo da colonização mesmo, porque, se não falarmos do processo de colonização, vamos excluir os parentes que estão na cidade, que era aldeia e, hoje, é cidade. Foram todos soterrados, mas não fisicamente, e, sim, simbolicamente. Muitos que estão na cidade estão retomando juntamente com outros indígenas esta busca da cosmologia, de entendimento, de conhecimento. É uma tarefa difícil, porque eles foram apagados. Muitas etnias foram desvinculadas da própria visão de mundo por causa da colonização, por isso precisamos falar destes dois movimentos: como estas narrativas estão sendo contadas e como estas vêm da cidade, do não lugar, com indígenas que perderam este vínculo com a sua ancestralidade e, muitas vezes, não são identificados nem como indígenas, nem como brancos, nem negros. 

Quando pensamos em exposições, estamos falando também de uma visualidade, ou mesmo materialidade. Como pensa em materializar estas discussões? 

Tenho pesquisado vários artistas que respondem ao debate da cosmologia. É engraçado, porque vejo que todos os indígenas que trabalham com uma forma de enfrentamento (ou desta perspectiva cosmológica) falam a partir da obra, a partir da tradução da própria narrativa. A maior parte não fala de violência, da tragédia da colonização. Quem fala sobre isso, em forma de artigo, textos, são os próprios pesquisadores juruás. Nós, indígenas, não falamos da violência, falamos de uma forma metafórica – essa metáfora é importante também e vou recorrer a ela. As instituições não costumam colocar coisas muito pesadas, as violências que os indígenas sofreram. No entanto, acho que deve entrar, sim, em determinado momento, a fala das lideranças que foram assassinadas durante a luta. Não acho que seja demais, é necessário. Não importa como, mas vou colocar, porque, caso contrário, vamos reproduzir a mesma narrativa: aquela baseada na colonização, e não quero repetir esta imagem. É por isso que estamos lutando para sermos minimamente visíveis, escutados, reconhecidos. Foi esse processo de negação da própria narrativa que resultou no contexto atual que estamos vivendo – inclusive, a PL 490 está incluída neste pensamento de que o Brasil foi descoberto, de que os indígenas não eram gente, não tinham alma, não tinham espírito, não tinha rei, não tinha lei. Quando as pessoas estão ocas, precisamos preencher as lacunas.

Nina Rahe Rodrigo Alencar / MASP
Nina Rahe Rodrigo Alencar / MASP
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