Aos 83 anos, o escritor Ignácio de Loyola Brandão está com medo. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), que teve o conjunto de sua obra agraciado pela instituição com o Prêmio Machado de Assis, ele agora vive enclausurado em seu apartamento, no bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Confessa que ainda não aprendeu a lidar com a sensação de conviver com a mortal presença invisível do coronavírus nas mesmas ruas e calçadas, por onde diariamente costumava passear. Nem mesmo a lembrança de um problema de saúde, na década de 1990, é comparável aos sentimentos que o vem afligindo desde o início da quarentena. “Com o aneurisma descobri que não tinha medo, porque eu nada podia fazer, não dependia de mim. Agora, depende de mim, de minha família, vizinhos, depende de todos. Cada passo errado eu posso estar matando alguém, posso morrer em seguida”, conta o premiado autor de mais de 40 obras, por e-mail.
Hoje, de sua janela, Ignácio observa o menor movimento dos carros e a rápida circulação de homens, mulheres, jovens e crianças com o rosto coberto, sem que haja ao menos um simples cumprimento de mão ou um abraço apertado. Talvez, de todo esse pesadelo, surja uma nova obra tratando da solidão das grandes cidades. Premonitórios, os livros de Loyola Brandão anteveem cenários e antecipam fatos. Sem estar ligado a ideologias ou partidos políticos, ele acredita no poder da escrita como ferramenta na formação da consciência. Mostra-se ao mesmo tempo cético e esperançoso. Tão logo o Brasil volte a entrar nos eixos, deseja retomar o que mais lhe dá prazer: viajar, ler, reler seus autores favoritos e contemplar o sol e as montanhas.
Estou duplamente aturdido com o que acontece. Há o covid-19 e o louco da caneta. Algo lá no fundo talvez me leve a seguir no caminho da vida em uma cidade vazia. O vácuo, o deserto, o silêncio, as pessoas ocultas nas casas. Talvez seja por aí.
Por que haveria de assustar? Fico encantado, ainda que seja tenebroso. Acontece que desde os tempos em que li Alice nos país das maravilhas, Alice no país dos espelhos, li também Viagens de Gulliver, 1984, As mil e uma noites, A metamorfose, de Kafka. Desde que soube da Terra do Nunca (com Peter Pan), li também a Utopia, de Thomas More. Acontece desde que mergulhei em contos de fadas com gênios, gnomos, gigantes, no O senhor dos anéis, O mundo perdido, de Conan Doyle, em 20 mil léguas submarinas, em Viagem ao céu, de Monteiro Lobato, em Beowulf, de um anônimo. Há os contos de Lovecraft (que descobri quando editava a revista Planeta na década de 1970).
Li sobre bonecos de pau que falam, sapos que beijados se transformam em príncipes e centenas de outros. Vi que o absurdo, a anormalidade e o fantástico fazem parte da literatura. Sempre uso o absurdo, abuso do imaginário. Basta olharmos pela janela para descobrir que o anormal acontece diariamente. Não tenho culpa se a realidade muitas vezes vem atrás de mim. Agora vi que há um novo gênero, o doentio. Aquele em que os personagens (reais) são doentios. Um presidente ir contra todos os preceitos sanitários, sair à rua, tossir na mão e cumprimentar as pessoas e, acima de tudo, demitir um ministro que está trabalhando direito, tudo isso é absurdo, maluco. Mas esta é a realidade. Em meu recente romance Desta terra nada vais sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela, imaginei a eleição do primeiro presidente sem cérebro do Brasil. Veja lá, um ano antes da eleição. Atirei no escuro e acertei, sabe-se lá por quê.
O que vejo, observo, ouço, avalio, tudo que me contam, o que leio, o que imagino, invento. Lourdes Prado, minha primeira professora no antigo primário [hoje, ensino fundamental], nos dizia na hora de fazer a redação: “Inspiração, meus queridos, não existe…”
Falei sobre isso no meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, neste trecho: “É a descoberta de um assunto. Só que [a inspiração] é uma coisa que não existe. Inspiração, meus caros, é uma coisa que vocês criam. Que todos podem criar. Não é um raio que vem do céu e vocês sentam e escrevem uma história ou um poema. É olhar tudo e perguntar o que é. É observar pessoas, lugares e acontecimentos e saber que aquilo é um assunto para poesia, conto, crônica. É perguntar, ouvir, olhar e olhar. Sobretudo escutar, escutem o outro. É ser curioso. Sem curiosidade você perde a maior parte das coisas que se passam na vida. Cada um constrói a inspiração, capturando-a, buscando-a na memória e nas lembranças.”
Minha amizade com Rubem tinha 50 anos. Vinha de 1976, quando fomos ambos proibidos pela ditadura. Ao longo da vida trocamos cartas, fomos a encontros literários, viajamos. Rubem no exterior era outro, era um performático no palco, dava entrevistas, gostava de comer, mostrava-se sedutor, encantava as mulheres, um sujeito que sacava rápido, era divertido, mordaz, irônico. O maior dos personagens que ele criou foi ele mesmo. Era sábio, às vezes irritante. Nunca conversávamos sobre literatura. Ambos tínhamos uma implicância em comum: os autores que chegam e contam o romance que escreveram (e que está nas livrarias, podemos comprar) ou que pretendem escrever, e falam horas e horas da própria obra e dos prêmios. Quem vai suceder Rubem? Não sei. De repente, penso em Rafael Montes e Tony Bellotto. O importante é que Rubem criou seu estilo, sua forma, só ele tinha a receita. Quanto a Garcia-Roza, li somente um livro dele, e gostei, adoro policiais. Tinha carisma, era simpático, falava bem.
“A arte, em todas as suas formas, desmascara os regimes e os sistemas.”
Naquele ano, descobri por acaso, em um exame de rotina, que tinha um aneurisma na artéria cerebral direita. O aneurisma não apresenta sintomas. É chamado “assassino silencioso”. Quando vem, mata; ou te deixa lesado, incapaz. Operei, sobrevivi sem sequelas. Isto produziu um de meus livros mais vendidos e, até hoje, recomendados pelos médicos que vão fazer intervenções de risco. No enredo, mostro como minha vida mudou, perdi certa ansiedade que me incomodava, decidi viver dia a dia com plenitude. Agora, não sei se a morte está aqui vizinha. Minha experiência está em Veia bailarina, livro que acalma, suaviza, é bem-humorado, até parece autoajuda. Aquele foi um momento pessoal, uma angústia minha, solitária: será que vou morrer? Com o aneurisma, descobri algo essencial: a vida pode desaparecer em um instante. Portanto, desfrutar o momento presente, fazer o que tem de fazer logo. Quantas vezes a gente diz que vai telefonar para uma pessoa querida, não liga e quando vê, ela morreu. Com o aneurisma descobri que não tinha medo, porque eu nada podia fazer, não dependia de mim. Agora, depende de mim, de minha família, vizinhos, depende de todos. Cada passo errado eu posso chegar a matar alguém, posso morrer em seguida. Ainda não sei lidar com isso.
Se mergulharmos na história das artes, veremos que o artista sempre é marginal e perseguido por governos. Da Vinci teve seus problemas, Michelangelo enfrentou o mau humor dos papas, Van Gogh nunca vendeu um quadro em vida, Orson Welles, depois de Cidadão Kane, só conseguiu fazer um filme digno, A marca da maldade. Zé Celso Martinez Correia foi preso e exilado; chegou a ter uma peça atacada em pleno palco, sendo processado pela Igreja. Hoje, a cultura inteira está sob a mira de uma quadrilha de desclassificados ideólogos. Por outro lado, aqui, há quantos anos passamos a esperar tudo do governo, como se fôssemos um país socialista? Há quantos governos a cultura vem sendo preterida, esquecida, colocada de lado? Há quantos anos sumiram os investidores, os produtores teatrais, os cinematográficos, os musicais? Os que levantavam dinheiro, arriscavam, produziam shows, filmes, peças por conta própria (afinal somos ou não somos capitalistas?), arriscando. Desconfio muito de arte amparada pelo governo, porque ele pode determinar rumos e ideologias. Vejam Cuba ou Rússia. Quantos milhões os musicais estrangeiros levantam e, na hora do espetáculo, cobraram ingressos de R$ 200 a R$ 500? Sim, os contextos políticos e econômicos mudaram. De décadas para cá, surgiram apoios governamentais. Porém o atual presidente busca combater a cultura, porque isso o incomoda. A arte, em todas as suas formas, desmascara os regimes e os sistemas.
Difícil responder. Esperemos essa pandemia vir e passar. Veja o comportamento das pessoas. Há uma linha de defesa, para salvarmos vidas, tanto as nossas como as dos outros. No entanto, boa parcela da população está indo para as ruas, pedindo o fim do isolamento, pedindo intervenção militar, pedindo fechamento da Câmara e do Supremo. Não basta o que sofremos entre 1964 e 1985? Não serviu de lição?
Há anos atravessando este Brasil de ponta a ponta, tenho trabalhado na formação de leitores. Faço literatura infantil desde os anos 1970. É uma delícia, uma maneira de reviver, de contar. Escrevo para quem gosta de ler, seja adulto, jovem ou criança. Olhar para minha infância e torná-la literatura é uma forma de não ver perdido um tempo de minha vida que foi encantador, mágico. Recuperá-lo é como reencontrar a arca do tesouro.
No fundo, um livro como Os olhos cegos dos cavalos loucos, sobre o meu avô, é principalmente para adultos, ainda que crianças o leiam com prazer. O Colégio Cervantes, em São Paulo, adotou o livro. Foi pedido aos estudantes: a partir do que foi contado, que trabalho vocês fariam? A resposta foi maravilhosa, todos foram entrevistar seus avós com gravadores, celulares e filmadoras. E se maravilharam com a vida que os avós tinham tido, como contornaram problemas. Isto é formar leitores. Fiquei comovido. Foi tão bom quanto o [Prêmio] Jabuti que o livro ganhou.
A conferir. Há movimentos belíssimos de solidariedade. Tomara nos acostumemos e que isso se torne normalidade.
Acha que penso em legado? Seria muita pretensão. Escrevo. Conto histórias. Documento meu tempo, as pessoas, os fatos, a vida. Basta isso.