entrevista

Impasse eleitoral

27 de junho de 2022
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Nas últimas semanas, o Brasil acompanhou uma conversa tensa entre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Ministério da Defesa. De um lado, as Forças Armadas não apenas expressaram desconfiança sobre a integridade eleitoral do País como ainda se disseram “desprestigiadas”, por não verem suas sugestões sobre o funcionamento das urnas se concretizarem. De outro, uma corte pressionada respondeu com polidez, pelas palavras do seu presidente, o ministro Edson Fachin, sem deixar também de explicitar incômodos com a falta de conhecimento dos militares sobre o funcionamento das urnas eletrônicas.

Esse descrédito sobre o sistema de votação brasileiro não é um fenômeno orgânico da sociedade: ao contrário, trata-se de uma estratégia política, segundo a cientista política Gabriela Tarouco, professora no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e integrante do conselho internacional do ElectoralIntegrity Project (EIP). “Colocar a integridade das eleições sob suspeita significa preparar um pretexto para não aceitar seus resultados”, argumenta ela.

A tensão não é de agora. Desde que venceu as eleições de 2018, o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores questionam a lisura do sistema – utilizado nacionalmente pela primeira vez no pleito municipal de 1996. Para Tarouco, essa desconfiança vai seguir dando o tom das eleições deste ano e, mais do que isso, exigirá que o TSE busque forças em outras instituições, caso o resultado das urnas não seja respeitado em outubro.

A seguir, trechos da entrevista que ela concedeu em meados de junho à Problemas Brasileiros.

Os questionamentos à integridade eleitoral brasileira surgiram de uma desconfiança de parte da sociedade ou de uma estratégia política de atores específicos?

São questionamentos estratégicos. Colocar a integridade das eleições sob suspeita significa preparar um pretexto para não aceitar seus resultados – uma ameaça já repetida publicamente. A desconfiança das pessoas, nesse sentido, pode estar sendo cultivada justamente por estes questionamentos estratégicos.


O sistema das urnas eletrônicas já ofereceu algum sinal de vulnerabilidade?

Nunca. Na verdade, vulnerabilidades no sistema são sempre antecipadas em testes e prevenidas pela combinação de várias etapas de segurança, processos que são feitos publicamente, aliás. É claro que, para acompanhar eventuais inovações nas tentativas de fraude, este é um trabalho que precisa ser feito continuamente, mas nenhuma tecnologia conhecida até hoje foi capaz de violar a integridade dos nossos atuais processos de votação e apuração.


Por que as informações sobre o funcionamento do sistema são tão díspares mesmo entre instituições de Estado, como se vê no diálogo entre militares e TSE?

As informações são diferentes porque algumas delas não são verdadeiras. A disparidade que você identifica, porém, não se dá entre instituições de Estado, mas sim entre alguns atores políticos e as instituições. Nesse diálogo em questão, o Ministério da Defesa enviou ao TSE uma série de perguntas e sugestões, não com informações, e o Tribunal respondeu. Muitos dos questionamentos se baseavam em pressupostos equivocados que, quando disseminados, parecem informações díspares, mas é só desinformação mesmo.

O descrédito no sistema tem impedido seu aperfeiçoamento, como o caso do voto a distância?

Não. O voto remoto é uma alternativa que vem sendo aventada muito antes dessas investidas para descreditar o sistema atual. Essa tecnologia ainda precisa ser muito discutida e testada antes de ser colocada em prática, principalmente porque qualquer mudança no processo eleitoral deve acontecer de forma gradual e transparente. Foi o que aconteceu com a própria urna eletrônica, mais de vinte anos atrás. O aperfeiçoamento do sistema eleitoral é um desafio permanente, não acredito que ele possa ser comprometido por essas tentativas de descrédito. Na verdade, há muitas questões para resolver no caso do voto remoto, antes da sua adoção, que, aí sim, são relevantes, como a garantia da confidencialidade, por exemplo. Mas é importante dizer que nem todo avanço tecnológico implica necessariamente um aperfeiçoamento do sistema.

“A urna eletrônica grava cada voto, permitindo que qualquer uma das entidades fiscalizadoras solicite acesso.”

O estabelecimento do voto impresso — como alguns atores têm sugerido — seria uma solução para esses questionamentos?

Não. É que os questionamentos se baseiam em equívocos e distorções, não em problemas reais. O voto impresso, pelo menos na versão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC 135/2019) que pretendia implantá-lo, na verdade apenas criava uma solução para um problema que não existe. Como já afirmei, não há qualquer evidência de fraude no sistema eleitoral brasileiro. A questão do voto auditável, por exemplo, é um falso problema, porque os boletins que as urnas emitem e são publicados em cada seção eleitoral no dia da votação já permitem a verificação do funcionamento do dispositivo e uma auditoria da totalização dos votos registrados. Nesse sentido, o voto impresso significa só a criação de novos custos e de problemas operacionais, sem trazer nenhum acréscimo à segurança do sistema.

Há ainda uma proposta para que as urnas emitam um documento eletrônico para cada voto emitido. Alguns críticos dizem que a medida já esvaziaria o tom de desconfiança. Como a senhora enxerga essa ideia?

É um ótimo recurso que já existe: o Registro Digital do Voto (RDV). Por meio dele, a urna eletrônica grava cada voto, permitindo que qualquer uma das entidades fiscalizadoras solicitem acesso.


O TSE chamou, pela primeira vez, a União Europeia para observar a eleição. Observadores internacionais robustos, como o bloco, ainda têm poder de aumentar a confiança no sistema?

Se estivermos falando da confiança desses atores, a resposta é sim. Observadores externos dão visibilidade internacional ao processo e, assim, reduzem incentivos à violação de regras e de direitos, por pessoas dentro do País. Os relatórios de avaliação que esses observadores vão produzir serão capazes de subsidiar as decisões de países e blocos quanto às relações com o Brasil depois da eleição. Mas se estivermos falando da confiança que eles entregam à opinião pública interna, não saberia dizer ao certo. Imagino que os eleitores, em geral, estejam pouco atentos a isso.


Qual tem sido o papel dos partidos políticos nesta conjuntura – levando em conta que essa é uma demanda levantada pelos militares?

Os partidos políticos são convidados sempre a fiscalizar todos os processos da gestão eleitoral, mas, sistematicamente, negligenciam esta responsabilidade. O papel deles tem sido medíocre. Por um lado, a omissão dos partidos provavelmente indica que eles não desconfiam da condução do processo pelo TSE – o que é um bom sinal. Por outro lado, porém, a defesa de uma competição eleitoral íntegra deveria ser reconhecida pelos partidos como uma necessidade estratégica, já que a sobrevivência deles, como competidores, depende justamente disso.

A participação do Exército no processo eleitoral, por meio da comissão de transparência, aliás, é legítima ou representa um sinal de fragilidade democrática?

Acredito que seja indiferente. O TSE instalou a Comissão da Transparência, para prover visibilidade ao processo, chamando representantes de diversas entidades, assim como as Forças Armadas. Sendo assim, não há problema que elas participem. A comissão não tem nenhum poder de decisão sobre o processo eleitoral, de forma que a presença desses órgãos da sociedade não atinge a autonomia nem a responsabilidade do Tribunal na condução da eleição. Por outro lado, é fato que o TSE precisou deslocar servidores especializados para produzir respostas às perguntas enviadas pelo Ministério da Defesa, sendo que elas já estavam disponíveis publicamente e poderiam ser encontradas com uma pesquisa simples. Nesse sentido, foi um custo desnecessário de tempo e de trabalho. Mas ainda assim, a transparência é tão fundamental que justifica por si só esse custo.

“Só se justifica desafiar o resultado de uma eleição em lugares onde existem evidências de fraude, o que não é, absolutamente, o caso do Brasil.”

Mas as Forças Armadas se disseram “desprestigiadas” com as respostas do TSE. Como a senhora viu essa postura?

A comissão não é para prestigiar ninguém, mas para dar visibilidade ao processo. Da mesma forma, a participação é para contribuir, não para obter reconhecimento. As sugestões de todos os membros são submetidas à análise do TSE, instituição legítima que vai decidir se as acata ou não. Além disso, se as Forças Armadas não estão sendo prestigiadas é porque não devem ser mesmo, especialmente porque o signatário das demandas é um ministro do governo, ou seja, um ator político com interesse no resultado da eleição. O TSE faz muito bem em mantê-lo no lugar em relação aos demais membros da comissão, ou seja, no de sugerir, não decidir.

Pesquisas apontam para uma desconfiança generalizada da população nas instituições democráticas — do Exército ao STF. Este contexto também contamina a percepção sobre o funcionamento eleitoral?

Dificilmente a percepção geral sobre o funcionamento eleitoral vai sair ilesa das campanhas de desinformação promovidas por políticos que contam – eles sim – com a confiança dos seus eleitores.

Até que ponto o resultado da eleição, em face de tudo isso, pode ser questionado? Se isso acontecer, o TSE tem força suficiente para bancar o resultado?

Se considerarmos força como legitimidade, o Tribunal tem, já que ele é o legítimo gestor da competição eleitoral e o responsável por diplomar os candidatos vitoriosos nas urnas. Só se justifica desafiar o resultado de uma eleição em lugares onde existem evidências de fraude, o que não é, absolutamente, o caso do Brasil. Da mesma forma, a estabilidade democrática depende da aceitação do resultado, até porque, ao fazerem isso, os atores políticos derrotados se credenciam como oposição legítima para o próximo ciclo eleitoral. É por isso que a ameaça de que isso não aconteça no Brasil neste ano é muito preocupante. Se acontecer, o TSE terá que contar com a força das demais instituições.

A senhora acredita que os questionamentos atuais terão impacto suficiente que faça o sistema passar por alguma mudança para as eleições de 2024?

Aposto que sim, porque é normal que o aprimoramento seja contínuo. Algumas das sugestões que o TSE recebeu ainda estão sendo analisadas e, por isso, só poderão ser adotadas, se aprovadas, nas próximas eleições.

Vinícius Mendes Divulgação
Vinícius Mendes Divulgação
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