entrevista

Imperativo moral da diversidade

14 de maio de 2024
H

Há dez anos, quando a psicóloga Margareth Goldenberg chegou às empresas para elaborar boas práticas de diversidade, encontrou um cenário muito próximo do inviável. Além de equipes formadas praticamente por homens brancos, as companhias eram reticentes à mudanças. “O assunto se restringia à liderança de RH”, conta. Hoje, nem tanto tempo depois, a situação é outra. “Brinco que saiu da gaveta do Recursos Humanos para a mesa do CEO.” A metáfora ilustra a mudança dimensional de assuntos sobre equidade, diversidade e inclusão de mulheres, negros, pessoas com deficiência ou LGBTQIA+, por exemplo.

O principal resultado do processo foi a criação do Movimento Mulher 360, uma organização sem fins lucrativos que funciona como “mobilizadora de CNPJs”, como Goldenberg gosta de dizer, e se dedica a levar o tema às empresas brasileiras. Gestora-executiva do projeto, ela admite que mudou totalmente a própria carreira. No fim do ano passado, durante o Ethos 360 — evento organizado pelo Instituto Ethos —, Margareth falou com a PB sobre o assunto.

Qual demanda deu origem ao movimento?

Nascemos da atuação que o Walmart [multinacional estadunidense de lojas de departamento que descontinuou as operações no Brasil em 2019] tinha, na época [em 2014], com a sua rede de stakeholders — grandes empresas como Nestlé, Johnson & Johnson e Coca-Cola, por exemplo —, sobre vários temas dessa ordem, como a desigualdade de gênero. Todas estavam debatendo o assunto nas matrizes internacionais, mas não tinham iniciativas semelhantes no País. Naqueles encontros, ficou clara a importância da existência de uma organização social independente que pudesse auxiliar essas empresas a identificar os desafios das mulheres brasileiras no mercado corporativo e, em paralelo, colaborar com o desenho de boas práticas. Foi quando a minha consultoria, a Goldenberg, ganhou a concorrência para atender esses negócios. Em 2014, fizemos um diagnóstico dos movimentos empresariais no Brasil, compreendendo como as empresas gostariam que atuássemos e, a partir do plano de trabalho elaborado ali, lançamos o Movimento Mulher 360, com oito fundadoras.

E como funciona hoje?

Temos uma equipe apenas ao redor do movimento. Foi uma exigência, já que passamos daquelas oito para 110 empresas. A atuação, porém, se manteve no esforço de apoiá-las a compreender as barreiras e os desafios das mulheres no mercado, independentemente de serem brancas, negras, com deficiência, trans, lésbicas e seniores, compreendendo quais políticas e práticas organizacionais podem ser desenvolvidas para que haja equidade de oportunidades. Vejo que aceleramos muito esse processo. Entendemos os problemas coletivamente e desenhamos inteligências coletivas para solucioná-los.

Você nota diferença na forma como a diversidade é encarada hoje nas empresas?

Sem dúvida. Há dez anos, era um tema de gestão de pessoas. Hoje, é um tema de gestão estratégica. Isto é, saiu da gavetinha da liderança de Recursos Humanos (RH) para figurar no centro da mesa dos CEOs. Dar oportunidades iguais para homens e mulheres qualificados é um imperativo moral. Mais do que isso, é um imperativo legal, porque a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem uma série de convenções indicando isso, que se desdobram em um arcabouço importante no Brasil, ainda em avanço, criminalizando injúria racial, homofobia, assédio etc. Contudo, o que tornou essa pauta tão central foi a comprovação de que as empresas que contam com times mais plurais e diversos e ambientes mais inclusivos e justos, além de oportunidades para todas e todos, têm diferenciais relevantes no mercado. Isso significa mais produtividade, lucratividade, inovação, colaboração, maior atração à marca empregadora, aumento da retenção de talentos, diminuição do turnover… Tudo isso ajudou muito. 

Isso tem acontecido no Brasil?

Sim. É um grupo de destaque, hoje, no País. As que estão mais avançadas no tema são, sem dúvida, as empresas globais de grande porte, cuja atuação veio das matrizes no exterior. Essa conversa é menos madura quando falamos com empresas familiares e nacionais, mas há bons cases também — tanto no sentido de tratar do assunto quanto no de investir nessa direção. Mas ainda há um enorme grupo de negócios, muitos pequenos e médios, e alguns grandes, para quem esse assunto é uma moda, um “mimimi” que vai passar. Não entendem que é um caminho sem volta. 

Por quê?

Porque o cliente exige isso quando vai comprar o seu produto e/ou serviço. Além disso, estamos falando de órgãos reguladores: a B3 e a CVM determinam pluralidade de perfis nos conselhos e diretorias. A própria sociedade está cobrando isso. Ou pelo amor, ou pela dor, ou pela inteligência, nós teremos de seguir esse caminho.

Ainda encontram aquela confusão entre diversidade, equidade e inclusão?

Depende do tamanho da empresa. As mais maduras, que já trabalham com o tema há mais de cinco anos, têm esses conceitos mais avançados. O desafio é pôr tudo em prática. Quando já sabemos todas as respostas sobre diversidade, equidade e inclusão, as perguntas mudam. É muito complexo. Um tema que tenho trabalhado fortemente nas empresas, hoje, é o engajamento de homens, pessoas brancas, heterossexuais, enfim, todos que estejam nas altas lideranças e não se sintam incluídos na conversa. Isso acontece porque a forma como esta foi conduzida inicialmente apenas excluiu quem não é mulher, quem não é negro, quem não tem deficiência etc. “Essa dor é do outro, não é minha.” Fica uma “conversinha de gueto”. As perguntas novas, então, são: como engajá-los? Como fazê-los entender que há uma potência, há resultados positivos para o negócio, quando se trabalha com inclusão e equidade?

E como fazer isso?

Não usando as ferramentas comuns das redes sociais, por exemplo. Tem de ser de outra forma. Nós precisamos engajar, ter empatia também por homens, por pessoas brancas, já que todos fazem parte dessa conversa. É o desafio atual do mundo corporativo. Mas, acima de tudo, diria que fazemos isso ouvindo. Ninguém é culpado pela discriminação. Não existe o culpado do racismo ou do machismo. Nós não podemos dividir o mundo em vítimas e culpados. No meu entendimento, não é questão de culpa, mas de responsabilidade coletiva. Nós, enquanto sociedade, deixamos que as coisas chegassem até aqui ao que chamo de fosso civilizatório. 

O que é isso?

A lacuna imensa na qual metade da população tem direitos de oportunidades, e a outra metade não. Em que estávamos pensando que não vimos isso acontecer? Acho que é porque somos reflexo de tudo o que aprendemos ao longo da vida. Estávamos moldados por estereótipos e vieses acumulados. Quando debatemos esse tema, iluminando o olhar, compreendendo que esse fosso existe, fica mais claro o quanto é necessária uma responsabilidade coletiva para diminuí-lo. Mas não é fazer isso por meio da culpa. Quando tiramos isso do jogo, o processo fica mais engajador. Ninguém quer ser culpado, mas é legal ser responsável pela transformação. É com isso que temos mudado a tônica do mundo corporativo.

Onde estamos ainda mais atrasados?

A questão racial no Brasil é muito desafiadora. Apesar de ser a maioria da população [56%, segundo o IBGE], a população negra é totalmente excluída dos processos de desenvolvimento do País. Só agora, com a lei das cotas e os seus reflexos, é que as coisas estão mudando, ainda repletas de estereótipos baseados em informações retrógradas. Uma delas, por exemplo, é que “não há negros qualificados no mercado” ou “não há negros nas universidades”. Escutamos muito isso. Daí, quando essas empresas abrem uma vaga e não aparece nenhum candidato negro, usam isso para justificar o estereótipo, retroalimentando essa inverdade e a transformando em mito. Esses negócios não notam que, na primeira linha do anúncio, há uma exigência de estudo nas melhores instituições de ensino do País, as quais ainda não têm tantos negros, como USP, FGV etc. É preciso adaptar os processos, fazer um recrutamento inclusivo e analisar se a marca empregadora é atraente. O problema é muito complexo, mas acaba sendo simplificado desse jeito. Essas barreiras, muitas vezes intangíveis e veladas, são o maior desafio.

É mais fácil falar de gênero?

É mais bem-aceito, mas depende: quando estamos falando de mulheres brancas, heterossexuais etc., tudo bem. Quando começamos a falar de negras, trans, lésbicas, aí já não é tanto. Precisamos de ferramentas melhores para quebrar essas barreiras.

Essa discussão está dentro da agenda ESG?

A diversidade, a equidade e a inclusão compõem o “S” da sigla. Quando olhamos para fora dos muros das empresas, tendemos a cair neste grande guarda-chuva da responsabilidade social e do investimento social privados; quando olhamos para dentro delas, estamos falando de diversidade, equidade e inclusão como temas centrais da agenda.

Esses temas estão, de fato, na agenda ESG das empresas?

Quando esses negócios fazem uma primeira leitura dos índices de materialidade, o tema sempre emerge. As empresas acabam sendo pressionadas internamente, por colaboradores e colaboradoras, ou mesmo pelos órgãos reguladores. Muitas tomam caminhos que não são ideais. É preciso avançar mais no walk, e não apenas no talk 

Vinícius Mendes UM BRASIL
Vinícius Mendes UM BRASIL
leia também