As vésperas da definição da eleição presidencial neste domingo (30), muitos analistas ainda se tentam resolver o quebra-cabeça dos resultados do primeiro turno – no qual, ao contrário da maioria dos diagnósticos que fizeram, o atual presidente, Jair Bolsonaro, não só conseguiu eleger a maioria dos seus apadrinhados como também demostrou uma força política robusta nas urnas, mesmo depois das crises da sua gestão.
Os fios seguem soltos. De um lado, Lula (PT) conseguiu trazer para o seu lado os dois candidatos derrotados no pleito – Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) –, além de reforçar a base com antigos adversários do PSDB, sobretudo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. De outro, Bolsonaro consolidou a posição em regiões onde historicamente tem mais votos, como o interior de São Paulo. E ainda conta com apoios políticos fundamentais, como a do governador reeleito de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo).
Este contexto não é tão novo para a cientista política Mariana Borges, que estuda campanhas eleitorais no Nuffield College, da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Para ela, embora as camadas mais pobres da população sejam, de fato, sensíveis ao discurso lulista, é na classe média baixa brasileira – entre dois e cinco salários mínimos de renda – que o bolsonarismo se enraizou com força. Esta fatia do eleitorado pegou para si a narrativa anticorrupção e, ao mesmo tempo, se tornou objeto de uma espécie de inclusão política (pela via da direita) – manobra que o lulismo não conseguiu realizar.
“Bolsonaro popularizou a política entre esta camada que não se sentia identificada, os mais pobres, com os programas sociais destinados a eles e, ao mesmo tempo, estava distante da direita tradicional, intelectual e acadêmica de São Paulo”, explica Mariana, em entrevista à PB.
A forma como eleitores pobres votam não é tão diferente de outras camadas de renda. Alguns se baseiam na economia; outros, no bem-estar pessoal; ou, ainda, em uma identidade, seja religiosa, seja de outro tipo. O fato é que há uma heterogeneidade que nos impede de dizer que os mais pobres votam só com o bolso. As pesquisas de intenção de voto agora mostram, por exemplo, que Lula tem uma diferença de quase 30 pontos na faixa de renda de até dois salários mínimos, o que se explica pelo fato de ele ter conseguido criar uma imagem de político preocupado com a pobreza. Recentemente, fiz uma pesquisa perguntando aos eleitores desses estratos quais características eles associavam a Lula e a Bolsonaro. No caso do presidente, um dos principais apontamentos foi de que ele é “desatento ao povo” – uma menção feita por cerca de 54% dos entrevistados. No caso de Lula, a lembrança negativa mais comum foi de “político corrupto”. Isso mostra como, apesar desta pecha da corrupção, os programas sociais que ele implementou, durante os governos, fizeram diferença na vida dos mais pobres. Bolsonaro não tem quase nenhum programa para mostrar além do Auxílio Brasil e do benefício emergencial durante a pandemia. No entanto, se políticas de transferência de renda determinassem, sozinhas, o voto dos mais pobres, Bolsonaro deveria estar muito à frente nas pesquisas – já que o valor do Auxílio Brasil é muito maior do que era o Bolsa Família.
Eles sabem que foi uma iniciativa isolada, que não foi acompanhada de outras políticas que impactam o cotidiano. Na verdade, o aumento do valor do pagamento durante o período eleitoral tem, para os mais pobres, o efeito de expressar claramente uma tentativa de manipulação do voto. Jogar dinheiro para os mais pobres pode ter algum efeito eleitoral, e é até uma forma de demonstrar força política, mas não define o resultado. É aí que está o engano de Bolsonaro. Quando ele adianta o pagamento da última parcela do Auxílio Emergencial para dias antes do segundo turno, por exemplo, fortalece, entre os eleitores pobres, a visão de que está tentando manipulá-los.
Nem todo eleitor se define por sua posição de classe. Isso é central. Há muitas identidades em jogo. No Brasil, muitos dos eleitores mais pobres são evangélicos e colocam este pertencimento religioso como o fator mais relevante na urna. Neste sentido, muitos podem considerar que Bolsonaro não olhe para a pobreza, mas também entendem que um eventual governo do PT é ainda mais amedrontador. Há pesquisas recentes que mostram que essas pessoas dizem que preferem passar fome a “perder os filhos para as drogas”, por exemplo – em uma associação com uma suposta política de liberação das drogas de um [eventual] novo governo petista. Sem contar que, entre esses estratos, há diferenças significativas para pessoas cuja renda fica na faixa entre dois e cinco salário -mínimos. É uma classe média baixa que não se entende como tão pobre. Nela, é ainda mais forte a tendência de não votar com base em políticas para a pobreza, porque é um grupo muito influenciado pelos setores mais ricos da sociedade – até por vontade de se distanciar dos mais pobres em termos de identidade política e de experiência.
Foi o impacto identitário dessa classe média baixa. Muitas coisas que o presidente fala tem diálogo com a experiência desta parcela da população. A [antropóloga]Rosana Pinheiro-Machado costuma apontar o fenômeno da “uberização” do capitalismo, no qual estes setores são mais sensíveis à ideia liberal de que, se você trabalhar, você consegue ascender socialmente. Essas pessoas também notam – e não deixa de ser uma verdade – que os governos Lula olharam muito mais para a parcela mais pobre do País, enquanto essa classe média não se beneficiou da mesma forma. Este recorte de brasileiros quer ter a mesma vida que os mais ricos, mas não conseguem chegar lá. Além disso, na alçada de Bolsonaro, essas pessoas são as protagonistas da política – o que não acontece na esquerda. O presidente estrutura suas mensagens via redes sociais, permitindo a esses setores se sentirem participantes das decisões, do fazer política. Bolsonaro popularizou a política entre essa camada que não se sentia identificada com os mais pobres, com os programas sociais destinados a eles e, ao mesmo tempo, estava distante da direita tradicional, intelectual e acadêmica de São Paulo. Quando se está em grupos bolsonaristas, a sensação é que as informações estão chegando por pessoas idênticas aos demais que estão ali. Isso faz com que eles se percebam como agentes da política. O próprio Bolsonaro cria uma imagem de pessoa comum que faz política como as pessoas que estão nesses grupos fariam. Tudo isso faz a força do bolsonarismo e, mais do que isso, sugere que ele permanecerá para muito além de Bolsonaro.
Há uma diversidade entre os estratos populares. No caso dessa classe média baixa, são pessoas influenciadas por setores superiores e onde há uma maior aderência ao discurso anticorrupção. Este é outro fator importante, desde 2018, para todas as classes sociais – e que está presente na narrativa de Bolsonaro: a descrença na política. Isso é premente entre os eleitores mais pobres também. Mesmo com vários escândalos de corrupção ao longo deste governo, a campanha eleitoral de Bolsonaro teve sucesso em reativar memórias negativas [do adversário]. No limite, ele fez apenas três movimentos: levantou uma agenda moral que atinge em cheio os evangélicos pobres, voltou fortemente ao tema da corrupção – algo muito simples para ele, já que bastava alçar a condenação de Lula – e ainda mostrou força política. No caso do ex-presidente, a mensagem negativa ficou mais dispersa. Sua agenda moral foi chamar seu oponente de genocida, fascista, racista, homofóbico, e não focar em mensagens mais simples que ressoam entre os mais pobres.
Que o antibolsonarismo é muito mais difícil de ser definido do que o antipetismo, que é muito simples por ser concentrado na corrupção. Ninguém quer ser uma pessoa corrupta, todo mundo quer ser moralmente bom, então, é um discurso que ecoa na população pobre. O efeito foi a queda na rejeição a Bolsonaro e no aumento dela em relação a Lula.
O bolsonarismo está enraizado na faixa de renda de dois a cinco salários mínimos. Isto é, não é entre os mais pobres, que têm renda abaixo de dois salários. O resto é elite cultural, que tem algum poder de influência. A eleição para o Congresso mostrou, por exemplo, que existem milhões de potenciais novos Bolsonaros. É interessante notar que o presidente não é um líder excepcional: sua excepcionalidade está no fato de ele representar uma imensa parcela do eleitorado que estava desengajada da política. É por isso que figuras como [o deputado mais votado do Brasil] Nicolas Ferreira (PL-MG), [a deputada reeleita] Carla Zambelli (PSC-SP) ou [a candidata a senadora não eleita] Raissa Soares (PL-BA) podem ser os novos líderes deste fenômeno no futuro. Eles procuram representar essa classe média baixa que quer levar certa sabedoria popular ao governo. Explica-se, aí, a dificuldade em ter ciência neste tipo de administração, já que ela não traz soluções simples. Ao contrário, tende a nuançar os problemas, afastando as pessoas mais simples da política.
Para a parcela da população que entende que Lula olhou para a pobreza quando foi presidente – e que usa esta percepção como critério definitivo na hora do voto –, talvez não tenha impactado tanto. O impacto maior foi entre os estratos que, como mencionei, se sentiam desencantados com a política por causa da corrupção. Todo mundo que experimentou esse sentimento foi abarcado pela trajetória da Lava Jato – que, por sua vez, foi extremamente importante em marcar PT e Lula como símbolos da corrupção. É por isso que o antipetismo é tão arraigado. Eu costumo ler esse fenômeno até mais como um “antipartido”, porque se trata de um desencantamento que se traduz na crítica aos partidos, à ideia de que eles são sempre sujos e corruptos. E o único partido que tem enraizamento no Brasil é o PT. Assim, embora outros tenham entrado nas investigações da Lava Jato, o partido que tem uma marca no País, de fato, foi o que se transformou no vilão. É uma associação muito forte e difícil de ser reconstruída agora. Talvez seja por isso também que Bolsonaro nunca consiga erguer o próprio partido. Se for assim, é uma boa notícia, já que os estudos sobre erosão da democracia em países como Turquia e Hungria mostram como esse processo passou pela capacidade de líderes autoritários construírem partidos fortes.
Não sei o que sobrou. Lula fala muito bem para a parcela que passa fome. No entanto, não há um discurso à esquerda, ou mesmo dentro do lulismo, para o universo de pessoas que até está com dificuldades financeiras, mas que não querem ser vistas como “gente que passa fome”. No meu trabalho de campo, no interior da Bahia, muita gente dessa classe média baixa me dizia, inclusive, que os mais pobres não gostavam deles, pois têm “um pouco de dinheiro”. Ainda que saibam que não são elite, e até se vejam como classes populares, fazem questão de marcar esta diferença – e é aí que o lulismo ainda pode permanecer como um discurso antielite, embora o bolsonarismo também ofereça isso. No geral, Lula e a esquerda não conversam com esses estratos. Quando ele fala sobre as pessoas que estão passando fome, ele não está mencionando este contingente popular de quem está batalhando para pagar as contas, que quer ter direito a um tempo de lazer etc.
A direita tradicional achou que tinha apelo popular. Era algo deslocado da realidade. Agora, não há mais espaço para esta centro-direita, porque a popularização da política por esta via é pela extrema direita. A terceira via tradicional, de centro-direita, falhou em notar que o bolsonarismo é uma força popular enraizada e solidificada que não deixa espaço para mais ninguém. No caso de Sergio Moro, a questão é ainda mais interessante. Note que há uma lealdade significativa dos bolsonaristas com o presidente, que se vê até pelas urnas, já que todos os antigos aliados que se tornaram críticos de Bolsonaro perderam (feio) nas eleições. Quem nunca o criticou foi eleito. O que isso diz? Que o bolsonarismo não tolera críticas internas. São os casos da [candidata derrotada ao Senado por São Paulo] Janaina Paschoal, da [ex-deputada] Joice Hasselmann e da [também ex-deputada] Dayane Pimentel, por exemplo. Moro entra no mesmo grupo, embora tenha conseguido se eleger senador e, não à toa, já voltou para dentro do bolsonarismo. O que é preciso entender melhor é o valor desta lealdade.
É um fenômeno global que chamamos de “clientelismo do mercado de trabalho” – o pior que existe. O clientelismo de massa, como existe no Brasil, se configura pela distribuição de dinheiro ou de favores para eleitores ou cabos eleitorais. É uma ostentação de recursos materiais. Não é uma compra de voto definitiva, porque não há punição: quem paga tem a esperança de que a pessoa vote nela. Uma pesquisa recente que fiz mostra, por exemplo, que um terço dos brasileiros ainda usa políticos próximos para pedir favores pessoais ou recursos, como empregos. Isso é resultado de uma relação em que, primeiro, o eleitor ajuda o candidato que pagou pelo voto e, depois, ele se sente no direito de requisitar algum tipo de retorno. De qualquer forma, não há controle sobre o voto, mas apenas a simbolização de uma força política. Esse fenômeno é diferente do clientelismo do mercado de trabalho, que está acontecendo agora, este, sim, muito parecido com o coronelismo e com o voto de cabresto.
Porque as pessoas não dependem do dinheiro ou do favor que o candidato faz durante a eleição para viver, mas precisam, sim, do seu trabalho. Quando há uma ameaça desta ordem, envolvendo a segurança do emprego, estamos falando de outra coisa muito mais relevante para a vida de cada um. É um fenômeno muito presente no contexto dos Estados Unidos, em que empresas exigem um determinado posicionamento ideológico dos seus colaboradores. É coação, e, por isso mesmo, deveria ser considerado crime. Há até muitos casos sem notificação, pensando principalmente no caso de empregadas domésticas, cuja situação é mais vulnerável: trabalham sozinhas em ambientes privados. É a Idade Média da Idade Média.
Parto do pressuposto que não. O que faz diferença é o tamanho desta parcela dentro de cada região. No Nordeste, ela é muito mais significativa do que no Sul, por exemplo. Mas não há, por outro lado, representações políticas regionais muito distintas, o que significa dizer que existe político clientelista e do “Centrão” em todas as regiões. O voto mobilizado via clientelismo é espalhado pelo País. Esta leitura é até preconceituosa, porque parte da elite que forma a opinião pública brasileira e que vê o interior do Brasil como um lugar exótico, quando, na verdade, é preciso entender esse interior como uma região que produz todo o tipo de movimento político.