entrevista

Jaqueline Goes de Jesus

10 de agosto de 2020
A

A biomédica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo – Universidade de São Paulo (IMT-USP), Jaqueline Goes de Jesus, ficou conhecida por ter liderado a equipe que, em fevereiro, fez em 48 horas o sequenciamento do genoma do novo coronavírus (covid-19). O trabalho, feito em conjunto com o Instituto Adolfo Lutz, contou com a participação da pesquisadora Ester Sabino, diretora do IMT-USP.

Por que o sequenciamento do genoma do novo coronavírus é importante?

Para entender as mutações pelas quais o vírus passou. Na comparação com cepas (tipos) de outros países, conseguimos traçar um histórico. Nosso trabalho revelou que o vírus que chegou em território nacional era semelhante ao sequenciado na Alemanha e na Inglaterra, mas bem diferente das cepas encontradas na China. Como sabíamos que veio ao Brasil por meio de um paciente infectado na Itália, trocamos informações com pesquisadores italianos, pois naquele momento o país ainda não tinha o sequenciamento completo, como obtivemos aqui.

“A população brasileira não conhece a ciência produzida aqui.”

Tudo foi executado no tempo recorde de 48 horas, enquanto a média mundial para esse tipo de trabalho é 15 dias. Como foi possível?

Uma série de fatores ajudou. Somos um dos pioneiros na utilização do método de análise que usa a tecnologia de sequenciamento conhecida como MinION, criada pelo Medical Research Centers, do Reino Unido, centro que desenvolve técnicas para monitorar epidemias em tempo real. Foi feito sob medida para a nossa equipe, que o usou desde 2016 para traçar a trajetória da disseminação do vírus da zika. Os protocolos são parecidos, então nosso time, que é excelente, os adaptou para o coronavírus, e fizemos a análise.  E as tais 48 horas, tão noticiadas e comentadas, acabaram virando piada interna no laboratório. Porque normalmente conseguimos fazer em menos tempo. Na verdade, nesse caso sequenciamos em 24 horas. Apenas quisemos repetir os testes, por segurança, porque o primeiro tinha apenas 76% de cobertura. E fizemos questão de que fosse 100% completo. Assim, publicamos o resultado em dois dias.

O trabalho pode contribuir para a criação da vacina?

Existe uma longa distância entre sequenciar o genoma e criar a vacina. Mas o sequenciamento ajuda como informação, para decifrar a resposta imune da proteína usada para entrar na célula humana. O que a vacina faz, basicamente, é estimular o organismo a criar anticorpos contra o vírus. Ao construir o mapa das mutações, nosso estudo poderá auxiliar na compreensão do comportamento do covid-19, o que é essencial para combatê-lo.  Embora nossa linha de pesquisa principal seja sobre arbovírus, principalmente aqueles hospedados em mosquitos (que dão origem a doenças como febre amarela, chicungunha, dengue e zika), nesse momento redirecionamos esforços ao sequenciamento do covid-19. Acabamos de analisar mais de 250 genomas de coronavírus. E muito em breve vamos publicar as conclusões em uma revista científica.

Nos últimos meses, ocorreram diversos cortes de orçamento na área científica. Como está a situação na sua área?

Felizmente, na minha área específica, que conta com financiamento estadual da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), não tivemos cortes. Mas quem depende de financiamento federal está sofrendo muito. A Capes [agência governamental de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] cortou neste ano e no anterior mais de 50% das bolsas. Em geral, aliás, a vida do pesquisador não é fácil no Brasil. Não existe oficialmente a profissão de cientista, não temos carteira assinada, vínculo empregatício ou qualquer benefício. Apenas recebemos uma bolsa por certo tempo – dois anos, em média. Uma bolsa de mestrado paga R$ 1,5 mil por mês; a de doutorado, R$ 2,2 mil. E exigem dedicação integral. Quando acaba, você está desempregado.

Hoje, como bolsista de pós-doutorado, sou considerada uma jovem pesquisadora e a situação melhorou um pouco. Mas a ciência não se faz do dia para a noite. Tenho 30 anos. Comecei aos 19. E passei por maus bocados. Além de toda a dificuldade, há na academia orientadores autoritários, que fazem assédio moral. Passei por diversos episódios. Sofri com situações de estresse, racismo velado, preconceito por ser mulher, negra e nordestina. Guardo comigo relatos que dariam cadeia… mas como você faz? Vai denunciar quem é o responsável pelo seu recurso financeiro, correndo o risco de ter sua pesquisa interrompida e até cancelada? Não, apenas segue em frente. Por amor à ciência.

“Epidemias paralelas ao coronavírus podem estar ocorrendo no Brasil, como a de dengue.”

Qual seria um modelo melhor?

Em países como Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, quando você está na fase de doutorado, já é considerado funcionário do instituto no qual pesquisa. Tem salário, férias. E não se trata apenas de garantia financeira. Em grande parte dos países lá fora há mais valorização da ciência. Comparando com a minha experiência de pesquisadora na Inglaterra, por exemplo: quando lá acabava um reagente (componente fundamental) eu descia ao depósito, localizado no subsolo do mesmo prédio, e imediatamente retirava outros frascos, para continuar a pesquisa. Aqui no Brasil, se falta uma enzina, temos de esperar 45 dias para recebê-la. Uma remessa chega a ficar tanto tempo presa na alfândega, que o gelo seco que a mantém na temperatura certa evapora. Sem refrigeração, o produto perde a eficiência. Isso acontece muito frequentemente. São questões logísticas nas quais o Brasil ainda está muito atrás.

Precisamos de mudanças na legislação. O então deputado federal Romário, em 2015, chegou a propor uma lei para reduzir ou eliminar impostos sobre produtos médicos e laboratoriais e facilitar a entrada desses itens no País em relação à questão alfandegária. Não vingou o projeto, porque não era de interesse da maioria dos deputados.

Qual a sua maior preocupação no momento?

Com as epidemias paralelas ao coronavírus que podem estar ocorrendo no Brasil, como a de dengue. Sabemos que todo ano, principalmente de dezembro a fevereiro, há aumento significativo nos casos. Como os laboratórios que tradicionalmente fazem testes para essa doença estão ocupados testando o covid-19, a dengue passa a ser subnotificada. Não temos dados. Esse vácuo vai impactar estatísticas e políticas de saúde. Entendo que nesse momento temos questões mais urgentes para resolver. Estamos sofrendo com falta de máscaras, respiradores e equipamentos para combater o coronavírus. Não tem para onde correr. Sem saúde você não consegue movimentar a economia. Nosso chefe de Estado, que despreza a ciência, agora está brincando com o Brasil. Como brasileiros, temos que seguir cobrando atitudes sensatas e melhores condições para todos.

Como cientista, você tem enxergado mudanças na maneira como as pessoas encaram a ciência, em razão da pandemia?

Fora a valorização dos profissionais de saúde, não [vejo] muitas mudanças. A população brasileira não conhece a ciência produzida aqui. Eu trabalho com isso há dez anos… Publiquei 50 sequências inéditas referentes à febre amarela, que ninguém no mundo fez igual. E só fiquei conhecida por sequenciar duas moleculazinhas de RNA. Mas continuo com os meus dois pés no chão. Sou cientista, não sou nenhuma famosa. Sei exatamente o que está acontecendo. O que fiz é importante, mas em termos de inovação não trouxe quase nada.

Você tem planos para o futuro?

A pandemia causada pelo coronavírus alterou todas as rotinas. Nosso grupo é composto por 15 pesquisadores. Atualmente somos apenas seis pessoas frequentando o laboratório. Quem tem família está em isolamento domiciliar. Não temos qualquer contato uns com os outros, mesmo os assintomáticos. Não vamos para nenhum outro lugar que não seja o laboratório ou a nossa própria casa. Nosso trajeto é controlado. Assim, meus planos se resumem a continuar trabalhando, até termos um alívio na pandemia.

Lúcia Helena de Camargo Arquivo Pessoal
Lúcia Helena de Camargo Arquivo Pessoal