entrevista

Lucília Guerra

11 de dezembro de 2021
F

Ferramentas de inovação digital frequentemente são apontadas como aliadas para melhorar a qualidade do ensino profissional. No Brasil, porém, o grande impasse é o acesso. Assim considera Lucília Guerra, diretora do Centro de Capacitação Técnica, Pedagógica e de Gestão do Centro Paula Souza (CPS), de São Paulo. O CPS, presente em 336 municípios, administra 223 Escolas Técnicas (Etecs) e 73 Faculdades de Tecnologia (Fatecs) estaduais. “As pessoas, em vários Estados brasileiros, ainda não têm equipamentos, nem acesso à rede. Não é digno propor uma revolução educacional com uso de ferramentas tecnológicas sem que o acesso das pessoas seja garantido.”

É o que ela chama, na entrevista a seguir, de “indigência tecnológica para atividades comuns do cotidiano”. “Estudar ou ensinar por esta via é um desafio ainda maior. É muito importante que a educação se reinvente e se adeque, enquanto as conexões das pessoas com as tecnologias acontecem”, critica Lucília. O exame da diretora vai ao encontro dos fatos: o índice de competitividade publicado pelo Fórum Econômico Mundial aponta que, quando se trata das competências digitais necessárias ao trabalho, o Brasil ocupa o 133º lugar, em meio a 140 países. Soma-se a isso que, de acordo com estimativas da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), 14% dos trabalhos podem ser totalmente impactados pela tecnologia nos próximos anos, sendo que um adicional de 32% dos empregos pode sofrer mudanças significativas devido à automação.

Lucília observa, ainda, que uma adequação das estratégias pedagógicas também se faz necessária, pois os estudantes precisam ter abordagem experiencial, viabilizando seu protagonismo de forma essencialmente prática. “Em muitos casos, não acontecem as inovações para que a EPT seja qualificada e adequada aos objetivos e às aspirações dos estudantes e dos empregadores, porque há ainda um grande engessamento nos planos escolares.”

O CPS responde por 10% da certificação em formação profissional do Brasil e, em alguns eixos tecnológicos, se coloca como o maior ofertante do País. A diretora aponta que “a EPT, desde a formação de nível médio até a formação superior tecnológica, garante oportunidades reais de melhoria de desempenho profissional e de relevantes avanços quanto à carreira, nos aspectos técnico e do desenvolvimento socioemocional.” Acompanhe.

“Em muitos casos, não acontecem as inovações para que a EPT seja qualificada e adequada aos objetivos e às aspirações dos estudantes e dos empregadores, porque há ainda um grande engessamento nos planos escolares.”

Gostaria que começasse detalhando a operação das Etecs e Fatecs no Estado de São Paulo: cursos oferecidos, resultados recentes em índice de avaliação e níveis de empregabilidade dos alunos egressos do Centro Paula Souza (CPS).

O CPS é uma autarquia do governo do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Presente em 336 municípios, a instituição administra 223 Escolas Técnicas (Etecs) e 73 Faculdades de Tecnologia (Fatecs) estaduais, com mais de 300 mil alunos em cursos técnicos de nível médio e superior tecnológico.Nas Etecs, mais de 212 mil estudantes estão matriculados nos ensinos médio, técnico integrado ao médio e técnico, incluindo habilitações nas modalidades presencial, semipresencial, online, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e especialização técnica.Já as Fatecs atendem a mais de 89 mil alunos matriculados em 84 cursos de graduação tecnológica, em diversas áreas, como Construção Civil, Mecânica, Informática, Tecnologia da Informação, Turismo, entre outras, e têm uma carga horária de 2.400 horas, com três anos de duração. A oferta institucional das Fatecs está distribuída em 67 municípios paulistas.

Além da graduação, o CPS oferece cursos de pós-graduação, atualização tecnológica e extensão. A empregabilidade dos alunos egressos das Faculdades de Tecnologia (Fatecs) do Estado de São Paulo é de 89%. Já entre as Escolas Técnicas Estaduais (Etecs), o índice é de 72%. Uma pesquisa realizada em 2019, com egressos de 2017, mostra a manutenção do patamar dos levantamentos anteriores da instituição. As unidades mantêm 192 cursos técnicos (103 cursos técnicos presenciais, cinco cursos técnicos semipresenciais, sete cursos técnicos online, três cursos técnicos na modalidade aberta, 33 cursos técnicos integrados ao Ensino Médio, 31 cursos do Novotec Integrado, quatro cursos na Articulação da Formação Profissional Média e Superior (AMS) e seis cursos técnicos integrados ao Ensino Médio na modalidade EJA). As Etecs oferecem cursos voltados a todos os setores produtivos, públicos e privados, e oferecem também 20 opções de cursos de especialização técnica. Nem todos os cursos são oferecidos ao mesmo tempo, alguns não estão em todos os semestres, portanto, o que está disponível no site, é a indicação para o semestre.

Qual é a sua percepção do modelo de ensino técnico, tecnológico e profissionalizante adotado atualmente no Brasil? Há aspectos que poderiam ser melhorados ou revistos?

O modelo de Educação Profissional Tecnológica – EPT adotado no Brasil atende ao disposto na LDB, que demonstra uma grande flexibilidade e possibilidades para a formação profissional. Entretanto, toda a versatilidade permitida pela legislação não encontra consonância na oferta de EPT, em função da estagnação da aplicação pelas redes.É importante uma articulação proativa com o setor produtivo, para que este possa apoiar os ofertantes de EPT, desde a elaboração dos currículos, que devem atender às demandas dos empregadores e dos arranjos produtivos locais, até o acompanhamento do percurso dos estudantes numa consultoria atenta e disponível. Este relacionamento deve ser consolidado com a possibilidade de visitas técnicas, estágios e apoio durante a formação dos estudantes, além, obviamente, de ampliar as possibilidades de empregabilidade.

O grande desafio, em função de ser muito trabalhoso, é manter esta parceria ativa e o interesse e comprometimento dos empregadores. Por sua vez, deveria haver mais incentivos fiscais e mudança de cultura para que as empresas buscassem apoiar a educação. Todo este relacionamento garante que a mão de obra seja qualificada, do ponto de vista técnico, e alinhada ao mercado de maneira atualizada. A adequação das estratégias pedagógicas também se faz necessária, pois os estudantes precisam ter abordagem experiencial, de forma essencialmente prática, viabilizando seu protagonismo.

A LDB não é limitante em nenhum desses aspectos, mas, em muitos casos, não acontecem as inovações para que a EPT seja qualificada e adequada aos objetivos e aspirações dos estudantes e empregadores, porque há ainda um grande engessamento nos planos escolares. A empatia com a realidade, as necessidades dos estudantes e a observação das transformações do mercado, para o correto alinhamento desses fatores, são muito importantes e urgentes. É preciso ter ousadia e atitude articulada para que a EPT esteja à altura dos desafios impostos pela contemporaneidade.

Com base nos dados mais recentes do Inep (1,9 milhão de matriculados), você enxerga positivamente o status dos números da educação profissionalizante no ensino médio?

Parece um número expressivo, mas está muito aquém da necessidade de evolução para dar suporte ao desenvolvimento econômico do País.O Centro Paula Souza responde por 10% da certificação em formação profissional brasileira, considerando que é uma instituição estadual de educação pública, entendemos que este resultado é de grande relevância. Em alguns eixos tecnológicos, o Centro Paula Souza se coloca como o maior ofertante do País. Qualquer avanço deve ser comemorado, pois, em educação, as conquistas, mesmo que pequenas, são indispensáveis e nos conduzem a patamares melhores. Entretanto, não há espaço ou tempo para descansar. Há muito a fazer.

“É muito importante que a educação se reinvente e se adeque, enquanto as conexões das pessoas com as tecnologias acontecem.”

O que é preciso fazer para o Brasil aumentar seu foco na ampliação da adesão à formação técnica no ensino médio, algo tão importante para melhorar os índices de qualificação de mão de obra?

Há questões culturais que impedem que a EPT seja de fato um objetivo para os jovens e os adultos. A EPT é tida ainda como uma formação subalterna em relação às graduações, aos bacharelados. A educação universitária ainda é vista, por uma parcela significativa da população, como o único caminho de formação possível para melhorar as possibilidades de emprego ou de progressão de carreira.A EPT, desde a formação de nível médio até a formação superior tecnológica, oferece oportunidades reais de melhoria de desempenho profissional e de relevantes avanços quanto à carreira, nos aspectos técnico e do desenvolvimento socioemocional. A característica essencialmente prática da formação técnico-tecnológica garante aos formados um perfil absolutamente diferente daquele observado nos egressos da universidade.

Não se deve fazer juízo de valor sobre qual é melhor, mas entender que a EPT deve ter seu lugar assegurado como uma possibilidade concreta de mobilidade sociocultural e profissional para todos os que desejam ampliar seus horizontes. Além de derrubar a barreira cultural, é preciso o comprometimento das empresas, para apoiar pessoas em formação e instituições ofertantes com a abertura de suas propostas de melhoria de cursos, além das oportunidades de práticas nos ambientes produtivos. As instituições ofertantes precisam também fazer seu exercício e adaptar currículos e modelos pedagógicos para conferir atualidade e dinamismo, itens altamente desejáveis para assegurar a formação de profissionais com perfis competitivos em relação ao mercado.

É preciso uma maior compreensão acerca das possibilidades que a EPT pode trazer para a vida do indivíduo. Com a informação devida, as pessoas podem buscar a formação profissional com a confiança do futuro que esta pode assegurar.Por muito tempo, historicamente, a formação para os ofícios era destinada a famílias de baixa renda e sem pretensões de avanço na escolaridade. Com o desenvolvimento do País, as mudanças sociais, a necessidade de novas profissões e a qualificação para os cenários que foram mudando, foi sendo estabelecida uma outra relação com a EPT, pois tornou-se muito importante que a profissionalização das pessoas acontecesse de forma crescente. A EPT é uma etapa de formação, uma possibilidade, não sendo limitadora para nível social ou pretensões profissionais. Falta conhecimento sobre EPT na sociedade, e ainda existem resquícios de tempos distantes, sem sintonia com o atual momento do País e os contextos internacionais.

“As pessoas, em vários Estados brasileiros, ainda não têm equipamentos, nem acesso à rede. Não é digno propor uma revolução educacional com uso de ferramentas tecnológicas sem que o acesso das pessoas seja garantido.”

O que falta para se firmar uma proximidade mais sólida com o setor empresarial, como se dá nos modelos elogiados e seguidos por referências mundiais, como Alemanha e Reino Unido?

Os modelos europeus apresentam uma estrutura distante do que no Brasil se pratica. Há modelos experimentais, inclusive no Centro Paula Souza, que aproximam as empresas e criam vínculos e responsabilidades compartilhadas e solidárias muito interessantes.A distância entre as empresas e a educação é muito grande, pois as empresas não recebem incentivos fiscais ou de qualquer outra ordem para se envolver de forma direta com os processos educacionais. Há, inclusive, algumas questões de âmbito trabalhista, que colocam em alerta as empresas para a questão de como abrigar fisicamente estudantes em suas instalações, conferindo a estas responsabilidades civis, o que desestimula uma ampliação do comprometimento das empresas desta forma.

Por outro lado, as instituições educacionais ofertantes precisam insistir nesta aproximação, para atualizar sua visão dos eixos tecnológicos explorados, aferir necessidades e avalizar, com as empresas e os empregadores, que a formação oferecida, de fato, esteja adequada às necessidades expressas por estes. As políticas públicas para oferta de educação profissional precisam ser incrementadas, indicando às empresas programas de empregabilidade para pessoas que tenham certificação técnica e tecnológica, não no modelo de cotas, mas evidenciando o ganho que podem ter ao contratar mão de obra qualificada por estes caminhos.

Não é preciso seguir o modelo europeu para conquistar melhores resultados, mas é preciso criar políticas de oferta e empregabilidade que façam sentido para escolas e empresas, e ainda mais significado para pessoas que querem melhorar sua qualidade de vida. A exemplo disto, o Centro Paula Souza disponibiliza uma nova modalidade, a Articulação da Formação Profissional Média e Superior (AMS), que articula com a empresa uma parceria de formação. A AMS, do Centro Paula Souza, dá ao estudante a oportunidade de completar, em cinco anos, os ensinos médio, técnico e superior tecnológico (são necessários seis anos para cursá-los separadamente). Ao concluir o ciclo de três anos na Etec, o aluno poderá cursar o ensino superior tecnológico em mais dois anos na Fatec correspondente, sem necessidade de vestibular.

No primeiro semestre de 2019, quando as três primeiras turmas foram implantadas, eram 120 vagas. Inspirada no modelo educacional P-tech, a iniciativa fomenta o desenvolvimento de competências profissionais ligadas à ciência, à tecnologia, à engenharia e à matemática. Além disso, prepara estudantes para a economia digital, combinando o conteúdo teórico da formação profissional a experiências práticas dentro de empresas. As primeiras turmas foram implantadas em parceria com a IBM, em Americana e na capital paulista, e com a Volkswagen, em São Caetano do Sul. O ingresso ocorreu pelo Ensino Médio com Habilitação Técnica Profissional em Desenvolvimento de Sistemas, que, além das três mil horas regulares do curso, tem mais 200 horas de atividades práticas dentro das empresas parceiras.

No vestibulinho para o primeiro semestre de 2021, foram destinadas 1.071 vagas para a AMS. O ingresso ocorreu pelo Ensino Médio com Habilitação Técnica Profissional em um destes quatro cursos: Administração, Desenvolvimento de Sistemas, Logística e Química. As vagas foram distribuídas pelos seguintes municípios: São Paulo (Ipiranga), Carapicuíba, Garça, Itatiba, Itu, Jales, Lins, Mococa, Mogi Mirim, Ourinhos, Piracicaba, Presidente Prudente, Santos, São Carlos, São Sebastião, Sorocaba, Taquaritinga e Tatuí.

Poderia falar sobre o papel das ferramentas de inovação digital aliadas para melhorar a qualidade e o acesso do ensino profissional no País? É claro, considerando os entraves econômicos e estruturais.

O grande impasse, por incrível que ainda possa parecer, é o acesso. As pessoas, em vários Estados brasileiros ainda não têm equipamentos, nem acesso à rede. Não é digno propor uma revolução educacional com uso de ferramentas tecnológicas sem que o acesso das pessoas seja garantido. Há indigência tecnológica para atividades comuns do cotidiano. Estudar ou ensinar por esta via é um desafio ainda maior. Agora, é muito importante que a educação se reinvente e se adeque, enquanto as conexões das pessoas com as tecnologias acontecem. No Centro Paula Souza, foram adquiridos chips de internet com pacote de dados para alunos que não contavam com este acesso. Em 2020, os cursos foram realizados, na maior parte do ano, de forma remota, com aulas síncronas e assíncronas, por plataforma comum específica, o que garantiu o aproveitamento dos estudantes. Com uma conduta vigilante e atenta ao desempenho de todos e de cada um, os professores e as equipes gestoras fizeram um trabalho heroico para garantir educação de qualidade. Quando foi permitido, foram liberadas aulas práticas para que a formação experiencial fosse garantida. Em 2021, o fornecimento de chips de internet com pacote de dados foi renovado, e os alunos estão sendo atendidos.

Este processo de reinvenção, que a pandemia trouxe, acelerou um processo de evolução digital, que já estava em andamento, e abriu novas possibilidades de trabalho, que certamente irão melhorar os projetos pedagógicos das escolas. Fora do cenário da pandemia, os legados deste momento serão absorvidos pelas rotinas das escolas, otimizando processos e acessos, inclusive com uso de simuladores de práticas profissionais, que podem ser incorporados até na realidade presencial. Em geral, pensa-se que inovação digital precisa de grandes e sofisticados recursos. No entanto, esta experiência adensada que tivemos no último ano confirmou um pensamento que o Centro Paula Souza já defende há mais de 30 anos: o investimento no professor, com formação continuada em serviço, qualificada e atualizada, é o grande diferencial para que a inovação não seja de alinhamento vertical, mas, sim, orgânica e internalizada no trabalho do professor. Este sim é o grande diferencial da educação, pois traz a inovação digital necessária aos processos formativos que promove, acreditando no trabalho que realiza. O estudante sabe diferenciar quando seu professor tem este viés atualizado e lhe proporciona uma experiência educacional diferenciada.

Como se distingue a pedagogia do Centro Paula Souza da do SENAI?

Cada instituição de EPT tem estratégias particulares de conduta curricular e pedagógica, é o que as diferencia. Embora a legislação seja a mesma, a oferta do Centro Paula Souza é ampla em diversidade de cursos e capilaridade de ofertas nos municípios do Estado de São Paulo. Como autarquia estadual, recebe recursos para seu funcionamento, exclusivamente, do governo. A oferta do ensino médio integrado à EPT é bastante elástica no Centro Paula Souza. Todos os cursos disponíveis são públicos e gratuitos.

O modelo do SENAI indica uma articulação com o setor industrial, pois esta é sua origem, que compõe o sistema S. Os recursos são oriundos de fonte privada e de incentivos públicos. A composição de cursos também respeita o alinhamento com o setor industrial, pois a finalidade do SENAI é formar para atender às demandas da indústria. Outra questão é a distribuição da oferta, que, no caso do SENAI, é nacional, não estadual. Neste sentido, a capilaridade, nacionalmente, é também mais dispersa em relação ao atendimento aos municípios, dado o número expressivo destes por todo o território brasileiro. No SENAI, o ensino médio não é oferecido de forma integrada, pois o braço do Sistema S para esta oferta é o SESI. Além disso, no SENAI, há tanto cursos gratuitos quanto pagos.

Eduardo Ribeiro Divulgação
Eduardo Ribeiro Divulgação
leia também