“Defendemos ajustes em praticamente todos os pontos da proposta, a começar pela manutenção da estabilidade e do regime jurídico único.”
A Reforma Administrativa é tema de capa da edição de junho/julho da PB, em reportagem especial que aborda as fragilidades das contas públicas, a exigência de mudanças e as resistências que podem enfraquecer a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em tramitação no Congresso. A seguir, reproduzimos a íntegra da entrevista concedida por Luiz Felipe d’Ávila, cientista político e fundador do CLP – Liderança Pública. Ele propõe uma reforma ampla, que modernize os mecanismos de gestão de pessoas no serviço público, mas critica que não é isso o que contempla o texto da PEC 32/2020, em trâmite no Congresso.
“Defendemos ajustes em praticamente todos os pontos da proposta, a começar pela manutenção da estabilidade e do regime jurídico único.”
A maioria dos brasileiros está insatisfeita com a qualidade dos serviços públicos. Precisamos urgentemente de uma Reforma Administrativa para valorizar o bom servidor público e acabar com os feudos do corporativismo que impedem que tenhamos um serviço público de qualidade. A atual estrutura existente é incapaz de estimular que os bons servidores públicos. Parte da desigualdade no Brasil se deve debitar à péssima qualidade do serviço público. Como educação, saúde e segurança são ruins, aumenta-se o fosso da desigualdade de oportunidade entre os menos favorecidos e os privilegiados que podem pagar por um serviço privado.
A máquina pública no Brasil conta com um sistema pouco adequado para a prestação de serviços de qualidade com eficiência, tendo várias distorções e incentivos perversos os quais impactam negativamente a produtividade do servidor. O governo gasta muito com salários e penduricalhos, falta verba para investir na tecnologia e treinar os servidores. Já há décadas não se realiza uma mudança significativa no que se refere à progressão automática e a falta de uma avaliação de desempenho efetiva, sendo estes alguns dos desafios a serem enfrentados para a modernização do serviço público no Brasil. Além disso, a estrutura de carreiras também tem distorções. Muitos servidores já ingressam no serviço público com remunerações elevadas, alcançando, em pouco tempo, o topo da carreira. A progressão ocorre, principalmente, com base em tempo de serviço ou obtenção de certificados, e não baseada em entrega de resultados.
Segundo a consultoria IDados, que reuniu informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda média dos funcionários públicos brasileiros subiu 20,4% desde 2012, enquanto a remuneração do setor privado aumentou apenas 7,1%. Para além do reajuste, a própria remuneração dos servidores é superior à do setor privado. A pesquisa mostra que, ao fim de 2020, os funcionários públicos chegaram a ganhar 76% a mais do que os trabalhadores comuns.
Com um serviço público mais moderno e eficiente, o Poder Público no Brasil será capaz de formular políticas públicas efetivas, transparentes e inovadoras que melhor atendam à população e ajudem a restaurar a igualdade de oportunidade no País. O cenário atual de pandemia reforçou ainda mais a necessidade de termos um setor público que seja capaz de enfrentar problemas complexos.
Um estudo do CLP calculou a economia acumulada com despesas da folha de pessoal em todo o setor público, que chegaria a R$ 178,7 bilhões em 2030 e a R$ 400,3 bilhões em 2034. Os cálculos resultam de um cenário em que servidores públicos tivessem jornada e vencimentos equiparados aos do setor privado.
“A máquina pública no Brasil conta com um sistema pouco adequado para a prestação de serviços de qualidade com eficiência, tendo várias distorções e incentivos perversos os quais impactam negativamente a produtividade do servidor.”
A se repetir o que assistimos recentemente com o Orçamento e com o Teto de Gastos, uma Reforma Administrativa estrutural será enterrada e, em seu lugar, entrará a constitucionalização de imoralidades e práticas que, hoje, são apenas maus hábitos. Por isso, o CLP defende mudanças na PEC 32. Somos a favor, por exemplo, da sua aplicação aos atuais servidores: eliminam-se os espaços para se avançar no que já está à mão e tira-se da pauta aquela que é a mais importante e complexa reforma estrutural brasileira.
A estabilidade existe no mundo todo e não precisa ser demonizada. Não tem em qualquer lugar na Constituição que funcionário público é indemissível. O que deve ser feito é manter o vínculo único para servidores permanentes sem enxugamento da estabilidade, com possibilidade de desligamento por mau desempenho, obsolescência e desnecessidade. Entretanto, é vital que o período probatório de três anos seja utilizado de maneira rigorosa e criteriosa, para podermos demitir os funcionários que não atingirem um grau mínimo de excelência no desempenho de suas funções. A estabilidade só é concedida após a efetivação do período probatório e não pode servir como perpetuação de uma função que não é mais necessária. Você pode contratar alguém por um tempo determinado, ela ter estabilidade neste período e, depois, decidir renovar ou não o contrato.
Defendemos a manutenção de vínculo único para servidores permanentes, com a possibilidade de desligamento por obsolescência e desnecessidade, além da regulamentação, via lei complementar, da avaliação de desempenho, possibilitando, assim, o desligamento dos servidores com má performance.
Os supersalários são vencimentos do funcionalismo público que ultrapassam o teto constitucional dos servidores, hoje no valor de R$ 39.293,32. Uma elite dos servidores, que inclui juízes, ministros, procuradores e outros profissionais que recebem salários astronômicos, que chegam a ultrapassar R$ 100 mil por mês. Eles “turbinam” o salário com penduricalhos, como “auxílio-creche”, “auxílio-aluguel” e outros benefícios.
É possível mudar isso com a aprovação do Projeto de Lei (PL) 6726/18, do deputado Rubens Bueno [Cidadania/PR], que está pronto para ser votado na Câmara dos Deputados. Se nada for feito, os supersalários vão sugar R$ 26 bilhões em recursos públicos em dez anos, de acordo com um estudo feito pela inteligência técnica do CLP. Isso equivale a três vezes o orçamento de uma grande capital, como Porto Alegre.
O CLP defende uma Reforma Administrativa ampla, uma proposta que modernize os mecanismos de gestão de pessoas no serviço público e redefina a distribuição dos recursos com vistas a melhorar os resultados da ação do Estado. Infelizmente, não é isso que vemos na PEC 32. Defendemos ajustes em praticamente todos os pontos da proposta, a começar pela manutenção da estabilidade e do regime jurídico único. O problema do serviço público não está na estabilidade. Ajustes podem ser feitos, mas em uma regulamentação complementar, que padronize as carreiras e regulamente a obsolescência destes cargos, como já existe em países como Canadá, França e Reino Unido.
Defendemos também o fim dos benefícios que causam desigualdade no serviço público. E para ter efeito, precisa incluir todos os servidores (principalmente membros do Poder Judiciário e militares). Não faz sentido uma reforma que promova desigualdades. Por fim, muito do que é possível se melhorar na gestão de pessoas no serviço público não precisa ser constitucional. O que precisa estar na Constituição são as bases legais para regulamentar temas importantes.
“Uma elite dos servidores, que inclui juízes, ministros, procuradores e outros profissionais, recebem salários astronômicos, que chegam a ultrapassar R$ 100 mil por mês. Eles ‘turbinam’ o salário com penduricalhos, como ‘auxílio-creche’, ‘auxílio-aluguel’ e outros benefícios.”
Não há uma regulamentação satisfatória que trate o tema da avaliação de desempenho no setor público. Hoje, a PEC 32 não contempla esse tema, e a solução seria avançar por meio de projeto de lei complementar. Ao mesmo tempo, sete em cada dez entrevistados disseram ser favoráveis à avaliação de desempenho para servidores públicos, segundo uma pesquisa do movimento Livres. A avaliação de desempenho evita que as progressões na carreira, como aumento salarial, sejam feitas automaticamente e por tempo de serviço, como ocorre hoje na maioria dos casos.
Em um modelo ideal de avaliação de desempenho, a premissa de identificar, reconhecer e valorizar líderes, equipes e indivíduos que gerem valor – principalmente com uso de incentivos não pecuniários que promovam motivação e aumento do engajamento – é fundamental. Neste modelo, esperamos valorizar os bons servidores, gerando um efeito cascata de melhores práticas e realizações contínuas dentro do serviço público.
Já passou da hora de governo e Congresso fazerem um esforço e terem a responsabilidade que o momento exige. O Brasil terá outro ano difícil em 2021. Os efeitos da pandemia estarão presentes na economia. O desemprego se mantém elevado, e não há mais espaço no orçamento para conceder auxílios emergenciais. O País precisa retomar a agenda de reformas e reequilibrar as finanças. Sem isso, o cenário é um só: dívida pública nas alturas, volta da inflação e perpetuação da desigualdade de oportunidade. Alguns projetos de lei podem até ser aprovados, mas só aqueles com baixa resistência política. Fato é que precisamos avançar ainda, em 2021, em uma agenda positiva que contemple uma ampla Reforma Administrativa, sem qualquer interesse corporativista.