entrevista

Mais sargentos que soldados

30 de abril de 2024

Em meio à explosão da violência nos centros urbanos brasileiros, muita gente tenta esboçar explicações para entendê-la. A do advogado Antônio Gonçalves, autor de PCC e facções criminosas (Revista dos Tribunais, 2020) e ex-presidente da Comissão de Criminologia e Vitimologia da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), passa pelos gargalos do efetivo policial do País.

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Pelas suas contas, com base em um padrão internacional informal de 1 policial para cada 250 habitantes, o Brasil lida, hoje, com um déficit de 179 mil agentes militares e de 55 mil na Polícia Civil. Mas não é só isso: como a violência no Brasil tem particularidades locais — conflitos de facções, rotas de comércios ilegais e indicadores mais profundos de desigualdade —, alguns Estados chegam a apresentar quase o dobro desse número, sem que signifique mais segurança para a população. É o caso do Amapá, que, segundo Gonçalves, tem cerca de 4 policiais para cada 500 mil pessoas. Em São Paulo, esse volume é de 0,9 para cada 500 mil. Alguns contextos são ainda mais complexos. 

“Na década de 1990, por exemplo, os governos fizeram um sistema de promoção nas polícias em que, se a pessoa passasse no concurso, seria promovida gradualmente. O problema é que isso foi gerando distorções na carreira que, hoje, fazem com que Estados como Amapá e Rio de Janeiro tenham um excesso de sargentos e poucos soldados. São quase 80% a mais de sargentos”, comenta o especialista, durante visita à sede da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), em abril, para participar de uma reunião da Entidade sobre a agenda de segurança pública no Fórum Empresarial de Modernização do Estado. A seguir, trechos da conversa de Gonçalves com a PB

Os números da violência no Brasil caíram, segundo os indicadores mais recentes. Contudo, por outro lado, a sensação de insegurança das pessoas está mais intensa. Por quê?

São dois fatores. O primeiro é a reclusão autoimposta pela pandemia, que fez com que parte da população evitasse sair à noite. Isso se manteve. Depois da covid-19, porém, o que ajuda a entender é o decréscimo econômico do País. Muita gente foi morar na rua. Em São Paulo, várias medidas adotadas pelas autoridades em torno da situação deram errado, especialmente no Centro, como a dispersão da cracolândia, resultado de uma tentativa do então governador, João Doria (PSDB), de desativá-la. Houve sequelas. A Avenida Paulista tem uma pequena cracolândia embaixo do túnel de acesso a ela que não existia antes, por exemplo. Quem passa por ali à noite, agora, se sente inseguro. Sem contar a onda de roubos e furtos de celulares: são duas ocorrências por minuto no Brasil. Imaginemos o grau de insegurança que isso traz para as pessoas e, no âmbito da FecomercioSP, para os estabelecimentos comerciais. 

Como elas têm agido a partir disso?

Existe um dado ilustrativo: em 2017, o Brasil tinha a segunda maior frota de veículos blindados do mundo, atrás somente da Cidade do México. Hoje, só São Paulo tem mais carros equipados dessa forma do que qualquer outro lugar do planeta. No ano passado, foram 20 mil novos automóveis blindados só no Estado, número que foi de 30 mil no País inteiro. Se considerarmos que os custos dos carros para a população brasileira já são maiores do que em outros locais, há, além disso, uma disposição a pagar mais para terceirizar a segurança. O Datafolha acabou de mensurar que quase 70% dos brasileiros têm medo de sair à noite. Por quê? Justamente pelo aumento dessa sensação. 

E onde o Poder Público falha no combate aos crimes mais cotidianos?

O problema gravíssimo é a falta de efetivo policial e, no âmbito da cidade, a pouca autonomia das Guardas Civis Municipais (GCMs). Elas não têm força de polícia, mas seguem fazendo rondas em muitas cidades. Deveriam fazer o primeiro atendimento à população, mas não têm poder para isso. A Polícia Militar de São Paulo, por exemplo, não há um número comparativo consolidado, mas informações que coletamos dentro da instituição mostram que o efetivo atual é o mesmo de 1992. Algo está errado. A PM não pode ter o mesmo número de agentes que tinha há mais de 30 anos, uma vez que a população cresceu muito nesse período. A polícia existe para prevenir e proteger, mas, sem gente, não consegue antever o crime, investigá-lo, tampouco cuidar da proteção. Na Polícia Civil, pior: o cotidiano é tirar funcionários de um departamento para colocar em outro que está precisando momentaneamente. Só por causa disso, houve um decréscimo de investigação de cerca de 10% nos inquéritos.

No caso específico dos celulares, como esses mercados têm funcionado e como fazer para desmantelá-los?

Existe um mercado paralelo de tecnologia que se ramificou. Nos presídios, por exemplo, um celular custa entre R$ 50 mil e R$ 80 mil, sem contar as peças das quais o funcionamento de um aparelho depende. As entregas são feitas por drones, por visitas, por agentes penitenciários. Essa demanda é alucinante. Isso ajuda a entender outro fenômeno: o roubo de cargas. No ano passado, foi mais de R$ 1 bilhão em perdas por causa disso, sendo que 10% dos registros correspondem a assaltos envolvendo tabaco. Os comércios ilegal e clandestino desse produto respondem a R$ 1 milhão por dia nos negócios das facções criminosas — desde roubo de carga até contrabando que vem do Paraguai. É a mesma lógica dos celulares: esses aparelhos podem se destinar às facções, aos presídios, mas também ao interior do Brasil. Também podem ser desmontados e revendidos. Sem contar toda a indústria paralela dos carros.

Essa indústria também enfrenta esse problema?

Sim. Deveríamos ter 18 mil agentes na Polícia Rodoviária Federal (PRF), mas temos 10 mil. Isso faz com que, embora a maior concentração de roubo de carga seja na Dutra, o Rio de Janeiro não consiga fiscalizar isso tão bem quanto São Paulo, por exemplo. Depois que alguém passa por Taubaté (SP), chegando ao Rio, dificilmente será parado. Lá, a falta de efetivo é um problema sério. Estamos enxugando gelo. As polícias tiram gente da rua, mas o crime permanece. Sem atuar na prevenção, sobra apenas a repressão. 

Polícia Civil?

Não só. É preciso corrigir distorções. O déficit das polícias militares é altíssimo. Só em São Paulo, é de 3 mil agentes. Na Civil, são 5 mil. Há, ainda, algumas coisas alucinantes. Na década de 1990, por exemplo, os governos fizeram um sistema de promoção nas polícias em que se a pessoa passasse no concurso, seria promovida gradualmente. O problema é que isso foi gerando distorções na carreira que, hoje, fazem com que Estados como Amapá e Rio de Janeiro tenham um excesso de sargentos e poucos soldados. São quase 80% a mais de sargentos. O impacto é, antes de tudo, econômico, porque eles não podem ser desligados das corporações e, mais do que isso, são mais caros do que soldados. No Rio, especificamente, 80% do déficit de policiais são de soldados comuns, aqueles que fazem ronda, o primeiro atendimento etc. Isso não dá para suprir facilmente. 

Mas o problema é só falta de recurso?

Não. Em São Paulo, por exemplo, há 1,8 policial para cada 500 habitantes. No Amapá, são 4,2 para cada 500. Significa que lá é mais protegido do que aqui? Não dá para afirmar isso. Pelos índices de violência, o Amapá é o Estado mais violento do Brasil. No entanto, em termos de estrutura para os estabelecimentos comerciais, onde é mais importante? Lá ou aqui? Como a legislação não diz nada, essa dosagem é subjetiva. Isso é um perigo. 

Uma possível explicação seria sobre os lugares onde há mais conflitos entre facções — uma análise, aliás, do sociólogo Gabriel Feltran?

Depende muito de cada lugar. O Amazonas, por exemplo, tem 2,2 policiais para 500 mil habitantes. O cerne dos conflitos entre facções, hoje, é naquele Estado por causa da rota de drogas pelo Rio Solimões, que dá acesso direto à Bolívia. Estão ali pelo menos três grandes facções: o PCC, o Comando Vermelho e a Família do Norte (FDN). São Paulo e Rio são incomparáveis, porque cada um tem as próprias particularidades. O Brasil tem fronteiras muito grandes — e, em muitas delas, o que divide os territórios é só um arame farpado. Não há um controle severo, não se sabe o que sai e o que entra.

O tráfico de drogas, portanto, é central na análise do problema da segurança?

As facções são temidas porque criam uma sensação de insegurança com base no fomento ao lucro. Esses grupos mostram, diariamente, o quão são organizados dentro e fora do País, revelando, além disso, as falhas de um Estado que já não fornece serviços básicos à população. Ao se ausentar, o crime organizado ocupa o lugar. Em 2005, quando o PCC parou São Paulo e quase mil pessoas morreram, a facção entendeu que não era útil entrar em conflito com o Estado. Naquela época, o PCC faturava, anualmente, US$ 50 milhões. Hoje, mais profissionalizado, o faturamento gira em torno de US$ 2 bilhões, sem contar toda a formação de advogados, políticos etc. Tudo isso para dizer que não é que a droga fomenta, sozinha, a insegurança, mas os comércios que movimentam o crime organizado é que fomentam tudo. 

Há algum modelo internacional que poderia ser utilizado no Brasil?

Muitos. O Brasil tem pontos de fragilidade que podem ser bem trabalhados. A crise envolvendo estabelecimentos comerciais dá para ser reduzida, por exemplo. O roubo de cargas, aqui, é um problema grave, muito acima da média de outros países. Cerca de 8% do nosso Produto Interno Bruto (PIB) vêm do Turismo, enquanto no México, mais violento, o setor corresponde a 20%. Tudo isso para dizer que existem pontos de investimentos que podem resultar em mais pessoas circulando e, com elas, mais dinheiro de fora para dentro. 

Mas como fazer isso em meio a uma crise de segurança?

A [Operação] Lava Jato [da Polícia Federal] nos ensinou que a melhor forma de investigar é por meio de cooperação técnica internacional. O Brasil não é obrigado a saber investigar, mas se exige que pergunte a quem sabe. O mercado da droga, por exemplo, não começa nem termina aqui. O destino é a Ásia, a Europa, os Estados Unidos — embora sejamos o maior exportador dos norte-americanos. Sem investigação sobre a rota do dinheiro, fica difícil combater o crime organizado. 

Mesmo com os atuais sistemas financeiros descentralizados?

Interpol, FBI, CIA, entre outras, têm ferramentas para fazer esse tipo de investigação. Era importante que trocássemos mais com eles. A Polícia Federal até faz isso bem, mas as polícias militares não têm esse hábito. Seria importante que isso mudasse.

Lucas Mota e Vinícius Mendes Divulgação
Lucas Mota e Vinícius Mendes Divulgação
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