O Brasil foi o grande destino da imigração portuguesa nos séculos 18 e 19, sobretudo dos jovens de famílias médias que decidiram sair do interior norte de Portugal em busca de fazer fortuna do outro lado do Atlântico. O movimento marcou não só a história brasileira como também a portuguesa, como conta a historiadora Isabel Corrêa da Silva, professora e pesquisadora da Universidade de Lisboa que, desde 2008, estuda as relações luso-brasileiras. Entre os que conseguiram enriquecer, vários voltaram para Portugal e, no retorno à terra natal, passaram a ser tratados como “brasileiros”. Além deles, nosso país foi uma inspiração para o movimento republicado lusitano, que usavam a proclamação da república da ex-colônia como um exemplo retórico importante para a própria causa.
Isso é um bocado a “pergunta do milhão de dólares” da historiografia portuguesa. Mais para trás, desde o período da expansão marítima no século 15, e até mesmo um pouco antes, faz sentido refletir sobre o impulso para sair de Portugal. Há uma espécie de dinâmica contínua de saída, mas não sei se é uma característica que possamos atribuir ao português.
Sim. No Brasil, as pessoas me falam: “Mas ele não é brasileiro”. Quando fui dar uma palestra na Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] em torno desta ideia do português que voltava para casa com dinheiro e era chamado de “brasileiro”, muitos alunos vieram me falar depois que pensavam que eu iria falar da imigração dos brasileiros. No entanto, para Portugal, é muito evidente, porque este tipo, o “brasileiro”, era uma forma de identidade comum nos séculos 18 e 19.
É exclusiva. O grande destino da imigração portuguesa nos séculos 18 e 19 era o Brasil. Não há equivalente em nenhum outro território ou colônia lusitana, quando se trata dessa imigração espontânea, não da que era coordenada pelo Império ou, depois, pelo Estado português. A partir de certa altura, fim do século 18 e início do 19, temos um modelo de imigração completamente individual e espontânea. E não é uma imigração miserável, são jovens filhos de pequenos proprietários, muitos deles sabem ler e escrever – e iam com alguma rede social já estabelecida, um primo, um tio, alguém da terra que já estava à espera deles.
Esses “brasileiros” saíam em geral das regiões de Beira Minho e Trás-os-Montes. Quando retornavam, tinham características próprias, como um certo modo de vestir, usavam roupa branca, mais leves. Construíam casas com varandas muito abertas – o que, se calhar, não fazia muito sentido no interior norte de Portugal. Eram vistos como excêntricos. Mas o fato é que havia um investimento desta elite de deixar a sua marca. Muitos fundaram escolas, repararam Igrejas, deram dinheiro a Casas de Misericórdia locais. A distinção do “brasileiro” é também consequência de um voluntarismo destes homens.
Este perfil não era a regra: a grande maioria não voltava. Eles tinham uma vida muito difícil no Brasil e não conseguiam ultrapassar certo patamar para ter dinheiro para voltar a Portugal. Não se sabe quantos ficaram no Brasil, porque não sabemos quantos saíram. Grande parte da migração era clandestina. Os que voltaram, antes, já haviam ascendido socialmente em suas bolhas nas comunidades de portugueses no Rio, em São Paulo, em Belém ou no Recife. Eles conseguem obter méritos, ordens e títulos de nobreza, voltam já na condição de conselheiros, barões. Estamos falando de uma minoria, mas uma minoria visível.
Diferentemente do que acontecia antes, ter um título de nobreza, no século 19, não trazia benesses financeiras. Ao contrário: a coroa portuguesa vendia os títulos para arrecadar dinheiro. Os “brasileiros” queriam os títulos pensando em reconhecimento social e prestígio. Consultei correspondências dos representantes diplomáticos portugueses no Brasil, que serviam de plataforma de comunicação das elites que viviam no Brasil e o Estado português, e há muitos pedidos.
O impacto foi mediano, em geral com influência apenas local. Isso se deu por várias razões. Os “brasileiros” continuavam ligados a dinâmicas da terra de onde saíram. Em Portugal, a elite política sempre funcionou de forma muito centrada em Lisboa, um pouco no Porto. Também porque, em geral, saíam muito novos (com 12, 13 e 14 anos) e voltavam só quando tinham estrutura econômica, o que levava tempo. Às vezes, já eram homens de 50 anos e, portanto, o seu tempo em Portugal para criar dinâmicas de sociabilidade na cultura ou na política já era pouco. Havia ainda um certo preconceito por parte da elite portuguesa estabelecida, porque eram pessoas com ascendência muito humilde, não partilhavam dos mesmos topos, eram vistos como excêntricos e meteoros sociais.
Por parte do Brasil, ao longo do século 19, havia um grande desinteresse por Portugal, até uma certa rejeição da tradição portuguesa. O que se nota é um grande esforço por parte de Portugal em manter os laços, obviamente já não nas linhas do colonialismo. Busca estabelecer tratados de comércio e de amizade, tenta fazer com que haja alguma fluidez em termos editoriais, ao fazer os livros portugueses serem publicados no Brasil. E a partir da década de 1870, o percurso do republicanismo brasileiro e a implantação da república repercutem muito em Portugal.
Uma faixa específica, a dos republicanos portugueses, que foram um grupo em ascensão ao longo daquele século. No fim do século 19 e no início do 20, usam o caso do Brasil como um exemplo retórico, de propaganda. Os dias 15 de novembro eram sempre uma ocasião para os republicanos fazerem em Portugal grandes festejos, mostrar como o nosso país-irmão já era assim. Todavia, o exemplo do Brasil é um bocado retórico. Os portugueses sabiam muito pouco do que estava a passar no Brasil, das nuances da política local, da manutenção do poder nas mãos do que se chamou mais tarde de “república do café com leite”. Faziam uma importação das ideias gerais, só do que interessava.
A primeira festa dos republicanos na República de Portugal (em 5 de outubro de 1910), a celebração do primeiro 15 de novembro, já celebrado em igualdade de regimes, foi uma coisa extraordinária. Naquele momento, vivia-se uma febre brasileira: mudaram-se os nomes das ruas, que passaram a ser “Rua do Brasil”, “Praça Rio de Janeiro”, por exemplo. Os portugueses celebraram a própria república prestando homenagem ao país-irmão que já era uma república e que, de certa maneira, contribuiu para a conquista.