Com um saldo de 14,8 milhões de desempregados, a pandemia obriga o Brasil a repensar as políticas públicas e a fomentar a geração de novas vagas, em um momento em que o emprego passa por uma série de transformações decorrentes das novas tecnologias.
Este é o cenário analisado por Hélio Zylberstajn, professor sênior da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto Salariômetro, da Fundação Insituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), em entrevista à Problemas Brasileiros.
O bate-papo é conduzido pelo jornalista Lucas Mota e foi dividido em dois blocos: o texto a seguir e o podcast, disponível aqui.
“O Brasil sempre cresceu puxado pelo investimento público. Como o Estado quebrou, chegou a vez do investimento privado.”
A pandemia destruiu diversos postos formais, mas afetou, sobretudo, os informais. No caso dos formais, o governo conseguiu intervir e salvou em torno de 12 milhões de empregos, de um total de 36 milhões de celetistas. Isso representa um terço dos ocupados, não foi pouco.
Já aqueles trabalhadores que vendiam nos cruzamentos ou nas portas das estações de metrô foram mandados para casa, não havia mais mercado consumidor. A eles, coube a ajuda de R$ 600, que, depois, virou R$ 300.
Ajudou bastante, mas seria preciso uma continuidade, deveríamos ser generosos por mais tempo para sustentar este contingente de informais. Este é o formato da nova política social, não tem jeito. Nós vamos ter de sustentar essas pessoas até que a gente fique em pé de novo.
Para combater esta realidade, é preciso, primeiro, olhar ocupação e emprego como conceitos diferentes. Um trabalhador informal não tem emprego, mas está ocupado. Neste novo arranjo, vamos ter milhões de pessoas ocupadas, mas desempregadas. Temos dois problemas. Um é conjuntural, que é a recessão. Se conseguirmos acabar com a recessão, recuperaremos a ocupação. Entretanto, há também um problema estrutural advindo das novas tecnologias, que estão destruindo o emprego.
Para voltar a crescer, precisamos investir maciçamente em infraestrutura, “juntar a fome com a vontade de comer”. Estou falando de ferrovias, rodovias, aeroportos e portos, além de explorar o transporte fluvial e a cabotagem, ou seja, construir uma estrutura interligada de transporte.
Só neste ponto, criaríamos empregos em razão das obras e do efeito multiplicador do investimento, que movimenta toda uma cadeia de produção. O professor Antônio Delfim Netto costuma dizer que nós temos na gaveta mais de 700 projetos de infraestrutura. São obras de comunicações (como o 5G), água e esgoto, energia, toda área da economia sustentável. Há duas formas de ler isso: de um lado, temos uma estrutura deficiente, de outro, toda uma oportunidade de investimentos para crescer e criar empregos.
Sim, ainda, apesar de todas as transformações.
O mundo está muito líquido, há muito capital. Se conseguirmos minimamente demonstrar que vamos seguir as regras, respeitar os contratos, regulamentar o que não está regulamentado e reforçar as agências, vamos passar a crescer com dinheiro privado. O Brasil sempre cresceu puxado pelo investimento público. Como o Estado quebrou, chegou a vez do investimento privado. Eu não tenho medo desse desemprego enorme, mas do desemprego circunstancial, conjuntural. Se conseguirmos minimamente abrir este horizonte, os capitais virão. Nós tivemos vários exemplos de sucesso recente, como o leilão Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), no Rio de Janeiro, e a semana de leilões de infraestrutura de transporte. Em ambos os casos, os ágios foram estrondosos. Há fome e há vontade de comer. É preciso um mínimo de coordenação, e eu não tenho dúvida de que isso seja capaz de combater o desemprego conjuntural.
“Eu diria que o empreendedorismo é uma segunda ou terceira opção; a solução, evidentemente, não é esta. Se não há demanda, vou empreender para quem?”
Se nós conseguirmos voltar a crescer, haverá ocupação por 10 ou 20 anos. Com isso, ganhamos tempo para melhorar nosso sistema educacional e produzir uma nova geração de trabalhadores qualificados para esta nova era. A tecnologia sempre destruiu ocupações, mas também criou postos. Novos produtos criam demandas e precisam de novos trabalhadores para serem feitos.
Sim, a internet criou uma indústria. Os games, por exemplo. Veja quantas pessoas estão ocupadas desenvolvendo games, e o Brasil é muito bom nisso. E não são empregos, são ocupações. Ainda acho que o balanço será positivo, mesmo porque o uso que daremos à tecnologia não está dado como definitivo. Nós podemos decidir isso coletivamente, como sociedade. Veja o caso da educação. A minha faculdade [FEA-USP] passou a oferecer os cursos a distância. Se a USP quiser, pode se tornar uma universidade nacional, transformar os 80 mil alunos em 800 mil ou 8 milhões. Isso destruiria emprego de professores, mas, por outro lado, criaria outras ocupações. A destruição e a criação vão acontecer paralelamente, precisamos nos preocupar com a desigualdade no mercado de trabalho que os movimentos de inovação aparentemente vêm criando. O mercado está ficando polarizado.
Medidas como o regime especial de compensação de jornada, antecipação de férias e suspensão temporária do contrato de trabalho foram um sucesso absoluto. Quem ganhava até R$ 2,5 mil, em média, praticamente não perdeu renda. As centrais sindicais fizeram uma revolução contra o acordo individual, permitindo reduções de jornada e salário ou suspensão de contrato, mas, após o pleno do STF decidir favoravelmente à medida [MP 936/2020], tivemos mais de1 milhão de empresas que fizeram acordos e não “passaram o trator” por cima dos trabalhadores. O rendimento foi preservado, isso foi ágil. Se dependêssemos das negociações coletivas, iria demorar muito. Hoje, ainda temos 2 milhões de trabalhadores com estabilidade a partir de acordos firmados no ano passado; isso foi a salvação da lavoura no setor formal.
Sendo meio cáustico, digo que esta ideia de promover o empreendedorismo talvez seja uma “meia-sola” muito malfeita. Muitas pessoas querem empreender porque não têm opção. Se voltarmos a crescer, o empreendedorismo vai diminuir. Claro, principalmente entre os jovens existe uma propensão ao empreendedorismo, mas isso não diz respeito à conjuntura econômica. Acredito que os recursos devam ser investidos no fomento da economia com vistas ao crescimento, e, aí, com oportunidades melhores, as pessoas que desejam empreender podem vislumbrar outras opções. Eu diria que o empreendedorismo é uma segunda ou terceira opção; a solução, evidentemente, não é esta. Se não há demanda, vou empreender para quem?
Certamente. A questão do teletrabalho, por exemplo, foi acertada lá. Outro exemplo é a jornada, que passou a ser negociada. Se não houvesse isso, seria muito mais difícil. Então, [a Reforma Trabalhista] foi muito benéfica ao criar o espaço para a negociação. Muitos acertos ditados pela pandemia puderam ser negociados, porque havia segurança para que isso fosse feito.
Claro, tudo isso é um problema a mais. Contudo, é preciso lembrar que, nos anos do governo Lula, em que o País cresceu, muito atrelado ao desempenho chinês, houve uma criação descomunal de empregos formais. Apesar de uma CLT ruim e ineficiente, não impediu a criação de empregos. O que eu quero dizer com isso é que nós não devemos desistir de fazer uma Reforma Trabalhista no Brasil, mas ela [CLT] é um problema secundário hoje. E eu sou uma pessoa que há muitas décadas critica a CLT.