entrevista

“Muita coisa foi resolvida, mas é o mesmo Brasil”

12 de junho de 2023
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De 1963 – ano em que a Problemas Brasileiros entrou em circulação – até hoje, o Brasil passou por um regime militar, foi governado por sete presidentes civis, enfrentou crises econômicas e dois impeachments e viu a população crescer quase 200%, revelando as belezas e misérias da Nação. Ao mesmo tempo, nada parece ter sido profundamente transformado nesses 60 anos. “Os grandes problemas do País continuam. Muita coisa foi resolvida, mas é o mesmo Brasil”, observa o antropólogo Roberto DaMatta. Apesar da descrença na superação dos nossos problemas estruturais, ele não deixa de ver novos aspectos no horizonte.

Qual é a grande novidade do brasil contemporâneo?

Penso que existe uma configuração cultural com várias dimensões novas. Uma delas é a inserção do Brasil na comunidade global, ao deixar as pessoas diante de uma simultaneidade enorme de eventos acontecendo ao mesmo tempo mundo afora. Isso afetou nossas estruturas. Outra é a possibilidade de uma comunicação instantânea em que não há passividade de nenhum ator envolvido. Todos são comunicantes. Estas redes são constituídas por níveis de confiança. Temos redes seguras para estabelecer contatos, mas também existem escritórios e até laboratórios cujo objetivo é justamente confundir populações por meio da criação e da distribuição de notícias falsas. Em um país que ainda convive com problemas educacionais profundos, que não tem escola primária, que nem a universidade é tão boa, isso é um problema. As pessoas estão, a todo momento, recebendo no celular coisas sobre política, sobre história, sobre divisão dos poderes institucionais, sem nunca terem lido nada profundo a respeito destes assuntos. O resultado é que elas acabam virando crentes. A posição do sujeito dentro de uma estrutura determina sua possibilidade de ver a realidade. Este tipo de pergunta me deixa chateado…

Por quê?

Porque é a mesma pergunta que a minha professora da escola primária nos fazia. Eu estou com 86 anos e ainda não encontramos a resposta para ela.

Por que o senhor acredita que não encontramos?

Dias atrás, estava em uma conferência de um amigo economista que apresentava dados de PIBs. Na tela, apareciam curvas de crescimento das economias da Alemanha, dos Estados Unidos e de outros países. Então, ele fazia uma comparação com a nossa, estagnada. Foi quando uma pessoa na plateia perguntou o motivo de o Brasil ficar “marcando passo” – cresce um pouco, para, volta a subir, daí vem a inflação e não deixa arrancar. Não havia resposta para a pergunta.

Mas o senhor arrisca uma?

Talvez porque o nosso liberalismo seja de muleta. Olhe só: fomos o último país do mundo a abolir a escravidão – mas até hoje tem gente trabalhando como se fosse escravo.

Quais estruturas foram afetadas com esta mudança comunicacional que o senhor aponta?

O Brasil desidealizou aquela ideia de que deveria ser um país parecido com a França, com a Inglaterra, com a Alemanha, com os Estados Unidos. Era resquício de uma perspectiva evolucionista das sociedades que, aqui, se fragmentou por causa da informação. Tornou-se possível olhar de forma mais crítica para estes modelos, conhecer de perto suas contradições. Hoje, nós sabemos muito melhor que a polícia norte-americana é eficiente em matar negros, mais do que no Brasil, embora isso aconteça bastante na nossa realidade, ou que as instituições bancárias e as grandes empresas de lá podem ser muito corruptas também.

O que isso muda na política, por exemplo?

À medida que não temos mais posições holísticas, que a totalidade conforma o sistema – ao contrário do catolicismo e dos projetos dos partidos socialistas e comunistas –, o que aparece é um individualismo repleto de interesses diferentes. No Brasil, foi quando emergiu uma direita com uma liderança sem nenhuma capacidade de entender este todo. No entanto, existem contradições mais óbvias e chocantes. Como é que nós tivemos uma ministra de Estado que acredita que a Terra seja plana?

O conceito de racismo estrutural é central no debate sobre o Brasil atual. Como o senhor vê esta discussão?

São duas respostas. A primeira, em nível teórico, é que não existe nenhum problema social isolado. Um problema social é uma rede de significados que se aglutinam para certos grupos e que se desfazem para outros. Neste sentido, a questão racial no Brasil passa inevitavelmente pela escravidão. Do ponto de vista prático, um sociólogo de São Paulo, Oracy Nogueira, já escrevia há tempos que o preconceito brasileiro é “de marca”, porque depende da aparência. É circunstancial, no sentido de que você é mais preto ou mais branco dependendo da circunstância. Quando eu disse isso, fui chamado de reacionário, mas é fato. Se você tiver um comportamento estranho em um lugar público, como um supermercado, você ficará muito mais preto aos olhos dos outros do que se estiver em uma casa onde as pessoas o conheçam. É o contrário do que acontece nos Estados Unidos.

Por quê?

Lá, o que rege é o preconceito de origem, que se baseia em saber quem foi seu avô, por exemplo. E se ele era negro, então não importa quão branca seja a sua pele, você será classificado como negro. É por isso que no país havia o fenômeno da passagem: as pessoas negras saíam do Sul em direção ao Norte, faziam um novo cartão de seguridade, uma nova identidade, e eram reclassificadas como brancas. Isso, claro, não tirava o medo de serem descobertas um dia, um drama que nunca existiu aqui.

E sobre o conceito de racismo estrutural?

É uma descoberta sociológica importantíssima. O racismo no Brasil é como uma sala com várias portas – e todas pela quais saímos levam a lugares diferentes, mas, depois, nos fazem voltar para o mesmo lugar. Isso é resultado de uma sociedade baseada no sistema da escravidão que foi (e é) dominante no mundo brasileiro. É uma totalidade hierarquizada. Pode haver leis para tentar equalizar, democratizar, mas a igualdade não pega, porque depende sempre da circunstância. Em algumas delas, nós somos iguais, mas, em outras, acontecerá o contrário dependendo da cor da minha pele, do jeito que eu falo, do meu corte de cabelo. O racismo estrutural é justamente o preconceito enraizado em uma sociedade hierarquizada. No Brasil, não existe só o superior e o inferior, mas também o superior do superior, e o superior do superior do superior – e a mesma coisa com os inferiores. É uma gradação.

Esta estrutura hierárquica também se modificou nos últimos anos?

Com a polarização recente, a tendência é que estas posições se relativizem, sem se ter clareza de quem as ocupa. Em momentos normais, você sabe exatamente com quem está falando, como eu escrevi [em Carnavais, malandros e heróis, de 1979]. É o deputado federal, o policial, o advogado, qualquer pessoa que se coloque como mais branca. Eu vejo muito isso no futebol.

De que forma?

O senso comum é chamá-lo de “ópio do povo”, quando, na verdade, é o contrário. O futebol estabelece algo que uma sociedade hierarquizada como a nossa detesta: a competição entre iguais. São dois times com o mesmo número de jogadores, um juiz que precisa ser imparcial, mesma transmissão da televisão etc. As brigas violentas das torcidas são reflexo do problema em viver a igualdade mais absoluta possível. Mais do que isso, expressa a dificuldade em elaborar como, em uma sociedade de iguais, uns podem ser melhores do que outros em algumas coisas.

Isso se manifesta em situações cotidianas?

É interessante que o que chamamos de mobilidade social não diz respeito só à possibilidade de se mover por entre as camadas existentes da sociedade, mas também a estes movimentos no cotidiano, como dar lugar para uma pessoa mais velha no transporte público ou esperar por uma mesa no restaurante. Em uma sociedade de iguais, é preciso esperar como todas as outras pessoas, não importa quem você seja. A fila, neste sentido, é um objeto sociológico, como abordei em um livro que escrevi com o [cientista social] Alberto Junqueira [A fila e a democracia, Rocco, 2017].

O que a fila mostra sobre o Brasil?

A fila é o princípio fundamental da democracia. Quem chegou primeiro será atendido primeiro. Ponto. No Brasil, porém, aqueles que deveriam estar no meio da fila, no seu sentido social, continuam sempre no fim. A fila não anda – e não o faz porque quem está atendendo não tem preocupação com quem está no último lugar. A concretude disso é a ausência de políticas públicas e a existência de um Congresso bastante preocupado com os próprios privilégios. São elementos que conformam uma sociedade originalmente aristocrática e que se mantém assim até hoje. O Brasil parece um armário repleto de gavetas, mas todas difíceis de abrir, de trocar de lugar, de mexer, até mesmo de acabar com o engavetamento. Isso é o racismo estrutural.

Como isso se revela na vida política do País?

A política é o cumprimento de regras impessoais. No Brasil, isso é difícil, porque a punição para o crime depende sempre de quem o cometeu. Quer dizer, não tem impessoalidade. É a metáfora da fila novamente: você está sendo atendido no guichê e um familiar seu está no último lugar. Você o chama para ser atendido antes, desrespeitando todo mundo que chegou antes. É uma dialética oposta, em que o que é impessoal se transforma em pessoal. Mesmo na política institucional, há uma expressão típica de uma sociedade hierarquizada, que é a divisão entre parlamentares do “baixo clero” e do “alto clero”. Quer dizer, todos são deputados, mas uns são mais do que outros.

E o que mantém esta estrutura funcionando?

As pessoas aprendem no ambiente doméstico. O espaço da casa pode perfeitamente ser a primeira experiência autoritária de um brasileiro – e, neste sentido, é fundamental entender como os governantes se apropriam disso. É o caso clássico do bolsonarista. Aliás, é a história do próprio Bolsonaro, que se apropriou da instituição presidencial como se ela fosse dele. Veja bem como a sociedade dá voltas suspeitas: pelo igualitarismo democrático, por um sistema eleitoral competitivo, nós elegemos Bolsonaro e três membros da família dele. E foi justamente graças aos filhos que ele foi se tornando cada vez mais autoritário. E nós que achávamos que estas dinastias políticas existiam apenas no Nordeste…

A PB está completando 60 anos em 2023. O que mudou de 1963 para hoje?

É o mesmo Brasil. Os grandes problemas do País continuam nos desafiando. Muita coisa foi resolvida, é verdade, logrando uma modernidade aparentemente superficial, mas é o mesmo Brasil. Ainda convivemos com dificuldades na educação primária, na saúde, na desigualdade. Muita gente da minha direção acha até que as coisas pioraram. Esse período começa com o Jânio Quadros renunciando – o presidente eleito com todas estas esperanças de que estamos falando aqui. Ele tinha uma vassoura para acabar com a corrupção. No campo da educação, nós vimos um país como a Coreia do Sul passar na nossa frente, ao investir em uma grandíssima transformação educacional cujo protagonista era a figura do professor. Demorou duas gerações, mas aconteceu.

Qual é o dilema que o senhor vê acontecendo hoje no mundo?

O fato de o Ocidente ter apostado todas as fichas em uma coisa chamada “progresso” sem ter uma ideia clara de qual é a meta. No progresso, a meta é avançar para um lugar que não se sabe qual é. É a felicidade humana? Mas quantas ideias, quantos retratos de felicidade existem?

Vinícius Mendes Fernando Sampaio/Estadão
Vinícius Mendes Fernando Sampaio/Estadão
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