No Brasil, a relação de trabalho entre empregadores e colaboradores, nas plataformas digitais, é assunto ainda sem solução definitiva. Por isso, o debate sobre possíveis alternativas para dar mais segurança a ambas as partes vem ganhando força.
Contudo, o problema não é só brasileiro. A discussão está posta em todo o mundo. Pioneiro na regulação do trabalho em plataformas digitais, o Estado norte-americano da Califórnia, por exemplo, aprovou em plebiscito, em 2020, a Proposição 22, que classifica os trabalhadores de plataformas digitais de transporte e entrega como contratados independentes (não como empregados) e estabelece direitos e obrigações.
Enquanto isso, no Reino Unido, em fevereiro de 2021, a Suprema Corte reconheceu o vínculo de dois trabalhadores de aplicativo (app) com a Uber, garantindo alguns direitos, como salário mínimo, férias e regras sobre jornada de trabalho. Em junho, porém, a plataforma de delivery Deliveroo obteve uma vitória nos tribunais, que consideraram seus prestadores de serviços autônomos.
O andamento da legislação em outros países foi, inclusive, foco de estudo da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP), que analisou ações na América Latina, no Reino Unido, na Espanha, nos Estados Unidos e na União Europeia. Segundo o estudo, a gig economy, atualmente, envolve 17 setores econômicos.
Em busca de compreender melhor a dimensão do trabalho por plataformas digitais no País, conversamos com Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto, professora e pesquisadora sênior no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) da FGV, envolvida no estudo. Leia a seguir.
O trabalho por plataformas digitais, no Brasil, é muito amplo e envolve diferentes atividades econômicas. Na nossa pesquisa, identificamos o trabalho nas plataformas em 17 atividades econômicas diferentes no mundo. Como exemplo desta variedade, podemos citar os serviços de transporte de passageiros, transporte de mercadorias e serviços de limpeza, educacionais, jurídicos, médicos, Tecnologia da Informação (TI), entre outros. Há também diferentes tipos de trabalho em plataformas: há, por exemplo, aqueles em que o trabalho é prestado fisicamente em um local (como o transporte de passageiros) e há aqueles em que tudo ocorre virtualmente, pela internet (alguns serviços de TI, por exemplo).
Em termos numéricos, contudo, é difícil precisar a quantidade de pessoas que trabalham por plataformas, dada a insuficiência de dados sobre a chamada gig economy. De acordo com o Ipea, a partir de dados da Pnad Contínua, é possível estimar cerca de 1,5 milhão de pessoas trabalhando nesta modalidade, no setor de transportes. O número não inclui as outras atividades mencionadas e, portanto, não representa a totalidade de trabalhadores em plataformas digitais.
Como não há dados suficientemente claros e sistematizados para realizar a comparação, neste sentido, podemos refletir com base em exemplos. Em um relatório do Banco Interamericano sobre os serviços de transporte de passageiros na América Latina, o Brasil era o país onde mais pessoas utilizavam os serviços da Uber, bem como liderava a lista de lugares em que a plataforma estava mais presente na América Latina. De acordo com relatório da GSMA [associação global do ecossistema móvel], o País corresponde ao maior mercado de smartphones da região. Com base nestes números, é possível dizer que o Brasil representa um mercado importante na região (e, possivelmente, o maior).
Novamente, esbarramos na insuficiência de dados. Não sabemos com clareza, por exemplo, como funcionam os mecanismos das plataformas para fixar taxas, como fazem os descontos, entre outros. Sendo assim, a minha resposta leva em consideração os dados que temos. Penso que esta seja uma crítica real: a respeito das taxas, me parece ser uma reclamação comum – tanto dos trabalhadores (entregadores) como de outros usuários (como restaurantes) – a que abarca a fixação de taxas elevadas – há projetos de lei tramitando no Congresso Nacional sobre o tema, especificamente. Além disso, existem diferentes plataformas, com regras muito diferentes. Na nossa pesquisa, identificamos plataformas em que o próprio trabalhador define o valor do seu serviço, enquanto em outras, é a própria plataforma que define. Nesse sentido, é difícil dizer se existe uma movimentação ou interesse geral em promover melhorias para os profissionais ali cadastrados.
Desde o início da operação das plataformas no Brasil, vimos alguns avanços, a exemplo da criação de canais de comunicação ou mecanismos antifraudes nos aplicativos, mas me parece ainda haver um caminho a ser trilhado. Nesse caminho, o diálogo social será um importante fundamento. É vital que plataformas e trabalhadores dialoguem para que mecanismos que eventualmente venham a ser criados sejam, de fato, úteis para atender às demandas e responder aos problemas na gig economy.
Atualmente, na legislação brasileira, há dois caminhos principais para a regulação do trabalho. De um lado, uma alternativa existente é a contratação desses trabalhadores pelo regime celetista, pelo qual seriam considerados empregados. Nesse regime, haveria garantia de direitos trabalhistas clássicos (como férias, salário mínimo, limitação de jornada etc.) e subordinação (observância de horários e ordens estabelecidas pelas plataformas). Outra alternativa é a caracterização desses trabalhadores como autônomos. Aqui, não seriam previstos os direitos trabalhistas mencionados, mas haveria a autonomia (liberdade de escolher quando e como trabalhar). Como autônomos, em teoria, também contribuiriam para a Previdência Social. Tanto em um modelo como em outro, é possível pensar em subcategorias, a exemplo do trabalho intermitente (já previsto na CLT) e na classificação dos autônomos como MEIs [Microempreendedores Individuais].
No mapeamento realizado pela FGV para identificar as plataformas, destacaram-se aquelas que oferecem múltiplos serviços (como limpezas e reformas), serviços jurídicos (contratação de correspondentes, por exemplo) e ensino (plataformas que conectam professores a alunos interessados em reforço escolar e outras), além de plataformas para transporte de cargas de grande porte. Além dessas, merecem destaque aquelas que ofertam um serviço realizado totalmente de forma online, conectando empresas e trabalhadores de diferentes localidades e, por vezes, em diferentes países. Embora os símbolos desta economia sejam os aplicativos e os trabalhadores no transporte e na entrega, é possível observar um espraiamento das plataformas para muitos setores.
Mapeamos a existência de 114 PLs sobre o tema até 2021. São muito projetos versando sobre o tema, das mais diferentes maneiras. Há aqueles que abordam questões muitos pontuais, sem avançar para uma regulação mais geral sobre o trabalho por plataformas. Um exemplo disso diz respeito aos vários PLs relacionados à pandemia de covid-19. Muitos não adentravam a discussão acerca da natureza jurídica da relação entre esses trabalhadores e as plataformas; apenas buscavam disciplinar alguma garantia aos trabalhadores no período da crise sanitária, como oferta de máscaras e álcool em gel pelas plataformas. Por outro lado, temos projetos mais plurais, que propõem uma regulação ampliada (ainda que predominem aqueles voltados a motoristas e entregadores). Em relação a estes, pudemos perceber que os projetos se dividem (quase 50% e 50%), ao propor o regime celetista e o regime de trabalho autônomo.
Até o momento, houve apenas um PL aprovado (transformado na Lei 14.297), que estava atrelado ao período de emergência de saúde pública decorrente do coronavírus – dentre outras medidas, a nova norma determinava que, durante a pandemia, a empresa de aplicativo deveria contratar seguro, sem franquia, em benefício do entregador, para cobrir eventuais acidentes ocorridos ao longo do período de retirada e de entrega de produtos. Os demais seguem em discussão. Com as eleições, as discussões amornaram. Contudo, no próximo ano, acredito que os debates em torno da gig economy sejam retomados com força no Congresso.