Dias depois de ser eleito para seu terceiro mandato como presidente do Brasil, Lula fez questão de viajar a Sharm el-Sheikh, no Egito, por ocasião da COP27, apenas para dizer o que boa parte da comunidade internacional presente no encontro ambiental estava esperando ansiosa: “Estamos de volta”.
A frase — cujo poder simbólico se vê, agora, na sua presença inequívoca em análises globais sobre a posição brasileira no mundo — carrega vários paradoxos. O primeiro é o protagonismo que o País poderia assumir nas pautas climáticas desde então, e que ainda não o fez. O segundo, para Claudia Zilla, pesquisadora sênior no Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP, na sigla em alemão), é a confusão subjetiva, mas também concreta, entre o Brasil e a América Latina.
Claudia argumenta que, de um lado, o mundo tende a ver a região sempre pelo prisma brasileiro. É como se fôssemos a lente mais imediata para entender os demais países do Atlântico e do Pacífico — e é assim que o Brasil pode se autodenominar líder da América Latina em fóruns globais, por exemplo. Por outro, é raro ver a diplomacia (e, até mesmo, o governo brasileiro) levando interesses latino-americanos às mesas de discussão internacionais. O dilema se complexifica, de acordo com ela, ao mirar as relações entre os vizinhos.
“Muitos problemas transnacionais só podem ser combatidos com governos cooperando entre si. Mas não existe, na América Latina, uma visão clara sobre o papel que a região quer exercer no mundo”, afirma.
“Não tem cooperação nem mesmo para se relacionar com a China”, completa ela, citando o principal parceiro comercial de boa parte das economias latino-americanas e que, neste momento, também é pivô de uma crise no Mercosul envolvendo o Uruguai.
Em uma hora de conversa com a PB, em seu escritório no centro de Berlim, na Alemanha, Claudia Zilla também criticou a postura do Brasil a respeito da invasão russa na Ucrânia, esmiuçou a nova agenda da União Europeia para a América Latina e abordou as mudanças recentes no Itamaraty.
Qual é a posição atual do Brasil no cenário global e de que forma esse lugar determina as condições para intermediar negociações entre Rússia e Ucrânia?
Essa posição não está muito clara, o que tem certo potencial — uma característica histórica da diplomacia brasileira. Trata-se de uma preservação de autonomia, que significa não se alinhar com um bloco definido. Essa equidistância é bastante difícil de conseguir no mundo de hoje. Mas a ambiguidade se estende aos vínculos com a América Latina, no sentido de entender o papel que a região exerce para a própria posição global brasileira. O governo brasileiro sabe que o peso do País não depende apenas do que acontece dentro das suas fronteiras, pois é sempre visto pelos outros com a imagem da própria América Latina ao fundo. A ambivalência está em ver quanto o Brasil investe, de fato, na região.
E quais são os desafios diante dessa posição?
Um desafio especial é a questão democrática. Vivemos uma onda de autocratização a nível global que também atinge a América Latina e o Caribe. Lula foi eleito democraticamente e é um democrata, mas qual é seu posicionamento quando perguntado sobre o que é democracia? Seus últimos comentários a respeito da Venezuela causaram incompreensão e irritação na Europa. O dilema que surge aí é que, por um lado, há a necessidade de cooperação mesmo frente a países com governos de ideologias diferentes, ou que não sejam democracias, porque cooperar dentro de uma região é necessário para além dos regimes políticos. Por outro, democratas como Lula precisam defender a democracia não apenas retoricamente, mas investindo capitais econômico e político em favor dela, considerando efetivamente as cláusulas democráticas presentes em mecanismos regionais, por exemplo.
O que aparece agora como o dilema mais profundo?
A cooperação regional, que já foi muito mais profunda, intensa e dinâmica. Muitos problemas transnacionais que só podem ser combatidos com governos cooperando entre si. Ao mesmo tempo, não existe, na América Latina, uma visão clara sobre o papel que a região quer exercer no mundo. Falta coordenação até mesmo para se relacionar com a China e melhorar as condições de negociação, coisa que os chineses fazem com êxito nas suas operações bilaterais na região.
O Brasil ainda é um líder na América Latina ou perdeu esse lugar?
A pergunta é: aos olhos de quem? É comum ouvir que o Brasil é um líder sem seguidores. O País tem, sem dúvida, um certo peso na América do Sul, e quando as pessoas na Europa pensam na América Latina, a primeira coisa que veem é o Brasil. A questão é que o hard power brasileiro é tão grande (a economia, a população, a quantidade de água doce, a biodiversidade, a Amazônia etc.) que, no fundo, é isso que está contando. Mas a Europa comete o erro de pensar que o Brasil e a América Latina são a mesma coisa.
E o que o Brasil faz com isso?
No Itamaraty, até existe a ideia do Brasil como um país-ponte entre o Norte e o Sul globais, mas o Brasil não tem tradição de representar interesses ou posicionamentos em fóruns internacionais que tenham sido acordados na região primeiro. Uma vez, discutindo isso com um diplomata brasileiro, ele me disse assim: “Não se pede à França que fale pela Europa… O Brasil tem todo o direito de falar também pelo Brasil”. É uma crítica justa. Mas, se é assim, é preciso escolher se será um líder regional ou se irá ao mundo com a própria agenda. É difícil combinar as duas coisas.
E quem pode ocupar esse lugar?
Não vejo nenhum outro candidato. Em geral, os grandes da região — Argentina, Brasil e México — não se coordenam para representar a América Latina nem se coordenam entre si.
Considerando as questões globais mais relevantes hoje, o Norte Global esperava um posicionamento diferente do Brasil?
Surpreende-me que sempre estejam esperando coisas que não se deve esperar de um governo brasileiro. Na entrevista à imprensa depois de visitar Lula em Brasília, o[chanceler alemão]Olaf Scholz estava visivelmente descontente com a recusa do País em mandar munição à Ucrânia, por exemplo. Era claro que isso não aconteceria. A expectativa de que o Brasil apoiasse as sanções contra a Rússia — que não é típica da diplomacia brasileira — é outro caso. São expectativas equivocadas, que expressam falta de conhecimento [sobre o Brasil] mesmo. Mas existem outras que são mais compreensíveis.
Quais?
É estranho que o Brasil tenha condenado a invasão russa à Ucrânia na ONU e, depois, tenha recebido[o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey]Lavrov em Brasília, como se ele não fosse membro de um governo que acabara de invadir outro país. Como analista do Brasil, não fico esperando pelo rompimento da relação com os russos, mas tampouco imagino que, logo após a diplomacia brasileira ser clara em dizer que se trata de uma violação de direito internacional, o governo receba Lavrov com todas as honras possíveis. Na Europa, isso é incompreensível — e eu entendo que seja assim. Alguns comentários de Lula, como dizer que não está claro quem tem culpa na guerra, também contradizem a votação do Brasil na ONU. Sinto que aqui se espera um posicionamento mais explícito, como o adotado pelo [presidente do Chile] Gabriel Boric. Ainda assim, entendo quando Lula diz que esse não é o único conflito atual, que existem várias outras guerras no mundo pelas quais a Europa não se interessa e que o que está acontecendo na Ucrânia, embora tenha efeitos globais, é uma guerra, sobretudo, europeia. Lula falou isso no G7. Compreendo bem essa crítica de que nem tudo o que acontece na Europa é relevante para o mundo inteiro por natureza.
E como você entende a visão brasileira do mundo hoje?
O Brasil tem um jogo próprio multipolar, mas com limites. Faz parte do Brics, e, se por um lado, não quer transformá-lo em um clube antiocidental, também não quer que ele se expanda em direção a outros atores, o que relativizaria o próprio peso no bloco. O Brasil é o único membro do Brics que condenou a invasão russa na Ucrânia. Da mesma forma, Lula manteve o requerimento de entrada na OCDE, o que é bastante ocidental, e, apesar de algumas reservas, também quer fechar o acordo do Mercosul com a União Europeia (UE). Quando eleito, disse que o País estava “de volta” ao cenário internacional, que foi interpretado justamente como uma mensagem ao Ocidente de que o Brasil estava retornando às normas e ao multilateralismo. Isso é mais europeu do que norte-americano. Vejo ainda que há interesse em participar da maior parte das mesas possíveis, seja na ocidental, seja nas mais revisionistas.
Lula tem frequentado muito a Europa desde que voltou à presidência. Por que essa relação com a UE está assim?
Depois de Bolsonaro, a verdade é que as pessoas aqui ficaram tão felizes com a saída dele que se esqueceram das questões problemáticas antigas dessa relação. Parece-me que existe uma visão romântica dos primeiros governos Lula. Isso é o Brasil visto da Europa. Mas outra coisa é o próprio interesse europeu no Brasil e na América Latina. Na Alemanha, algumas bancadas parlamentares e o Ministério de Cooperação Econômica e Desenvolvimento acabaram de publicar novas estratégias para a América Latina, e aconteceu, há alguns dias [em julho], a reunião da UE com a Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, bloco regional intergovernamental], também com uma nova agenda para a região. Não são coisas separadas: um maior interesse pelo Brasil e pela América Latina andam juntos.
E por que há mais interesse agora?
A busca por autonomia estratégica pela UE. Ela tem duas ramificações: a primeira é de caráter geopolítico. A Europa quer saber se, em determinadas situações de conflito, pode contar com o apoio dos governos latino-americanos em organismos multilaterais. É uma procura por aliados políticos. A segunda trata da diversificação da estrutura comercial, ou seja, da busca por matérias-primas e energias renováveis cujas fontes estejam além da Rússia e da China. E é aí que entra a América Latina e o Brasil.
Este é um momento-chave, então?
Sim. Essa relação viveu muitos momentos-chave, mas a necessidade europeia agora é grande. A verdade é que todo mundo está em choque com o que aconteceu na Ucrânia. Havia sinais de que a Rússia poderia invadi-la, mas a efetivação disso faz com que os europeus temam que, em breve, aconteça o mesmo com a China. A tentativa é por ser mais independente não só dos russos, mas também dos chineses. E daí quem sobra? A África e a América Latina, que está mais distante, mas tem melhor infraestrutura, mais institucionalidade e democracia. Existem duas preocupações agora. Uma é estipular um marco e mantê-lo adiante, com acordos, investimentos a longo prazo, projetos de investigação e inovação. Outra é que esses projetos não sejam puramente extrativistas, o que intensificaria os contatos entre Europa e América Latina, mas de maneira assimétrica.
Por outro lado, o interesse da UE é por manter uma fonte de matérias-primas. Não se trata de aprofundar esse lugar?
Essa é uma motivação, sem dúvida. Mas, veja, o maior relacionamento da América Latina com a China foi motivado pelo interesse latino-americano em diversificar os sócios comerciais. O que a China aportou de início, como parte dessa diversificação, terminou por ser uma concentração demasiado elevada depois. Hoje, ao contrário, diversificação para a América Latina significa se distanciar economicamente dos chineses. Por outro lado, a região precisa de dinheiro para combater a pobreza. O paradoxo é que isso se faz criando fontes de trabalho, e a indústria extrativista não gera tantos empregos. Logo, é preciso encontrar modelos de desenvolvimento que permitam uma utilização sustentável das matérias-primas, gerem recursos para o combate da pobreza e, ao mesmo tempo, criem empregos. Não só: é preciso que outras etapas de produção sejam feitas na América Latina e que, apenas em um estágio posterior, sejam exportadas para a Europa e os Estados Unidos. Hoje, muitas das matérias-primas que saem originalmente da América Latina e chegam, ao fim, na Europa passam por uma primeira fase de manufatura na China. O que está em jogo agora é que esses produtos não tenham que passar por essa intermediação chinesa.
Você escreveu recentemente que a UE tem uma nova agenda para a América Latina e o Brasil. Do que se trata e quais são os desafios para implementá-la?
É uma agenda ampla que inclui diálogo político e cooperação concreta em áreas temáticas — das matérias-primas e fontes de energia à questão ecológica. Se ela é bastante biregional, no sentido de que foi escrita pensando na reunião da UE com a Celac [em julho deste ano], a implementação não será dessa forma, mas, sim, sub-regional e bilateral. Nunca a União Europeia esteve tão disposta a ter uma relação bilateral com os países da América Latina, o que se deve à perda das esperanças de que esses mecanismos subregionais — Mercosul, Unasul, Aliança do Pacífico, Comunidade Andina etc. — atuem como plataformas de cooperação entre países-membros latino-americanos com a UE. Ao mesmo tempo, não se acabaram as expectativas de assinar o acordo com o Mercosul, que seria a efetivação dessa agenda sub-regional. Mas não estou tão otimista que isso acontecerá neste ano.
Mas será fechado?
Neste ano, não. Algum dia, não sei.
O que está em jogo nesse acordo?
Quando foi criado, nos anos 1990, o Mercosul era um trampolim para a integração na economia internacional. Assim, havia lógica em buscar acordos comerciais com outros espaços integrados. O modelo econômico, as relações externas, tudo tinha sentido. Se olharmos para os países com os quais o Mercosul já tem acordos desse tipo, veremos que todos são irrelevantes desde a perspectiva do bloco. Esse tratado seria o que lhe daria peso no relacionamento externo. Já para a Europa, se ela quer ter um pé econômico comercial na região, a porta de entrada é o Mercosul. Mas o que está em jogo, agora, é a própria credibilidade. [Se o acordo não for fechado], vai prejudicar a relação birregional e as imagens do Mercosul e da UE.
Você tem argumentado que o Itamaraty mudou de trajetória nos últimos anos. É possível fazer transformações robustas em pouco tempo?
O que analisei, na verdade, foi a desvalorização da América Latina dentro do programa do Itamaraty durante o período do governo Jair Bolsonaro, quando o ministro da ocasião [Ernesto Araújo]nemsequer era diplomata e houve aproximações mais fortes com países como Estados Unidos e Israel. Muita gente que não apoiava a política de Araújo foi, inclusive, colocada em postos de menor peso dentro da instituição. Outra mudança foi no comportamento em fóruns internacionais, locais em que o Brasil sempre teve posicionamentos muito progressistas em torno de direitos. Também teve uma mudança de rota no lugar do Brasil no conflito entre Israel e Palestina, que, antes, era baseada em direitos humanos e, por isso, implicava certo tom crítico à política israelense. Na época de Bolsonaro, Israel foi declarado um “país amigo”. Todas essas coisas foram transformações robustas na tradição da diplomacia brasileira.
Mas houve resistências?
Sim, dentro e fora do Itamaraty. Mas como foram só quatro anos, são mudanças reversíveis. Era mais difícil mesmo para as representações, porque havia embaixadores brasileiros em desacordo com a política externa do país que representam. Eles tentaram ao máximo não se exporem.
Onde o Brasil já é protagonista no cenário internacional?
O Brasil tem uma tradição muito importante na ONU, desde a fundação. Mais do que isso, há uma identificação entre o País e a instituição que se vê também nos organismos. Lula mesmo percebeu isso e, por um período, tentou inserir brasileiros e brasileiras em todos os postos importantes dessas entidades ligadas à ONU. Lembro-me também de uma discussão em nível internacional sobre responsibility to protect, em que o Brasil apareceu com o conceito de responsibility while protecting, que foi muito valioso. São formas de o Brasil dizer ao mundo que desenvolve ideias, que gosta do multilateralismo, não participa de guerras… É uma agenda que gostaria de ver de novo.