“O recente apagão de eletricidade na Região Metropolitana de São Paulo, após um simples temporal, mostra o desprezo e o despreparo das companhias que obtêm concessões para explorar um serviço público.” A afirmação é do cientista Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), que expõe a sua visão sobre o fato de as cidades brasileiras não estarem preparadas para os eventos climáticos extremos. Segundo ele, apagões no fornecimento de energia elétrica por causa de temporais e tragédias ocorridas após deslizamentos de terra mostram a necessidade urgente de repensar as políticas públicas e a dinâmica econômica, que inclui os serviços prestados pelas concessionárias de serviços.
Artaxo lembra que os efeitos das mudanças extremas do clima, em especial nas regiões mais pobres do planeta, devem ser tema de discussão durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28). As soluções, afirma, dependem muito mais de planejamento urbano e governos eficientes do que recursos financeiros. Confira, a seguir, a entrevista com o cientista.
Está muito claro para a população que as mudanças climáticas — antes, uma questão do futuro do nosso planeta — se tornaram um obstáculo do presente. Isso está impactando a economia do País, as pessoas, a saúde da população, os ecossistemas, as áreas costeiras, a Amazônia e assim por diante. Também provocam impacto às cidades brasileiras, que não estão preparadas para o aumento, a frequência e a intensidade dos eventos climáticos extremos. Observamos um despreparo total das defesas civis, que não têm capacidade para lidar com enchentes, desabamentos intensos e chuvas acima de 100 ou 200 milímetros, como temos observado muito frequentemente. São questões que foram previstas pelos modelos climáticos, nós sabíamos que isso iria acontecer, mas, infelizmente, o Brasil está muito despreparado e não se adaptando ao novo clima do planeta.
A questão dos deslizamentos de terra é particularmente importante, porque existem milhares de pessoas que vivem em áreas de risco no Brasil. Isso foi adequadamente monitorado e identificado pelo IPT em São Paulo e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Mas, infelizmente, nenhum prefeito ou órgão responsável tomou medidas nas proporções necessárias. Isso causa perda de vidas — em geral, de pessoas de baixa renda, que são as mais vulneráveis e já estão sofrendo o impacto de deslizamentos de terra. Isso pode ser resolvido de uma maneira muito fácil, por meio de identificação dessas áreas, realocação das pessoas e ações governamentais concretas, efetivas e baseadas na ciência.
Isso mostra o desprezo e o despreparo das companhias que obtêm concessões para explorar um serviço público, como o fornecimento de eletricidade. É muito grave, porque essas empresas têm a responsabilidade de garantir o fornecimento de energia elétrica. Para isso, conseguiram as concessões e ganham muito dinheiro com isso. Quem sofre com a incompetência dessas concessionárias é a população. No meu bairro, por exemplo, ficamos cinco dias sem luz, muitas pessoas perderam produtos que estavam na geladeira e houve um transtorno enorme para a população. Pior: basicamente, não há penalidade alguma às concessionárias, que, apesar de demonstrar incompetência, não respeitam os direitos da sociedade, como vimos no caso do apagão em São Paulo.
O Brasil precisa de uma política clara e bem implementada sobre como lidar, nas áreas urbanas, com a questão das mudanças climáticas e o aumento de eventos climáticos extremos. É uma demanda muito urgente, mas que pode ser facilmente resolvida. Temos de reforçar, e muito, as equipes das defesas civis, além de melhorar a comunicação entre os municípios e a defesa civil estadual e o governo federal, junto com o Cemaden. A partir daí, identificar e redesenhar as maiores fragilidades, cidade por cidade. Na capital de São Paulo, por exemplo, a rede de drenagem foi desenhada nos anos 1950 e, certamente, precisa ser redesenhada, pois o perfil das precipitações mudou muito. Hoje, temos quatro vezes mais chuvas muito intensas, acima de 100 milímetros em 24 horas, do que tínhamos nas décadas de 1950 e 1960 do século passado. Precisamos preparar as cidades para esse novo clima, que já mudou e vai continuar mudando.
Tanto as pequenas como as médias cidades — e as nossas megalópoles — estão despreparadas quanto ao clima. Elas sofrem prejuízos financeiros enormes com ondas de calor, chuvas torrenciais, distribuição de água, precariedade do serviço de transmissão de energia elétrica e assim por diante. É possível mensurar, sim, os prejuízos. Vários centros de pesquisa estão trabalhando para desenvolver métodos de avaliação. Em geral, é muito mais barato trabalhar preventivamente do que correr atrás do prejuízo depois que esses acidentes ocorrem.
Não há a menor dúvida de que as regiões mais pobres do planeta serão as mais afetadas pelos efeitos das mudanças climáticas. As grandes cidades são alvos muito importantes pela gigantesca densidade populacional e pelos potenciais prejuízos que trazem à população Nós precisamos de um sistema global que ajude os países em desenvolvimento a se adaptarem ao novo clima, e isso é um tópico que está sendo discutido na agenda da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28). Esperamos que nossos governantes deem a atenção necessária para esse tema, que é muito relevante e prioritário.
Mitigar os impactos das mudanças climáticas não é uma questão de recursos. É muito mais um caso de planejamento urbano adequado, com integração entre diferentes agentes que possam ajudar a diminuir a problemática da comunicação da defesa civil com a prefeitura e com as concessionárias de energia e de água, por exemplo. É uma questão de falta de competência para auxiliar a população a lidar com a situação de emergência climática — que já está conosco aqui e agora.
Chegamos a tal nível de gravidade das mudanças climáticas globais que é muito difícil para cada cidadão, individualmente, fazer um trabalho importante do ponto de vista de amenizar os efeitos climáticos extremos. Nós precisamos de governos fortes, que pensem em soluções voltadas à população, e não a concessionárias ou empresas cujos interesses sejam, obviamente, diferentes dos da população em geral. Precisamos que nossos administradores sejam pressionados para que tomem medidas a favor da população, principalmente os locais mais carentes e em maior situação de risco.
Estamos passando por uma crise climática muito grave que vai durar várias décadas, senão alguns séculos. Essa crise evidencia que temos de mudar todo o nosso sistema produtivo econômico — hoje, incompatível com os recursos naturais do nosso planeta. A exploração desenfreada desses recursos está causando mudanças no clima. Precisamos trabalhar e construir uma nova sociedade, com um sistema econômico que seja sustentável, reduza as desigualdades sociais e melhore a resiliência da população em relação ao clima. Isso passa pela melhoria da qualidade da nossa democracia e da perspectiva de governos que efetivamente pensem no bem-estar da população, e não apenas no lucro de algumas empresas ou concessionárias. Isso é absolutamente estratégico para que possamos construir um futuro que seja minimamente sustentável.