Desde 2009, quando a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil, superando os Estados Unidos, o País procura entender como sustentar esta relação. O agronegócio fez o grosso do trabalho, reforçando as exportações de carnes e soja – em 2020, mais de 70% da produção nacional do grão foram adquiridos pelos chineses, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Dados do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) mostram que, entre 2012 e 2021, as exportações para o gigante asiático cresceram, em média, 8,8%.
Este histórico de relações intensas vai pesar na viagem do presidente Lula a Pequim. “A primeira coisa que Lula fará será, sem dúvida, mostrar que o Brasil está em uma fase amistosa com eles”, afirma a economista Janaína Câmara, que edita o Radar China – publicação que analisa o país.
O contexto da visita do presidente brasileiro, segundo Janaína, é também o de muitas mudanças nas relações entre ambos os países. Pelo lado dos chineses, há desaceleração nos investimentos em infraestrutura no Brasil e foco em projetos que vão da indústria de carros elétricos à economia digital.
Leia, a seguir, a entrevista de Janaína para a Problemas Brasileiros.
A China quer exportar tecnologia. Isso fica muito claro nas trocas econômicas com seus vizinhos asiáticos, que têm sido reforçadas com as remessas de carros elétricos e a expertise na produção de energia limpa – que vai do mercado de hidrogênio verde até as captações solar e eólica. Este momento está sucedendo um anterior, protagonizado por grandes estatais chinesas do setor de infraestrutura – ferrovias, energia e petróleo –, que buscavam exportar as capacidades excedentes para fora. Naquela época, elas saíram em busca de mercados em outras regiões do planeta. É interessante observar como, se internamente seguem focando no aumento da produtividade, no exterior, o método dessas empresas tem sido mais baseado na tentativa e no erro. É por isso que não existe este mapa tão perfeito do mundo feito pelo país.
Sim. Vários projetos chineses fracassaram aqui. Em 2018, por exemplo, a China anunciou a construção de um porto em São Luís, no Maranhão, para embarcar grão e petróleos direto para lá. O plano era erguê-lo em três anos, mas as obras foram largadas há dois, quando o consórcio que tocava o projeto o abandonou.
Desde o início dos anos 2010, o Brasil é um polo de atração na América Latina. Mais até do que países como o México, que tem atraído investimentos chineses mais robustos só nos últimos anos. No nosso caso, estes aportes estão sendo feitos, sobretudo, em áreas como Energia e Extração de Petróleo. Inclusive, o ano de 2010, especificamente, é definidor dessa relação, porque foi quando a State Grid, uma gigante estatal da China, comprou sistemas de distribuição de eletricidade tanto no Centro-Oeste quanto no Sudeste. Foi, aliás, naquela época em que essas empresas estavam saindo pelo mundo investindo em vários tipos de projetos. A State Grid venceu dois leilões da [usina] Belo Monte, no Pará, assumindo um tamanho relevante no setor energético brasileiro. É interessante que, se nós vendemos algumas commodities que se integram às estratégias chinesas, como petróleo e minérios de ferro, as relações mais recentes entre os mercados de ambos os países não envolvem os mesmos fluxos robustos de investimentos, como o de cortes de carnes e o de soja.
Porque apesar da demanda pela soja, a China não parece mais interessada em investir em projetos de infraestrutura no Brasil. Na verdade, o que ela gostaria é que o nosso país conseguisse enviar essas commodities de forma mais barata para lá – embora este desejo também não seja central na agenda econômica chinesa aqui.
Apontaria três motivos: o primeiro é que a China considera o Brasil um grande player na região e um país de tamanho médio no cenário global. Em segundo lugar, porque marca uma posição em relação aos Estados Unidos, já que o Brasil exerce um papel estratégico na geopolítica da América Latina. Por último, os chineses sabem que o mercado interno brasileiro é bastante robusto. É uma atração econômica relevante.
Os investimentos da China no Brasil estão crescendo em quantidade, mas caindo em termos de valores. O ritmo dessa mudança foi dado pelas estatais. Entre 2007 e 2021, os chineses colocaram US$ 70 bilhões em projetos no País, e o grosso deste montante saiu dessas empresas públicas. Agora, ao contrário, o caminho que está sendo traçado passa por empresas da chamada “economia digital”. Isso se vê, no cotidiano brasileiro, em negócios como o aplicativo 99Táxi ou as plataformas de e-commerce que desembarcaram aqui trazendo estruturas logísticas. A perspectiva delas é, justamente, de que é o mercado interno nacional vale a pena porque é robusto, mas são perfis que fazem investimentos locais menos vultosos se comparados a projetos de infraestrutura. A produção de carros elétricos talvez seja um horizonte mais concreto: um grupo chinês comprou recentemente uma planta da Mercedes-Benz em Iracemápolis, no interior de São Paulo, e a venda do antigo complexo da Ford em Camaçari, na Bahia, para o conglomerado BYD, estará na pauta do presidente Lula nessa viagem a Pequim. O que está em jogo hoje é o interesse da China em trazer tecnologias e formas de produzir para cá.
A Argentina é um bom exemplo. A China entrou em alguns mercados que eram dominados pelo Brasil no país, como a indústria automotiva. Foi um impacto direto desses movimentos chineses pelo mundo nos nossos negócios. Na África, havia uma forte presença brasileira nos setores de serviços e de construção civil que diminuiu, no mesmo intervalo em que a chinesa aumentou. Hoje, a China já se coloca formalmente como uma parceira do desenvolvimento no continente africano – e esta competição se dá diretamente com nossos projetos lá. Por outro lado, ainda é possível explorar mercados onde os chineses não estão tão dispostos a entrar.
Sim. É interessante notar que a China só compra nossa soja para fazer ração animal e para aplicações secundárias. A soja consumida pela população chinesa é produzida internamente. A nossa não serve porque é geneticamente modificada – o que faz, aliás, com que a União Europeia não compre jamais da gente. A China é o quarto maior produtor de soja do planeta, mas conta com uma demanda muito maior para o consumo próprio. De qualquer forma, esta característica permite uma entrada maior da soja da China no mercado europeu do que a nossa. O caminho para o Brasil seriam os vizinhos continentais e a África.
O carro elétrico é uma delas. A China decidiu há muito tempo parar de investir em fábricas de automóveis a combustão e focar nos movidos a eletricidade, vislumbrando que eles transformariam a estrutura do mercado automotivo global. Estavam certos. Isso tem acontecido também em alguns investimentos em infraestrutura para a geração de energia limpa. O Nordeste já tem alguns parques eólicos chineses erguidos em alto-mar, por exemplo. A tendência é que o país asiático saia cada vez mais pelo mundo atrás de parceiros que garantam produções sustentáveis, em um movimento que faz parte da meta de Pequim de encerrar todas as emissões de carbono do país até 2060. A Cofco, uma trading chinesa que importa bastante soja brasileira, publicou há três anos o compromisso de garantir que todas as suas remessas viessem de fontes sustentáveis até 2023. Não é à toa que a comitiva brasileira tentará parcerias envolvendo o nosso agronegócio e a demanda verde chinesa. Neste sentido, é possível pensar até se os próximos investimentos em infraestrutura no Brasil não serão nessa direção.
Não. Eles são pragmáticos o suficiente para colocar cada tipo de relação em seu próprio contexto. Desde, claro, que o Brasil não seja crítico à postura da China no conflito – e não tem sido. Lula, inclusive, já declarou que a China é neutra, o que é refutado pelos analistas globais, mas que está em conformidade com o que a diplomacia chinesa sustenta oficialmente. Nessa viagem, ele deve propor ao [presidente chinês] Xi Jinping a criação de um “grupo da paz”, um mecanismo para avançar as negociações em direção ao fim da guerra, que não vai funcionar, porque a China não aceitaria integrá-lo. De qualquer forma, essa proposta se alinha ao discurso chinês de procurar o fim do conflito sem tomar lados, mas tentando garantir, ao mesmo tempo, que o mundo reencontre um cenário pacífico. O Brasil parece estar neste mesmo lugar. É nesse sentido que, se se fala muito dos diálogos do governo da China com a Rússia, pouco se diz a respeito dos canais que eles mantêm abertos com a Ucrânia.
É uma saia justa, porque há dois caminhos a seguir: ou o Brasil fica malvisto na comunidade internacional por um suposto alinhamento com a Rússia ou se indispõe com China e Rússia – principalmente depois da condenação mais veemente que a diplomacia brasileira fez aos russos na ONU. Essa reunião do Brics será, sem dúvida, mais delicada do que a visita de Lula agora a Pequim. Exigirá muita cautela da nossa diplomacia.
Há nichos que olham para a China de forma sistemática, enquanto outros caem na polarização recente. Se conseguirmos sair disso, poderemos olhar para coisas que ajudariam a resolver alguns dos nossos dilemas. Uma delas é que a China conseguiu erradicar a pobreza extrema em 2020, quando a população do país era de 1 bilhão e 400 milhões de pessoas. Neste processo, eles se atentaram a programas criados aqui, como o Bolsa Família e o Fome Zero. Poderíamos fazer o mesmo movimento. Um projeto interessantíssimo chinês foi inserir pessoas em cadeias produtivas por intermédio das plataformas de vendas online. Para dar cabo a isso, investiram maciçamente em infraestrutura, que conectou todas as províncias com ferrovias e estradas. Deu certo, porque permitiu que as pessoas se adentrassem nos mercados a partir das próprias expertises e pudessem fazer seus produtos circularem pelo território do país. Seria como comprar um cacau da Bahia hoje estando no Rio Grande do Sul e ele chegar já no dia seguinte. A tecnologia é outro exemplo: enquanto existem mais de 400 cursos de Inteligência Artificial (IA) nas universidades chinesas, não há nenhuma faculdade dedicada a isso no Brasil. A mesma coisa com o inglês, que faz parte do currículo de boa parte dos cursos universitários de lá e são raros por aqui. Em tudo isso, o que se vê não é um parceiro comercial ou um investidor estrangeiro, mas um país que permite trocas intelectuais e tecnológicas mais amplas.
Tem muita coisa na agenda. O grupo de paz para o conflito na Ucrânia é um deles. Um convite para a China ingressar no Fundo Amazônia é outro. Há ainda a conversa por um acordo de livre-comércio – desejado por ambos, mas que causa irritação aos Estados Unidos – e a própria pauta ambiental, que cruza temas que vão de investimentos em tecnologias limpas até a própria imagem chinesa no Ocidente. Ao se colocar ao lado do Brasil nesses projetos sustentáveis, a China reforça um compromisso com o tema, que tem alcance global hoje, e ainda produz uma imagem diferente em boa parte do mundo. Contudo, a primeira coisa que Lula fará em Pequim será, sem dúvida, mostrar que o Brasil está em uma fase amistosa em relação à China, isto é, que quer ampliar parcerias e retomar mecanismos bilaterais. É um sinal de que estamos novamente de braços abertos a eles.