entrevista

O país do sol

30 de janeiro de 2024
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O Brasil de 2024 vai se encontrar, novamente, com vários Brasis de décadas passadas. O crescimento econômico dos últimos anos, por exemplo, não diminuiu o abismo social entre as camadas mais pobres e médias e os estratos mais altos da sociedade. Da mesma forma, a novíssima agenda verde do País — que marcou o início do atual governo e chegará ao ápice na COP30, em Belém (PA), no ano que vem —, é repleta de dilemas antigos, como o desmatamento incontrolado da Floresta Amazônica e a possibilidade estrutural dos produtos e serviços oferecidos no mercado global se tornarem commodities.

De acordo com o economista Ricardo Abramovay, que leciona na Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), esse é o próximo grande assunto que o Brasil deve debater. Ele foi entrevistado pela Problemas Brasileiros durante sua palestra na Conferência Ethos 360, organizada pelo Instituto Ethos, no fim de 2023. A seguir, trechos da conversa.

O senhor diz, há algum tempo, que a economia global precisa se reinventar — e fazer isso com certa urgência. Tem algo acontecendo nesse sentido, hoje?

Esse é um processo emergente que depende de muitos fatores dos quais alguns são até inesperados. Temos de atuar onde seja possível. Há mudanças muito grandes já. A primeira delas é a consciência cada vez maior dos problemas climáticos contemporâneos, por exemplo, ou então das desigualdades sociais existentes no mundo e os impactos cotidianos, tema que já atravessa muitas conferências multilaterais. Mais do que isso, trata-se do vínculo dessas duas coisas com o processo de organização econômica. Há, ainda, outro elemento: a era digital.

Qual é o papel dela?

Quando a era digital foi anunciada, na primeira década do milênio, aparecia como um fator de emancipação. Nos objetivos ligados ao desenvolvimento sustentável, inclusive, a meta era justamente ampliar o acesso a dispositivos digitais. Hoje, se fôssemos estabelecê-los, já seriam outros: impedir que a democracia seja comprometida, combater as fake news, a sistemática invasão de privacidade e, principalmente, essa lógica de que “o vencedor leva tudo”, porque a era digital, agora, diz respeito a uma concentração de poderes político e econômico absolutamente inédita na história do capitalismo. É uma situação em que os Estados estão sendo incapazes de qualquer tipo de regulação, porque essas empresas se colocam como prateleiras neutras nas quais todo mundo pode divulgar suas informações, e o público também consegue, depois, coletá-las. Não tivemos nada parecido nas outras eras industriais. Já há uma reação das sociedades contra isso, mas é difícil.

Por quê?

A era digital permitiu a emergência de fenômenos novos. Um deles foi o fortalecimento da extrema direita. Surgiu uma espécie de esfera pública oculta, em que as coisas são ditas de maneira massificada, mas não necessariamente debatidas de forma aberta. Elas são ditas em círculos relativamente fechados, embora em massa. Isso torna a discussão pública bastante difícil e, por consequência, compromete a democracia. Mas o ponto é que não se trata de otimismo ou pessimismo. Nossa tarefa, principalmente de pesquisadores e ativistas, é entender os muros da prisão que estão permanentemente rachados. Precisamos encontrar essas rachaduras para poder aprofundá-las.

E nós temos conseguido encontrá-las?

Nós passamos há pouco por um período muito ameaçador. Foram quatro anos de fanatismo fundamentalista que não continuaram por mais tempo por um triz. Agora, aconteceu na Argentina, e não sabemos até quando vai durar, enquanto nos Estados Unidos há uma chance grande de [o ex-presidente] Donald Trump ser reeleito. Nessas circunstâncias, as negociações globais em torno de temas estratégicos, como a paz ou o meio ambiente, são muito difíceis de desenhar. Mesmo com toda a consciência que temos sobre as ameaças climáticas, 2022 ainda foi o ano em que batemos todos os recordes de emissões de gases, por exemplo. Da mesma forma, com toda a discussão atual sobre a relevância da Amazônia, nós desmatamos 9 mil quilômetros quadrados da floresta no ano passado, ainda que esse número tenha representado uma queda de 42% em comparação ao ano anterior. Isso é absolutamente inadmissível, sobretudo quando perguntamos os motivos para destruir a floresta. Foi para matar a fome das pessoas? Foi para melhorar a vida delas? Não. Foi para ser patrimônio de um número muito pequeno de indivíduos com base em atividades criminosas.

Você também costuma dizer que é preciso reunificar os conceitos de ética e economia. O que isso significa?

A ciência econômica se consolidou no fim do século 19 como uma ciência cinzenta, sombria, porque levava em consideração interesses individuais. A ideia de fundo era que se cada indivíduo perseguisse os próprios objetivos, o resultado agregado seria a melhora do bem-estar coletivo. É uma legítima ficção científica. O que as ciências sociais contemporâneas mostram, inclusive a economia, é que as relações econômicas só resultam em desenvolvimento se forem norteadas por preocupações de natureza ética. É uma conclusão que aparece, sobretudo, na figura do [economista indiano] Amartya Sen, mas também na de Ignacy Sachs [economista francês]. Sen, por exemplo, define desenvolvimento como o processo permanente de expansão das liberdades substantivas dos seres humanos. Isso quer dizer que uma vida econômica que resulte na produção de bens materiais é importante, mas é ainda mais relevante saber o que as pessoas fazem com esses bens. Quando se produzem mais SUVs [do inglês, Sport Utility Vehicle, modelos de veículos utilitários esportivos], é claro que se está produzindo mais riqueza, mas também se está gerando mais poluição, acidentes e trânsito nas cidades. Quando se produzem alimentos ultraprocessados, também tem riqueza sendo produzida, mas também mais obesidade, doenças cardiovasculares e, consequentemente, mais ônus para os sistemas de saúde. A junção entre a ética e a economia significa que, no âmbito de uma vida econômica em que atores privados têm o papel central, é fundamental que eles recebam ofertas de bens e serviços que favoreçam o florescimento do que têm de melhor — e não do que têm de pior.

Você vê isso acontecendo de alguma forma?

Acontece parcialmente. Nós temos, hoje, mais bens em saúde, por exemplo. O problema é que tudo isso segue muito longe de atingir a maioria esmagadora da população que, se não vive em fome, está em um limiar que, como diz [o economista canadense] John Kenneth Galbraith no brilhante A natureza da pobreza das massas [Nova Fronteira, 1979], vive com a água no queixo. Atualmente, a fome atinge 10% da população global, o que é uma coisa vergonhosa — enquanto 40% da espécie humana estão no limite de sobrevivência. O [sociólogo] Marcelo Medeiros mostra bem isso também no seu mais recente livro, Os ricos e os pobres [Companhia das Letras, 2023], apontando como, no Brasil, 80% das pessoas estão nesse lugar em que, uma hora, têm uma vida relativamente confortável e, na outra, não sabem se vão conseguir levar comida para casa.

Economistas como Amartya Sen também suspenderam o conceito de Produto Interno Bruto (PIB) como métrica de mensuração da riqueza. Nessa mudança urgente da economia, ainda é importante pensar em outras formas de medir avanço econômico?

É fundamental. Isso já está sendo feito por muitas entidades globais há, pelo menos, 30 anos. A questão é que essa preocupação precisa ser sobre quem o crescimento econômico favorece e o quanto este impacta a vida das pessoas em situação de pobreza. O próprio Sen escreveu um artigo sobre desenvolvimento, por volta de 1988, citando o Brasil dos anos 1970 como um exemplo de país onde o crescimento resultou em concentração de renda e, por consequência, em aumento da desigualdade. A lição ali era que, quando a economia cresce, a pobreza tende a diminuir, mas existe o risco de as desigualdades aumentarem. É por isso que precisamos de um parâmetro de desenvolvimento que esteja centrado no combate às diferenças sociais, na oferta de bens públicos, na melhoria real das condições de vida. Os próprios criadores do PIB como medida de valor reconheciam esses limites.

Isso em todos os lugares?

Os Estados Unidos são um exemplo. O crescimento estadunidense é altamente concentrado no topo minoritário, enquanto uma parcela superior a 90% da população não experimentou aumentos de renda e de bem-estar como decorrência desse processo. É muito grave.

E por que o PIB permanece tão relevante no debate econômico?

Porque, politicamente, não há governo que consiga renunciar à apologia do PIB como medida de valor. Se a economia cresce, o nível de vida dos mais pobres tende a aumentar e, então, as chances de reeleição sobem.

Mudando de assunto: o Brasil tem condições de liderar a agenda verde global?

A grande aposta do governo atual, em torno da energia verde, é correta. Eu fiz parte da banca de doutorado de Rafael Dubeux, técnico do Ministério da Fazenda que redigiu o projeto atual sobre energia sustentável. A tese dele, orientada pelo professor Eduardo Viola [do Departamento de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas — FGV], dizia muito sobre como a energia nacional estava estacionada no século 20. Por quê? Porque o Brasil era muito bom em construção civil e eventualmente na produção das pás da captação eólica, mas era muito retardatário em todas as outras tecnologias avançadas, como a dos motores voltados à produção energética. Não é à toa que o projeto atual de Dubeux é tornar as cadeias de valor brasileiras densas em conhecimento. O plano é não fazer hidrogênio verde simplesmente como uma commodity para exportação, deixando os benefícios do know-how para os países mais ricos, mas interiorizar essas cadeias sobre bases de processos industriais robustos.

E o que atrapalha esse tipo de iniciativa?

O que me preocupa mais é a Agropecuária, em que ainda temos um sistema extremamente eficiente do ponto de vista do que entendíamos como eficiência antes da crise climática. Nós protagonizamos a revolução de ter a agricultura tropical mais importante do mundo por meio da ocupação de grãos no Cerrado, mas a permanência disso está sendo inviabilizada pelas mudanças do clima. Só em 2023, o prejuízo foi de R$ 34 bilhões, enquanto nos últimos dez anos, esse prejuízo passou de R$ 300 bilhões. A soja brasileira é altamente subsidiada, com cerca R$ 50 bilhões em isenções fiscais, mas continua avançando sobre a Amazônia. A impressão que fica é que os interesses são muito mais patrimoniais do que produtivos. O Estado tem, inclusive, colaborado com eles por meio de seguros rurais.

Como isso funciona?

A bancada ruralista acabou de apresentar um projeto no Congresso para que o Seguro Rural se torne permanente e que não tenha teto — ou seja, é uma forma de a produção continuar mesmo se sabendo que haverá uma seca em breve, por exemplo, cujo impacto pode inviabilizar a colheita. Em outras palavras, a produção é garantida por um seguro rural bancado pelo Tesouro. É um modelo inviável. Outro interesse patrimonialista são as produções de aves e suínos no mundo, que não só representam tortura aos animais como acarretam um dos problemas mais graves, reconhecido dessa forma pela ONU: o uso de antibióticos na alimentação deles que aumenta a resistência humana aos antimicrobianos.

Mas, ao mesmo tempo, a Agropecuária tem sido importante para a economia do País…

Muito importante. Mas ela responde por um terço das emissões de gases do efeito estufa e é a maior responsável pela erosão da biodiversidade brasileira. É justamente por isso que o Brasil precisa liderar o processo de reformulação da característica básica do sistema agropecuário atual, que é a sua monotonia. Precisamos rumar em direção à diversificação desse sistema. Temos condições intelectuais, empresariais e naturais para mostrar ao mundo um modelo alimentar diversificado que deve ser o caminho do século 21.

O setor tem condições de fazer isso por si só ou depende de presença estatal?

Parte do setor Agropecuário está consciente desses problemas. O dilema é a outra parte, que sustenta uma postura patrimonialista, em que ocupar cada vez mais terra é fundamental e em que qualquer medida que iniba essa destruição soa como protecionista. Um exemplo disso foram as reações às medidas tomadas pela União Europeia de impedir a entrada de produtos resultantes de desmatamento nos mercados do bloco. Foi uma decisão de caráter civilizatório que, dentro da alguns ramos da Agropecuária brasileira, foi lida exatamente dessa forma. Felizmente, há uma parte do setor que entende que, se a destruição da Amazônia prosseguir, nós não vamos ter água para a agricultura, para gerar energia, para alimentar a população etc.

“O País precisa liderar o processo de reformulação da característica básica do sistema agropecuário atual, que é a sua monotonia.”

Mas por que essa parte permanece com essa postura?

É um comportamento corporativista que ignora que, em uma economia complexa, com 200 milhões de habitantes, é completamente absurdo imaginar que o Agro seja tudo. Ele é apenas um setor econômico. Os Estados Unidos, que são grandes exportadores agrícolas, têm 8% do PIB em torno disso. Para nós, essa proporção é de quase um terço. Não é possível que o Brasil fique na dependência de uma parte produtiva que está cada vez mais vulnerável à crise climática.

Qual é o grande potencial do Brasil hoje — e, pergunta ainda mais difícil, como transformá-lo em realidade?

O grande potencial do Brasil é compatibilizar a luta contra as desigualdades sociais com a valorização sistemática do nosso patrimônio representado pela diversidade. Sachs gostava de dizer que o Brasil é o país do sol, porque não há uma superfície iluminada por ele no planeta de maneira tão intensa quanto o território brasileiro. Transformar essa riqueza energética em um tipo de riqueza que melhore a vida das pessoas é um desafio extraordinário. Diria que é o grande desafio do século 21. A gente tem condições de aproveitá-la, porque temos ciência de alta qualidade, um setor empresarial com capacidade de liderança e uma sociedade civil organizada que está lutando contra as formas existentes de desigualdade, como o racismo, as exclusões representadas pela remuneração entre homem e mulher, a violência etc. Nós estamos avançando.

E o que atua para impedir esse avanço?

Somos um país com uma fortíssima tradição escravista latifundiária. Para isso mudar, vai exigir muito esforço de persuasão racional, de um debate público de qualidade para uma sociedade muito menos desigual que é e, em paralelo, que seja capaz de aproveitar os fantásticos recursos dos quais dispomos.

Vinícius Mendes Canal Um Brasil
Vinícius Mendes Canal Um Brasil
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