entrevista

O passado para entender o presente

06 de janeiro de 2021
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Educação e conhecimento são as principais armas para enfrentar a batalha da desinformação e do obscurantismo histórico. A opinião é da historiadora, professora e escritora Mary Del Priore, autora de mais de 45 livros sobre história. Entre eles, O príncipe maldito, Histórias íntimas e a série Histórias da gente brasileira, dividida em quatro volumes. Assim como ocorre, hoje, em relação ao covid-19, na época da gripe espanhola, surgiram remédios milagrosos sem eficácia comprovada e houve muita falta de informação em relação à doença que dizimou milhões de pessoas no início do século 20.  “A história é um consenso coletivo. É aquilo que você sabe com aquilo que eu sei – juntamente à documentação – bem interpretados e bem criticados”, ensina Mary.

Este texto foi publicado na edição especial da PB em parceria com o canal UM BRASIL. Ao longo do mês de janeiro, o conteúdo completo da revista será oferecido no site da PB.

“É na intimidade que o brasileiro se revela realmente, pois temos uma moral dentro de casa e uma moral fora de casa.”

Uma das melhores formas de entendermos o presente é olharmos para o passado. O que foi a gripe espanhola?

Os médicos, até hoje, se perguntam onde teria nascido. Ela aparece num cenário bastante turbulento. Há quem diga que teria vindo da colônia francesa na Indochina, com os batalhões que foram servir na Primeira Guerra Mundial. Também, nos Estados Unidos, houve uma enorme epidemia. As comunicações, tal como as redes sociais hoje, estavam muito ativas. O telégrafo mandava notícias e se via que, além do horror da guerra, havia essa pandemia. E por que este nome? A Espanha, neutra na Primeira Guerra, não censurava os jornais, que noticiavam as primeiras informações sobre populações inteiras que estavam desaparecendo. Mas como chegou ao Brasil? A primeira informação é de que uma missão militar médica brasileira foi para atender soldados feridos em Dacar e, posteriormente, contaminou-se. O País, com as suas cidades litorâneas e enorme costa, sempre foi, desde o período colonial, porto para epidemias: a varíola (que dizimou nações indígenas), a febre amarela e a gripe espanhola. O Rio de Janeiro perdeu 15 mil pessoas e cerca de 600 mil foram contaminadas, equivalente a 66% da população da cidade na época. A capital federal estava saindo de uma reforma feita pelo prefeito Pereira Passos, com a abertura da avenida Central, todos os casarões antigos postos abaixo. As pessoas, fascinadas com a nova cidade, não se deram conta do que estava acontecendo. Da mesma maneira que, hoje, há uma corrida atrás de remédios sobre os quais não se tem muita certeza da eficácia, como a cloroquina, naquela época também acontecia isso. Remédios para prisão de ventre, tosse e receituário médico de fundo de quintal (como mel e agrião) fizeram a felicidade dos charlatães. Os hospitais do Rio e de São Paulo não tinham nenhuma condição de receber os doentes. A solidariedade, sobretudo nas colônias imigrantes, foi fundamental para conter a epidemia. É óbvio que, quando Carlos Chagas entrou em cena e propôs a quarentena, inclusive nos barcos – impedindo estrangeiros de entrar no Brasil e sugerindo que as pessoas ficassem nas suas casas –, a coisa começou a funcionar.

O Estado foi atuante e agiu de maneira unificada e organizada? A população aceitou o que o Estado propunha? Que relação pode ser feita com o que acontece hoje?

Diferentemente de hoje, o Estado estava totalmente despreparado, e não se sabia o que era a doença. Daí a importância da ciência, de ouvirmos os médicos. Naquela época, ninguém sabia de nada, havia uma enorme interrogação sobre que mal seria esse – sem contar que era um País de pessoas majoritariamente analfabetas. Junte-se a isso a censura aos jornais por causa da guerra, portanto, a informação não chegava às pessoas. A literatura mostra, por meio de relatos, como era o dia a dia, o medo disseminado nas cidades, o convívio com os mortos e todo mundo dentro de casa. São quadros muito vivos do que foi o terror dessa pandemia, que durou pouquíssimo. Esta é outra diferença para os dias de hoje: ela chegou entre outubro e novembro de 1918, atravessou os meses de verão e já houve calmaria em março, quando as cidades voltaram ao normal.

Houve fake news durante a gripe espanhola?

Sim. Os alemães eram os grandes inimigos. Quando estavam fazendo os últimos movimentos para entrar na França, o que se dizia é que submarinos alemães se encarregavam de lançar, no litoral das cidades europeias e da costa norte-americana, garrafas com o tal vírus da gripe espanhola, que seriam abertas por curiosos e o vírus se disseminaria.

Há um certo cansaço da população com a quarentena. Houve algo semelhante na gripe espanhola? A população aderiu imediatamente à quarentena ou apenas depois que o alto índice de mortes era conhecido?

Como não havia nenhuma organização na época neste sentido, prevalecia a ignorância sobre a proveniência do vírus, o que ele trazia ou como curá-lo. Ninguém sabia nada. E estamos diante do mesmo impasse: não há fórmulas para curar o covid-19. Só podemos lamentar este desajuste que estamos sofrendo – e vale acrescentar o desespero da população, sobretudo das camadas menos favorecidas. Há também um cansaço psíquico de ficar entre quatro paredes. Tudo isso é muito cansativo.

Num momento como o atual, de pandemia, esta questão da falta de preparo dos governantes ganha importância maior?

Sem dúvida. Nós não conseguimos prever mais nada sobre o que vai acontecer nos mundos do trabalho e da política. Isso nos convida a pensar em grandes personagens, como Winston Churchill e o general Charles de Gaulle, criaturas que marcaram a história do mundo pela sensatez e pelo compromisso com o povo. Acho que estamos muito longe destas grandes figuras. Entretanto, acho também que a vida política mudou. O que a população exige, hoje, são gestores e administradores.

Há uma postura de oposição ao conhecimento e à ciência. É possível que surja a percepção de que este obscurantismo tenha limites num mundo pós-pandêmico?

A única solução para qualquer forma de obscurantismo é a educação. Educar significa esposar. Quando se é responsável, casa-se com a ideia. E quem tem de se responsabilizar com a educação não são apenas os governantes, mas a sociedade como um todo. Há também obscurantismo na extrema-direita e na extrema-esquerda, e tudo aquilo que limita a discussão e o debate é uma forma de obscurantismo.

Está sendo difícil ser historiadora neste momento em que o passado virou um campo de batalha?

Nós temos de ir para um campo de batalha armado das boas armas, justamente para mostrar que estas configurações são absolutamente ideológicas e que os fatos históricos se impõem. Alguém dizer que não existiu campo de concentração, por exemplo, é uma forma de revisionismo que não só agride uma população importante, mas todas as evidências que temos. Basta ir até a Polônia que teremos evidências de um campo de concentração. A história é um consenso coletivo, é aquilo que você sabe com aquilo que eu sei – juntamente à documentação –, bem interpretados e bem criticados.

O que a levou a escolher as pessoas comuns para a grande série, de quatro livros, em Histórias da gente brasileira?

Durante séculos, a história se limitou a contar sobre imperadores, santos da Idade Média e grandes homens do Renascimento. No início do século 20, começou-se a usar a expressão: “Vamos estudar as pessoas de baixo, que as de cima já estão bem estudadas”. Com o marxismo dos anos 1950 e 1960, tornou-se uma postura ideológica trabalhar com os pobres, as camadas desfavorecidas e as minorias exploradas. O que se repete na vida destas pessoas? É a vida privada, a intimidade, nas quais não apenas os gestos se repetem, mas as tradições, as formas mentais que, de alguma maneira, nos encaminham para regimes de pensamento e ações políticas determinadas. Tudo isso é gestado na intimidade. Eu digo que é na intimidade que o brasileiro se revela realmente, pois nós temos uma moral dentro de casa e
uma moral fora dela.

Esta dupla moral se aplica ao caso brasileiro?

Nós somos tradicionalmente muito conservadores. No quarto volume da série, que trabalha o período entre 1950 e 2000, isso fica muito claro. Venho tentando iluminar o “lado B” disso, que alguns chamam de “ditadura militar” e outros, de “revolução”. Nós poderíamos simplesmente ficar com a noção de ditadura militar se quiséssemos desconhecer que a classe média brasileira, nos anos 1960, 1970 e 1980, apoiou de forma veemente o regime militar. Até a crise da década de 1980, o Brasil enriqueceu. Nesses “anos de ouro”, foram criadas estatais que deram emprego a milhares de pessoas, foram feitas obras de infraestrutura que mostraram a essa “gente de baixo” que elas podiam ter décimo terceiro salário e férias; comprar o primeiro fusca, a primeira televisão. Esse é um momento em que surgem supermercados e shopping centers. Surge o brasileiro consumidor. É como se não tivéssemos tido tempo de nos educarmos como cidadãos e passamos direto ao consumo. O perfil do jovem brasileiro é muito interessante nos anos 1980. São pessoas que querem ter um Corcel ou um Opala, subir na vida, trabalhar e ganhar dinheiro, e a percepção da importância da ecologia é muito baixa. As eleições, nos últimos anos, têm tudo a ver com os perfis que aparecem nessa época. Quando “levantamos o tapete” do Brasil em 1980 e 1990, verificamos que temos muitos consumidores, mas pouca cidadania e pouca preocupação com a política, o que, talvez, explique o Brasil do século 21.

E o papel feminino na sociedade brasileira? Esta história de sujeição das mulheres em relação aos homens começa a dar sinais de que está se esgotando ou não?

Acho que o patriarcalismo está se esgotando por ele mesmo. Desde o fim das chamadas “casas-grandes”, no Nordeste, o poder do patriarca vem se transformando, muito pela insubordinação dos filhos, que vão estudar na cidade grande e fazem casamentos que não são mais endogâmicos [consanguíneos], nem em favor de politicagem, são por amor. Após a conquista do voto, houve uma participação política de mulheres muito importante. Com a chegada da pílula anticoncepcional, reduziu-se a média de filhos, o que deu à mulher melhores condições de estar fora, ganhando a sua vida, o seu trabalho. E no momento em que a mulher chega em casa, ao fim do mês, com um salário – que, muitas vezes, vai pagar o aluguel, a comida e o colégio dos filhos –, há uma crise de virilidade, tal como ela foi concebida e construída ao longo dos séculos.

Sobre a ideia do público e do privado, uma pergunta dura e direta: a gente brasileira é hipócrita?

Eu não diria hipócrita. É resultado da construção de uma dupla moral que vem desde 1535, porque existiu uma interferência da Igreja muito grande, esvaziando, sobretudo no que diz respeito ao casamento, as práticas sexuais de tudo aquilo que fosse prazeroso, erótico. O casamento era voltado exclusivamente à procriação. Isso era o eixo da vida social.

Entrevista concedida ao UM BRASIL – uma realização da FecomercioSP. UM BRASIL é uma plataforma multimídia composta por entrevistas, debates e documentários com nomes dos meios acadêmico, intelectual e empresarial. O conteúdo desses encontros aborda questões importantes sobre os quadros econômico, político e social do Brasil. Confira aqui a entrevista completa.

Leda Rosa Divulgação
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